Sociedade civil critica PEC que desobriga gestores de cumprirem verba mínima em educação
Articulação encabeçada por municípios tenta emplacar proposta na Câmara dos Deputados nos próximos dias
Entidades que defendem a pauta da educação estão se mobilizando para tentar evitar que a Câmara dos Deputados vote, neste final de ano legislativo, uma das medidas que mais preocupam o segmento na atualidade: a anistia para prefeitos que não cumpriram o investimento constitucional mínimo em educação durante a pandemia.
A ideia está expressa na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 13/2021, que tem como primeiro signatário o senador Marcos Rogério (DEM-RO), um dos principais bolsonaristas do Senado, onde a matéria já foi aprovada em dois turnos no plenário.
A disputa agora foi transferida para a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), que recebeu oficialmente a PEC no último dia 29 e já conta com parecer favorável à aprovação por parte do relator, Silvio Costa Filho (Republicanos-PE).
Organizações civis temem que o colegiado escute o clamor que hoje parte da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), mentora original da PEC 13. A entidade articula uma marcha que levará esta semana a Brasília uma pauta de demandas na qual a PEC figura como um dos pontos principais. Os prefeitos devem concentrar as articulações entre terça (14) e quarta (15), quando, na avaliação do segmento educacional, a CCJ pode tentar alavancar a medida.
O artigo 212 da Constituição estipula meta de 18% de investimento mínimo anual em educação para a União e 25% para estados, municípios e o Distrito Federal. Os índices são calculados em cima da arrecadação de impostos e servem de referência para avaliar o desempenho dos gestores diante das normas da Lei de Responsabilidade Fiscal.
O texto da PEC 13 libera de penalidades os gestores dos três níveis de governo que não tenham conseguido cumprir esses percentuais durante a pandemia, nos anos de 2020 e 2021. Com a eventual aprovação da proposta, os gestores em questão ficariam livres de punições nas esferas administrativa, civil ou criminal. Para Daniel Cara, um dos integrantes da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a proposta premia o que ele qualifica como “incompetência dos prefeitos”.
“É completamente absurdo isso. Vários prefeitos têm procurado a gente para pedir alternativas de execução [do orçamento], não querendo essa PEC. Os prefeitos que estão querendo isso é porque, de fato, não têm competência, não têm compromisso com a educação”, reage.
Cenário
A CNM argumenta que o período da crise sanitária provocou queda nos gastos com o setor por conta do fechamento das escolas, que resultou na não utilização de serviços como transporte escolar, entre outros.
Já os atores que militam em defesa da pauta da educação apontam que essas verbas deveriam ter sido injetadas em ações de tecnologia para auxiliar os estudantes e professores com as aulas on-line, bem como em iniciativas que adaptassem as unidades escolares para o retorno aos trabalhos presenciais.
Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) indicam, por exemplo, que durante a pandemia a evasão escolar no Brasil foi ampliada em 5% entre estudantes do ensino fundamental e 10% no ensino médio.
E mesmo entre aqueles que permaneceram na escola no curso da crise também surgiram dados considerados preocupantes para os especialistas: 4 milhões de alunos ficaram sem internet e, portanto, com dificuldade de acessar os conteúdos das aulas virtuais.
“Tem uma série de políticas a serem feitas, tanto em termos de equipamentos e infraestrutura das escolas quanto em termos de valorização dos professores e professoras. Como é que eles não usaram esse dinheiro, se ainda por cima é preciso ter políticas para resolver essa questão da evasão?”, questiona o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo.
A entidade está entre as que se organizam para uma série de atividades que devem ocorrer esta semana em Brasília. O objetivo é persuadir os deputados a não votarem a PEC ou, em caso de colocação do texto em votação, rejeitarem a medida.
Além das organizações sindicais, trabalhadores que atuam na base da rede educacional também se queixam da iniciativa dos defensores da PEC. É o caso da professora Consuelo Brito, que leciona na rede pública de Pernambuco há 14 anos. Ela conta que se sente “revoltada” diante das articulações em favor da proposta.
“É um crime. Tanto é crime que eles estão indo pedir anistia porque, se soubessem que não era grave o que estão fazendo, não fariam um movimento e não iriam até Brasília pedir para serem anistiados de uma obrigação. Isso não é favor, é obrigação”.
“Premissa equivocada”
A manifestação da CNTE sobre o uso dos recursos está em sintonia com o que apontaram os opositores da PEC durante os debates no Senado. Em nota publicada em agosto, o senador Flávio Arns (Podemos-PR), por exemplo, um dos 14 que disseram “não” à proposta durante a votação no plenário da Casa, disse que a medida “parte de uma premissa equivocada” por conta da ideia de que os recursos canalizados para a educação devem ser reduzidos na pandemia.
“O raciocínio deve ser o inverso: é justamente por causa desse contexto calamitoso que as necessidades educacionais aumentaram e precisam, portanto, de um cuidado especial, para permitir adaptação dos sistemas de educação à nova realidade de ensino remoto ou híbrido.”
Ao citar dados do Censo Escolar da Educação Básica em 2020, produzido pelo Ministério da Educação, o senador acrescenta que o levantamento “identificou que 4.325 escolas [públicas do país] sequer possuem banheiro, 8.674 não têm água potável e 35.879 não possuem coleta de esgoto”, por exemplo.
“Não se pode admitir como razoável a redução generalizada de investimentos na educação pública durante a pandemia. Primeiramente, há muitas necessidades represadas que precisam de imediata atenção”, completou Arns.
Orçamento
Os autores da proposta afirmam que “20 estados registraram queda de R$ 16,4 bilhões de arrecadação nos primeiros seis meses de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019”. O texto da PEC sustenta também que “a maioria dos municípios registra igualmente perda de recursos com o revés econômico provocado pela pandemia”.
A argumentação foi questionada em nota informativa feita em agosto por um dos membros da Consultoria Legislativa do Senado, departamento que aglutina uma série de especialistas com alto rigor técnico e cujo trabalho subsidia as atividades do Congresso com análises sobre diferentes temas.
No documento, Haroldo Feitosa Tajra cita, entre outras coisas, a “Análise da situação fiscal dos estados”, estudo elaborado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, segundo a qual o aporte de R$ 44,4 bilhões em recursos repassados da União para os estados durante a pandemia foi superior às perdas de receitas em 24 das 27 unidades da Federação.
“Apenas Ceará, Santa Catarina e São Paulo tiveram insuficiência de recursos, ou seja, o ônus fiscal da pandemia da covid-19, pelo menos no caso dos estados e do DF, recaiu sobretudo junto à União”, conclui Haroldo Feitosa Tajra.
Ao analisar o arcabouço legal do país em comparação com o texto da proposta, Tajra afirma que a PEC seria um risco ao país, podendo levar o Brasil a um futuro de “caos total”.
“A proposta não merece prosperar por representar um perigosíssimo precedente, sinalizando justamente aos agentes públicos que eles não precisam se preocupar em cumprir as normas, pois mesmo aquelas de hierarquia mais elevadas, no caso de um dispositivo constitucional, poderão ser excepcionalizadas em seu benefício, caracterizando um risco moral elevadíssimo”.