STF derruba marco temporal, mas facilita acesso de terras indígenas para exploração: ‘Inconstitucional’
Relator Gilmar Mendes rejeita a tese, mas apoia exploração econômica das TIs e rechaça retomadas
Nesta quarta-feira (17), o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para derrubar a tese do marco temporal para a demarcação de Terras Indígenas (TIs).
Com seis votos, os ministros decidiram pela inconstitucionalidade da tese que estabelece que os povos indígenas do Brasil só poderão reivindicar a demarcação dos territórios ocupados no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Segundo essa norma, as áreas ocupadas antes ou retomadas após essa data não poderiam ser legalmente entregues aos indígenas.
O voto dos ministros, no entanto, abriu uma brecha facilitando o acesso de pessoas não indígenas a esses territórios para práticas econômicas, como atividades de mineração e agropecuária.
“Isso é proibido pela Constituição, porque o usufruto [das terras] é exclusivo dos povos indígenas”, alerta Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade que há quase 50 anos trabalha na defesa dos direitos dos povos originários.
Nesse tema, o ministro Flávio Dino foi o único a se posicionar contra a permissão da exploração desses territórios. Além de Dino, já votaram os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes, relator dos processos. Em seu posicionamento, Mendes reconhece as violências sofridas por esses povos – mas defende medidas que favorecem os invasores dos territórios.
O voto do relator
Em trecho de seu voto, Gilmar Mendes afirma que “nossa sociedade não pode conviver com chagas abertas séculos atrás que ainda dependem de solução nos dias de hoje”.
No posicionamento, Mendes alerta que a fixação da data limite de 5 de outubro de 1988 expõe os povos originários a uma “situação de difícil comprovação para comunidades indígenas que foram historicamente desumanizadas com práticas estatais ou privadas de retirada forçada, mortes e perseguições”.
Apesar disso, o relator se posicionou em favor da regra que permite aos ocupantes ilegais a permanência na terra até o recebimento da indenização. O voto de Mendes também favorece a realização de atividades agropecuárias nas Terras Indígenas, desde que tenham participação da comunidade e não resultem em arrendamento das terras.
Outro ponto desfavorável para os indígenas é a possibilidade da oferta de um território equivalente em outra localidade, em caso de dificuldade no processo de demarcação, conforme alerta Ricardo Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“A gente sabe que os nossos territórios não têm terra equivalente, não é simplesmente um pedaço de terra. Tem toda uma posse tradicional, ancestral, sobre aquela região”, diz.
Ricardo acompanhou de Brasília (DF) a votação. Do lado de fora do prédio do STF, ele esteve com outros representantes da Apib e com povos e lideranças indígenas da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), em um ato contra a PEC 48 – a proposta que visa alterar a Constituição Federal para definir um marco temporal para a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.
Um dia antes do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal das terras indígenas, na terça-feira (9), o Senado aprovou, em votação acelerada, a PEC.
O julgamento, realizado em plenário virtual, discute a constitucionalidade da lei 14.701, que trata da demarcação, do uso e da gestão das terras indígenas brasileiras – e terá continuidade nesta quinta-feira (18), quando devem votar os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia, André Mendonça e Nunes Marques. Os ministros apreciam quatro ações que questionam a lei do marco temporal.
Proibição das retomadas
Em outro ponto contraditório, a proposta de Gilmar Mendes proíbe as chamadas retomadas dos territórios indígenas e permite a expulsão à força dos ocupantes dessas áreas. “Ele diz que, se os indígenas a partir de agora fizerem a retomada, não precisa de decisão judicial para a polícia tirá-los [da área ocupada]”, explica Modesto.
Retomadas são ações organizadas pelos indígenas, quando um grupo ocupa um território invadido por não indígenas, como forma de pressionar o poder público pela regularização das suas terras. “E os indígenas usam as retomadas como instrumento de pressão, inclusive, para que o poder executivo dê celeridade aos processos de demarcação e para que [os indígenas] não fiquem eternamente nas margens das rodovias ou em áreas em que não conseguem se reproduzir física e culturalmente”, diz o assessor.
No voto, o ministro equipara esses movimentos às invasões dos territórios ancestrais, que colocaram à margem de suas terras e suas culturas os habitantes originários. “Ou seja, sob qualquer ângulo que se analise o problema, as invasões, as retomadas e a expulsão são atos ilícitos e assim devem ser compreendidos para evitar que a barbárie e o caos se instalem definitivamente e sejam a tônica no campo”, informa o texto do relator.
De acordo com a proposta do ministro, o plano estabelece protocolos de desocupação humanizada e responsabilidade civil e penal para quem violar a paz no campo. Na prática, no entanto, os indígenas são alvo de ações violentas por parte de jagunços e de agentes do estado, como o que se vê há anos no Mato Grosso do Sul onde, cada vez mais isolados pelos pastos e plantações de monocultura, os Guarani e Kaiowá organizaram retomadas e são alvos constantes de intimidação, ameaças e assassinatos.
Em setembro deste ano, pelo menos dois indígenas foram atingidos por balas de borracha em uma investida da Tropa de Choque no município de Caarapó. A cerca de 140 quilômetros dali, um jovem indígena foi assassinado em um ataque armado à retomada Pyelito Kue, no município de Iguatemi, em novembro.





