Após 2 milhões de casos, Brasil corre risco de nova onda de contaminação de coronavírus, alerta Nicolelis

‘A maior tragédia humana da história do Brasil não é tratada como merecia’, declara o cientista

O Brasil chegou à marca de 2 milhões de casos de coronavírus confirmados em menos de cinco meses do início da epidemia. O número, alcançado nesta quinta-feira 16, se dá um dia depois do País completar 60 dias sem um líder à frente do ministério da Saúde.

Também se consagra no momento em que o Brasil avança com deliberações para a retomada de sua economia, abrangendo setores que, originalmente, lidam com acúmulo de pessoas, como bares, restaurantes e academias.

Vale lembrar que o distanciamento social é uma das prerrogativas de combate ao vírus estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde.

Para o médico e cientista brasileiro Miguel Nicolelis, o Brasil segue “como um barco à deriva” e tem como única certeza a de que é o segundo país do mundo com o pior manejo da pandemia, lugar disputado somente com os Estados Unidos, de Donald Trump.

Em entrevista a CartaCapital, o cientista fala sobre a falta de estratégia brasileira para reagir à pandemia e o perigo do movimento atual do vírus, que tende a deixar as capitais e avançar para as regiões interioranas do País, com menos condições sanitárias de enfrentamento, o que causa o chamado efeito bumerangue, com retorno dessas demandas para cidades que já enfrentaram sobrecarga pelo vírus.

“O nosso grande receio é que essebumerangue vire um ciclone, que seria um sistema de retroalimentação contínua capital-interior, interior-capital, e ficar circulando dessa forma. Isso precisa ser evitado”, alerta.

Nicolelis fala sobre a necessidade do Brasil tomar uma “decisão política por salvar vidas”, narrativa que só pode acontecer dentro de “um projeto de salvação nacional”.

“Não existe na história do Brasil uma situação mais urgente e mais calamitosa do que a que estamos passando”, declara o cientista que convoca o governo federal, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal a tomarem as rédeas de ações de enfrentamento.

CartaCapital: O Brasil chega à marca de 2 milhões de infectados em menos de cinco meses do início da pandemia. Como o senhor avalia o momento do País e o caminho no enfrentamento à pandemia até aqui?
Miguel Nicolelis: Primeiramente, é importante dizer que esse numero não é real, apenas oficial, o real é de sete a doze vezes maior, contando a subnotificação que já foi avaliada por uma série de inquéritos soroepidemiológicos. Temos entre 14 e 24 milhões de pessoas que já foram infectadas, assintomáticas ou não. O número de dois milhões é meramente simbólico. A expansão da pandemia é muito maior.

Continuamos um barco à deriva, sendo o país com o pior manejo da pandemia dentro do G20, juntamente com os Estados Unidos. A gente olha para os Estados Unidos hoje e vê o que pode acontecer com o Brasil a qualquer momento. Os Estados Unidos acharam que o platô tinha chegado num momento em que tinha 20 mil casos diários, e média de 300 a 500 mortes por dia. De repente, começaram a liberar, desordenadamente, no sul, oeste e meio oeste do país e Califórnia, Texas e Flórida, estados mais populosos do que Nova York, com exceção da Califórnia que é mais populosa do que Nova York, tiveram explosões a ponto de, nos últimos dias, estarem se aproximando de 70 mil casos diários. Das grandes economias do mundo, são os piores países em manejo da pandemia.

Basicamente, no Brasil, continuamos sem ministro da Saúde, sem estratégia, a mensagem que levamos era dúbia desde o começo. Importante ressaltar que não tivemos heróis no Ministério da Saúde até hoje, isso é uma falácia. Nós só tivemos uma bagunça, uma completa falta de profissionalismo. O ministério tinha técnicos de altíssimo nível, capacidade de ter criado um plano muito melhor, e comprado os insumos, os testes, os respiradores, fazer o que era necessário já em janeiro, fevereiro, quando a crise não estava tão feia. Tivemos o Carnaval, não fechamos o espaço aéreo por 15 dias em março, quer dizer, turistas do mundo inteiro de países que tinham altos níveis de infecção vieram para a costa brasileira e trouxeram o vírus ao País, e nada foi feito, nada que é aceito internacionalmente em termos de manejo de pandemia. Então, o resultado é esse, total grau de incerteza, cada governo estadual agindo de maneira própria. E agora, como era previsto pelo estudo que fizemos considerando o fluxo da malha rodoviária brasileira nos meses de fevereiro, março e abril, tínhamos um fluxo maior no Nordeste, como era esperado com as férias de verão e carnaval, mas havia um recado do espalhamento dos casos nas regiões Norte e Sul no inverno, e esse momento chegou. A gente alertou, poucas pessoas ouviram, governos do Sul, principalmente do Rio Grande do Sul, acharam que tinham dado conta da pandemia e evidentemente não deram conta de nada, ela nem tinha chegado.

CC: O País desponta em segundo lugar mundial em número de casos e mortos, atrás apenas dos EUA, mas tem mais recuperados que o país norte americano. Há como estabelecer essa relação de maneira positiva para o Brasil?
MN: Não, porque a recuperação é espontânea, não tem nenhum tratamento, a menos que sejam pacientes graves, uma minoria que vai pras UTIs, para os centros de tratamentos por questões secundárias ao vírus. Mas a vasta maioria, 95% dos pacientes, basicamente estão se curando espontaneamente, não há o que fazer. Então, não vejo como se vangloriar do número de curados, ele é uma referência, uma estatística, mas que não nos ajuda em nada. O que nos ajuda é o número de casos controlados, os casos ativos, de internados, os índices de letalidade e mortalidade, bem como a subnotificação. Esses são importantes para o manejo da epidemia. Em uma moléstia em que você se cura por si mesmo, se é que se cura, não sei como alguém consegue tirar crédito disso para se vangloriar de qualquer forma.

CC: Considerando as últimas três semanas epidemiológicas, vemos que o País deixou de ter saltos significativos em número de mortos, como no início da pandemia, mas mantém um acumulado de mais de 7 mil mortes por período. Como avaliar esses dados?
MN: É muito difícil porque você está falando de uma média de sete dias, que simplesmente é feita para remover os picos e vales, os pontos que estão muito fora da curva, para que se tenha uma leitura de tendência. Mas isso pode mudar em 24, 48 horas. E isso é no Brasil inteiro. Na verdade, o País tem múltiplas epidemias, em tempos diferentes, mesmo dentro de um mesmo estado. Quando você olha Fortaleza, por exemplo, teve um lockdown eficiente, um achatamento da curva de mortos e casos, mas no interior do Ceará está tendo um crescimento enorme. Nas regiões Centro-Oeste e Sul se você olhar os números de casos, principalmente, estão crescendo exponencialmente, ele avança bem mais rápido que o de óbitos. As curvas de Mato Grosso, Santa Catarina, Florianópolis, Porto Alegre, Curitiba, Campo Grande, Cuiabá, Dourado, enfim, essas cidades que até há pouco tempo tinham poucos casos agora vivem o que vimos na região Sudeste ou Nordeste. E esses casos não se encerram aí.

Em todos os estados há esse efeito bumerangue que se dá quando os casos das capitais migram para o interior, essas regiões começam a somar mais casos. Em São Paulo, por exemplo, se vê o interior superando a capital, ou a região metropolitana, quando se tira a capital da conta, e como o interior do Nordeste e mesmo em São Paulo não dispõe dos mesmos recursos de infraestrutura hospitalar, os casos começam a retornar para as cidades que já passaram por intensa sobrecarga. O nosso grande receio é que esse bumerangue vire um ciclone, que seria um sistema de retroalimentação contínua capital-interior, interior-capital, e ficar circulando dessa forma. Isso precisa ser evitado. No Brasil, ainda temos centros hospitalares de alta eficiência como Campinas, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, mas mesmo eles estão saturados. Outro dia vimos 200 casos de Campinas vindo para São Paulo.

CC: Como evitar essa retroalimentação da epidemia?
MN: A gente faz isso evidentemente tentando quebrar a transmissão do vírus nas casas das pessoas. Você não soluciona uma pandemia em leitos de UTIs e hospitais, temos que criar esse sistema para dar conta da população que precisa, mas a grande maioria dos casos estão ocorrendo nas vizinhanças, nas casas, nos locais de trabalho, é ali que se tem que agir. Por isso que o Consórcio Nordeste aprovou a criação de brigadas emergenciais de saúde, grupos de agentes de saúde, médicos, enfermeiros, indo de encontro ao vírus.

É a estratégia que de fato funciona. De resto, vamos ficar à deriva, à espera de fenômenos biológicos, climáticos, ou de que a própria dinâmica do vírus defina o jogo. Pra você ter um controle do jogo você tem que agir e atacar e não ficar na defensiva. Só que esse entendimento ainda não chegou aos ouvidos de quem precisa decidir. Por exemplo, o governo do Piauí criou um sistema de brigadas, como recomendamos, chamado Busca Ativa do Vírus e despachou para 160 cidades 18 mil testes para essas brigadas irem de encontro ao vírus. Isso também está acontecendo no Maranhão. E eles começaram a descobrir novos casos. Na primeira investida no Piauí foram quase 400 casos novos, que não estavam registrados nas estatísticas. E isso porque o Brasil testa muito pouco, só os pacientes que chegam aos hospitais, não está saindo a campo para testar a população em suas casas que é a estratégia que funcionou nos países que ganharam essa luta, como Vietnã, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Alemanha, Taiwan, Cingapura. Todos esses lugares partiram pra cima, a própria China fez isso. E O Brasil adotou, como os EUA, uma posição passiva, de esperar nos hospitais. Não há hospital no mundo que dê conta, não há governador ou prefeito no mundo que vai conseguir construir leitos de UTI na mesma velocidade que o vírus infecta.

CC: Ainda considerando o período, o número de casos também segue em alta, mas com uma desaceleração. É possível sinalizar um platô?
MN: Os EUA ficaram três meses no platô. De abril a junho, mantiveram seus 20 mil casos, um platô altíssimo, por sinal. Aí contra os conselhos de todos os epidemiologistas de renome americano, os caras começaram a abrir, o Texas, as praias da Flórida, Califórnia, o Arizona, começaram a pensar na retomada de jogos de basquete, de futebol americano, e deu no que deu. Em alguns dias passou de 20 mil novos casos diários para 67 mil, registro de ontem. Mais do que triplicou. E agora tem se a justificativa que não houve aumento expressivo de mortes, porque tem um delay aí, mas esse atraso já passou e já se tem novamente a média de mil mortes por dia, novamente chegando perto do patamar brasileiro. E, provavelmente, esse número vai subir, hospitais no Texas e na Flórida já estão chegando na sobrecarga, em eminente colapso. Então mesmo que em algumas capitais brasileiras haja um refluxo da taxa de ocupação de leitos de UTI, por exemplo, eu o comparo a um refluxo da água na praia antes do tsunami, quando a água recua, a praia aumenta ali três metros em relação ao oceano, e de repente vem uma tsunami e inunda todo mundo. Essa tsunami pode vir do interior do Brasil, onde não existem condições suficientes, embora em uma conversa recente minha no exterior, esse pensamento também é compartilhado por países da Europa e no próprio Estados Unidos, não tão gravemente por conta da infraestrutura melhor, mas, no Brasil, com essa discrepância geográfica de distribuição de leitos de UTIs, esse efeito pode ocorrer em todo o País. E veja isso seria uma reverberação da primeira onda da pandemia, não uma segunda onda.

Um exemplo de segunda onda foi o que aconteceu nos EUA em 1918. A gripe espanhola começou no oeste do estado de Kansas, a primeira onda foi pra baixo no País, os soldados foram para a guerra, na França, quando eles voltaram a segunda onda explodiu e foi muito mais grave do que a primeira porque o vírus voltou muito mais letal, o que não quer dizer que vá acontecer isso aqui, agora, da mesma maneira. Cada vírus é um vírus. Estamos em 2020, não em 1918 e não é uma Influenza, mas a possibilidade existe e nós nem demos conta da primeira onda. Em 1918, os EUA perderam 450 mil pessoas, hoje estão chegando a 150 mil, e fora de controle. E o Brasil já passou de longe. Eu sempre falo que a maior perda de vidas humanas, fora o genocídios dos séculos XVI e XVII com os colonizadores europeus contra os indígenas, foi a Guerra do Paraguai, e o seu número de mortes já foi suplantado, com a diferença de que ela durou seis anos. É um desastre épico. Aqui no Brasil a gente não consegue lidar com a realidade trágica de uma maneira apropriada, a gente normaliza tragédias de uma maneira muito rápida. É a maior tragédia humana da história do Brasil e ela não está sendo tratada como merecia em várias dimensões e ela só vai piorar.

CC: Estamos em um momento de retomada de atividades econômicas em grande parte do País, e de setores que originalmente preveem acúmulo de pessoas, como bares, restaurantes e academias. Ainda que se tenham medidas restritivas como redução de horário de funcionamento, de capacidade de atendimento e delimitações de distanciamento, isso é seguro? Qual a chance de termos uma piora do cenário da epidemia no País, dada a média de mais de mil mortes diárias?
MN: A resposta é simples. Em inglês eu te diria: Just take a look at Texas. Só olhe pro Texas. Esse discurso é o mesmo usado pelo governador do Texas. Ele abriu tudo e o que vai ter que fazer agora? Fechar tudo de novo e de uma maneira que ele não achou que deveria fazer, e nem fez da primeira vez. Houston, Dallas, todas as grandes cidades do Texas estão chegando ao limite de leitos de UTI e é um baita estado, estamos falando de um número de leitos disponíveis gigantesco, e não deu conta. Vai ser ainda pior na Califórnia, Flórida, que, agora, corre o risco de passar Nova York. É uma tragédia inacreditável. No Brasil, acho que as pessoas ainda não se deram conta da gravidade toda, há um negacionismo muito forte , falas como, ‘ah mas é igual a zika ou a dengue’, ‘a gente já passou por isso’. O fato é tem muita gente morrendo, os mesmos estão morrendo, basta olhar para as periferias, os negros, as pessoas que não puderam fazer o isolamento social pelas condições econômicas, já que não houve ajuda dessa natureza de ponta, o que foi feito é uma miséria. Há uma completa falta de estratégia financeira e econômica pra ajudar os brasileiros a passarem pelo pior momento da nossa história e isso vai ficar no registro, no currículo vitae dos senhores que, nesse momento, controlam a economia brasileira. Isso é quase um indiciamento histórico do crime que está sendo perpetrado contra a população brasileira, sem nem ela se dar conta. Isso é o mais triste.

CC: Chegados a quase cinco meses da pandemia e de um certo isolamento social, não é difícil se deparar com relatos de cansaço por parte da população, que segue afastada de seu convívio social e contatos com familiares, nem raro visualizar pessoas que já cedem a esses encontros. O que o senhor tem a dizer?
MN: Não é o momento disso. Eu entendo perfeitamente o cansaço, a fadiga, todos nós sofremos dela. Veja, a necessidade do convívio social é inerente ao ser humano, nosso cérebro evoluiu dependendo, sendo moldado, pelas interações sociais. Isso faz parte da nossa biologia. Todavia, existem circunstâncias na história de qualquer nação que certos sacrifícios se fazem necessários. Estamos nessa há quase cinco meses. Agora, quanto dias a cidade de São Petersburgo ficou sitiada pelos nazistas? Foram mais de mil. Quantos dias Stalingrado foi cercado pelos nazistas? Quem venceu essas batalhas foi o espírito estóico da sociedade russa, uma sociedade humilde, de camponeses em maioria, que decidiu ser uma luta pela subsistência deles, pela existência da nação deles, eles entenderam qual era a verdade. Essa situação que nós vivemos não é comparável, não é um exército inimigo invadindo o Brasil mas, em certo sentido, ela pode se tornar uma guerra de extermínio, porque enfrentamos um agente biológico altamente capacitado, que evoluiu para infectar e sobreviver às nossas custas. Apesar de ser simples do ponto de vista biológico, é um organismo extremamente sofisticado, do ponto de vista evolutivo de sobrevivência. Não à toa colocou o mundo de joelhos, como expôs as fragilidades do modelo de desenvolvimento imposto à humanidade.

CC: Como o senhor avalia o conceito de imunidade de rebanho? Ele é a esperança antes da vacina? De que projeções de casos e mortos estamos falando para que alcancemos essa imunidade?
MN: Nesse momento, tudo que eu conheço e ouço e que faz sentido não suporta qualquer tipo de estratégia que se baseie em alcançar a imunidade de rebanho. Mesmo porque existem grandes controvérsias sobre qual é o nível dela e, pra chegar nela, teremos que aceitar um número de mortes inaceitável. Basta olhar a taxa de letalidade do Brasil e imaginar o que seria se 50% da população, o que é abaixo dos 70% indicado por algumas projeções da imunidade de rebanho, fosse infectada. Estamos falando de 105 milhões de brasileiros. Isso versus a taxa de letalidade brasileira resultaria em alguns milhões de mortos. Completamente inaceitável.

CC: O senhor vê possibilidade de melhora ao País hoje no enfrentamento à pandemia?
MN: Tem chances sim, mas você não consegue fazer isso sem um governo federal que queira fazer, sem um ministério da Saúde preparado, com um pessoal técnico, com um estado maior, nacional, que basicamente comece a trabalhar, que coordene as ações dos estados e municípios, e que ofereça recursos financeiros, injete recursos no SUS, comecem o processo, como o Vietnã fez, de uso das Forças Armadas, em conjunto com as forças de saúde, para irem de casa em casa. Você precisa de um comando. É uma decisão política de salvar vidas. Não acredito que isso venha do governo Bolsonaro, mas acredito que as instituições brasileiras teriam como fazer. Se é que ainda existe alguma instituição pensando no bem estar do País. Está na hora do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal se darem conta de que estamos em uma guerra de extermínio, e que se eles não agirem logo, não vai restar muita coisa. Não existe na história do Brasil uma situação mais urgente e mais calamitosa do que a que estamos passando. Precisamos ter como norte uma narrativa de projeto de salvação nacional.

Carta Capital

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