O Brasil do terrorismo verde e amarelo não precisa de mais uma foto que sugere Lula assassinado

Montagem da Folha de S.Paulo faz parte de uma série de representações que põe em risco não só a vida de líderes petistas, mas as de milhões de brasileiros

Tem um áudio-meme bastante conhecido nas redes, no qual um homem, usando um tom meio irado, pergunta: “Tu tava fora do Brasil, irmão?” Eu fui esse cara nos últimos dias, quando boa parte do debate na internet – e fora dela – se concentrou em uma fotografia publicada na capa do jornal Folha de S.Paulo. Nela, vemos Lula arrumando a gravata e sorrindo, de cabeça meio baixa. Entre ele e nosso olho, há uma vidraça estilhaçada na altura do coração do presidente por uma não presente, mas sugerida, bala. A foto é resultado de uma técnica chamada múltipla exposição, uma espécie de sobreposição de imagens que resulta na criação de outra. A montagem foi feita pela fotojornalista Gabriela Biló.

Diversas questões foram levantadas ali: se era jornalismo, se era arte, se era drama da esquerda, se ia parar nos zaps da direita, se era boa, se era ruim, etc. Em vários desses comentários, eu virava o cara meio puto e perguntava: tu tava fora do Brasil, irmão?

Isso porque os rumos da conversa coletiva muitas vezes insistiam – e insistem – em desconsiderar o óbvio: vivemos hoje em um país conflagrado. Um país no qual, naquela mesma quinta, 19 de janeiro, a Polícia Federal se preparava para iniciar uma operação visando prender financiadores e fomentadores do terrorismo visto em Brasília no dia 8.

“Não é possível que não tenha uma bala perdida para acertar o Lula, não, gente? Pelo amor de Deus, uai”. “Tem que botar pra quebrar mesmo! Ter guerra civil mesmo! Matar gente, fechar o Senado, fazer uma zona mesmo”. Esses dois áudios, enviados para grupos bolsonaristas, são de Randolfo Antônio Dias, uma das cinco pessoas presas na sexta, dia 20.

Pergunto: é possível ler a fotomontagem desconsiderando o que acontece agora no país? É possível observá-la sem entender que atrás daquela vidraça não está somente Lula, mas milhões de pessoas expostas a um ambiente supersaturado de violência? De que imagens um país onde as duas últimas eleições foram as mais violentas da sua história precisa? De que imagens um país que acaba de ter as sedes de seus três poderes destruídas com a conivência das Forças Armadas necessita?

Apesar de ter sido publicada recentemente, a fotografia do presidente enquanto alvo não é novidade. Antes, é a continuidade de uma forma específica de representar principalmente – mas não só – líderes progressistas na imprensa brasileira.

Em 2016, ficou famosa uma capa da revista Veja na qual vemos, sob um fundo totalmente vermelho, a cabeça de Lula se desfazendo. Copiavam abertamente uma capa publicada em 2011 pela revista norte-americana Newsweek, que noticiava a morte do ex-chefe de estado líbio Muammar Kaddafi, assassinado pela população. A Veja achou uma boa ideia, no ano do impeachment de Dilma e em plena fervura da sopa de ódio ao PT, imitar a arte com a cabeça decapitada e sanguinolenta do ditador linchado para fazer referência ao hoje presidente do Brasil. Justificou cinicamente a escolha falando do “derretimento” do ex-metalúrgico, tentando minimizar o discurso de violência da imagem original.

Também ficaram conhecidas duas imagens da ex-presidente Dilma Rousseff. Na primeira, feita em 2011 por Wilton Júnior, ela aparece como se fosse transpassada por uma espada, ilusão de ótica captada durante um evento militar; na segunda, feita por Dida Sampaio em 2016, a ex-chefe de estado surge como se estivesse sendo engolida por chamas. Participava de uma cerimônia do acendimento da tocha olímpica. Ambas foram publicadas no Estadão e renderam elogios, críticas e, no caso de Júnior, um prêmio internacional.

Nós sabemos que, infelizmente, as mortes ou sacrifícios simbólicos dos dois líderes petistas não se resumiram – antes fosse – à imprensa. O caldo de ódio foi sendo engrossado e consumido cotidianamente em todo país. Vale lembrar alguns casos: em 2015, o policial federal Danilo Balas (isso mesmo, Balas) mostrou sem constrangimentos nas redes sociais que praticava tiro usando como alvo um desenho de sua chefe, Dilma. No mesmo ano, o advogado Matheus Sathler, que havia se candidatado, sem sucesso, ao cargo de deputado federal pelo PSDB do Distrito Federal, gravou um vídeo dizendo que a presidente seria decapitada caso não renunciasse. “Nós vamos arrancar sua cabeça e fazer um memorial”, ameaçou. Foi também em 2015 que adesivos em carros mostravam a então presidente, em um dos maiores shows de misoginia coletiva vistos no país, sendo penetrada por uma mangueira de gasolina.

Mesmo depois da deposição de Dilma, o desejo de morte contra sua figura serviu para capitalizar muita gente: em 2017, na loja Sniper, em Pernambuco, homens, mulheres e crianças “brincavam” de atirar usando como alvos desenhos de Lula e Dilma. No mesmo ano, alguns meses depois da publicação da capa da Veja com a cabeça do atual presidente, a marca Libertária lançou uma camiseta com esta estampa:

 

Em 24 de janeiro de 2018, dia do julgamento de Lula em segunda instância, O Globo publicou esta capa:

O fomento e a naturalização do desejo de morte voltado para duas figuras extremamente midiáticas transbordou e, como não poderia deixar de ser, sobrou para nós, sociedade. Bastava mostrar alguma ligação positiva com Lula ou Dilma para que muita gente virasse, também, alvo. No mesmo 2018 da capa acima, ano no qual o Brasil escolheu Bolsonaro presidente, vimos uma série de ataques e assassinatos em praça pública: a própria Folha publicou uma matéria sobre aquelas que foram consideradas as eleições mais violentas da nossa história. “A maioria envolve ataques de apoiadores de Jair Bolsonaro (PSL) contra gays, mulheres e pessoas vestindo símbolos da esquerda, como bonés do MST ou camisetas do PT”, diz o texto.

Como o tempo mostraria, 2022 seria ainda mais violento, e a série de ataques e assassinatos vitimaram predominantemente, de novo, pessoas que expressaram voto no PT. Os casos se multiplicaram: no Recife, um carro com uma bandeira de Lula foi alvejado, e um apartamento com bandeira do PT foi metralhado. Em Foz do Iguaçu, Marcelo Arruda foi assassinado no dia do seu aniversário pelo policial penal bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho; em Mato Grosso, Benedito Cardoso dos Santos, que votaria em Lula, levou 17 facadas de Rafael Oliveira, que votaria em Bolsonaro. Rafael tentou decapitar Benedito.

Não é fácil fazer esse passeio por tanta ameaça, morte, sangue, faca e bala. Mas para mim ficou claro, na discussão sobre a imagem já histórica de Gabriela Biló, como minimizamos, tanto imprensa quanto população, a barbárie na qual nos metemos. A diferença é que a primeira tem a primazia de produzir e difundir as imagens. Não é possível ler a fotomontagem com Lula sem ler a história recente do Brasil. Nele, circulam milhares de armas entre civis e funcionam centenas de células nazistas. Nele, foi enterrado recentemente, em Belo Horizonte, o corpo de Luana Rafaela Barcelos, uma menina de 12 anos baleada pelo bolsonarista Ruan Nilton da Luz enquanto sua família celebrava a vitória de Lula. Luz ainda matou Pedro Henrique Dias, de 28 anos. Atirou em outras três pessoas.

É possível analisar a foto de Gabriela, sem dúvida uma ótima profissional, sem lembrar desse som ao redor? É possível discutir a imagem escolhida pela editoria de primeira página da Folha desconsiderando a peculiar e histórica má vontade dos veículos de mídia com partidos progressistas? Por qual razão os jornais brasileiros estão em quase silêncio sobre as Forças Armadas, que vergonhosamente não repudiaram os ataques em Brasília? Por qual razão as fotos e nomes dos comandantes militares antidemocráticos, servidores públicos da nação, seguem protegidos e não aparecem com frequência nas primeiras páginas?

Discorrer sobre se a imagem montada é arte ou não é válido e rende um ótimo samba, mas agora, agorinha mesmo, tem uma parcela das Forças Armadas, das polícias e do empresariado brasileiro de olho na cadeira de um presidente eleito democraticamente. E eles mostraram, no dia 8 de janeiro, na bomba instalada em um caminhão que deveria explodir em um aeroporto, nos ataques no dia da diplomação do chefe do Executivo, que não estão brincando. Vi muita gente simplesmente esquecer que os memes e a doidera verde e amarela também matam e espancam. Deve ser o mesmo pessoal que só descobriu a desigualdade social do país durante a pandemia. Sobre tudo isso, tenho apenas uma pergunta: tu tava fora do Brasil, irmão?

A falsa simetria continua

Em diversos momentos, a foto criada por Biló foi comparada a imagens que também sugerem violência, mas com figuras da extrema direita, como Bolsonaro e Sergio Moro. Duas delas, inclusive, foram feitas pela fotógrafa: uma mostra o ex-presidente fazendo o gesto de arminha em direção a Moro. A outra, que nos remete à imagem de Dilma na cerimônia militar, dá a impressão de que Bolsonaro está a um passo de ter o pescoço ferido pela fina ponta de um suporte de bandeira.

Comparar essas imagens com aquela criada por Biló e publicada na capa da Folha implica em dois grandes erros. O primeiro é o fato óbvio de ambas se valerem de uma construção da fotógrafa (o recorte, o ângulo, etc.) a partir de fatos que aconteceram; a de Lula, como dito, é resultado de uma múltipla exposição feita para criar aquilo o que não aconteceu. Nessa constatação, não há qualquer juízo de valor: diferente de muitos colegas jornalistas e pesquisadores que respeito, sustento que jornalismo pode, sim, ser arte, uma vez que arte não é sinônimo de ficção. Se faz arte no jornalismo a partir da realidade: nas imagens, nas escolhas das palavras, no estilo adotado, na edição, nas múltiplas formas de publicizar a informação (o que dizer, por exemplo, das reportagens feitas em quadrinhos, como as de Joe Sacco ou Pablito Aguiar?).

Mas o fato é que mesmo uma ilustração, caricatura, colagem ou qualquer outra técnica que sugerisse uma bala dirigida ao coração do presidente de um país conflagrado e estivesse estampada hoje na capa de um jornal seria igualmente desnecessária. Não só: irresponsável, como é o caso da escolha editorial da Folha, cuja obediência ao próprio manual mostrou-se bastante singular.

Explico: quando foi questionado por seguidamente poupar o ex-presidente Bolsonaro da pecha de extremista de direita, o jornal usou o manual de redação como defesa. Segundo as normas internas, somente movimentos políticos violentos poderiam ser adjetivados como radicais. Falei a respeito nesta coluna. Mas, para sugerir a bala no peito de Lula, esse mesmo manual foi contrariado. Como lembrou o jornalista e escritor Lira Neto, o guia diz: “São proibidas adulterações da realidade retratada, tais como apagar pessoas ou alterar suas características físicas, eliminar ou inserir objetos e mudar cenários”.

Voltando às comparações: o segundo e maior erro na tentativa de equalizar as fotos de Bolsonaro e Moro com a de Lula é que, diferente do último, os primeiros em nenhum momento tiveram suas vidas ameaçadas com apoio da própria institucionalidade governamental brasileira, a saber, membros das Forças Armadas, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, sem falar nas polícias militares, estaduais. Em nenhum momento Bolsonaro sofreu uma ameaça de golpe. Em nenhum momento sua diplomação foi transformada em praça de guerra. Em nenhum momento grupos de empresários se reuniram para contratar um sniper para matar Bolsonaro ou Moro, como aconteceu com Lula. Em nenhum momento jornalistas e cinegrafistas foram perseguidos e achincalhados por turbas de eleitores de esquerda, centro, ou centro-esquerda.

Boa parte do assombro de quem criticou a imagem de Biló vem dessa percepção, e não de uma militância cega e sem capacidade de análise, como alguns boçais sugeriram nas redes. Aliás, o que surgiu de arrogância nesse debate também fica registrado. Teve gente querendo limitar a conversa a especialistas, como se as fotos circulassem apenas entre intelectuais, “semiólogos consagrados” e “jornalistas de renome”, e não para um público bem mais heterogêneo que tem autonomia e direito de se expressar.

Em um país que acaba de sofrer um duro golpe em sua já esgarçada democracia – e democracia começa com a gente vivo e sem medo de levar tiro – é preciso redobrar o olhar sobre aquilo que é produzido e publicizado. Nós, jornalistas, somos filtros e intermediamos o que acontece entre o “lá fora” e o público. Nossas escolhas nunca foram, e nunca serão, inocentes. E, se são editores e afins que determinam o que vai ser noticiado, são repórteres, fotógrafos e fotógrafas que, antes de produzir e oferecer material, devem refletir como seus textos, argumentos e imagens serão repercutidos – e principalmente ao que vão servir. Pode ser que ajudem um pai e uma mãe a celebrar em paz a vitória de um candidato e não ver a filha ser assassinada.

Pode ser que não.

O Observatório de Ética Jornalística (Objethos/UFSC) fez um interessante artigo sobre o presidente Lula e as capas da Veja, aqui.

Eu e Moacir dos Anjos escrevemos um artigo sobre jornalismo e arte para a Lumina, Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Análise: Ana Lira, fotógrafa

Por seis anos, um dos meus principais trabalhos, Voto!, foi dedicado a observar como a população brasileira materializava a sua raiva dos políticos e da política nacional ao rasgar, riscar e deteriorar os cartazes de propaganda política colados nas paredes das cidades.

Um episódio, porém, mudou toda a trajetória do trabalho e balançou bastante a minha relação com este princípio da fotografia que diz “clica primeiro e pensa depois”: eu encontrei um cartaz da campanha de Dilma Rousseff vandalizado de uma forma tão violenta que nem consegui levantar a câmera. Meu corpo doeu e eu fiquei paralisada, na frente da imagem, diante da quantidade de ódio que estava expressa nela.

Essa imagem me fez repensar o que faz realmente uma pessoa com uma câmera na mão. O que é isso que chamamos de fotojornalismo e fotografia documental? O quanto nossa relação corpo-câmera, diante da pressão e da competitividade para sermos inseridos entre grandes fotógrafos no mundo, acaba sendo canal de fluxo para as violências do inconsciente coletivo e do próprio circuito do fotojornalismo, que sequer temos tempo para avaliar que narrativa histórica é essa que estamos construindo.

Uma foto é boa porque fomos perspicazes e espertos? O que o fotojornalismo e a fotografia documental premiam é a capacidade de construir narrativas transformadoras ou premiam a competição entre corpos-lentes para ver aqueles que conseguem traduzir com mais propriedade seus fetiches de extermínio de quem parece inimigo do status quo colonial? Eu digo isso, porque fotojornalistas quase nunca se perguntam a que os seus inconscientes coletivos respondem.

A pressão das redações e o frisson “da boa foto” não permitem que essa pergunta seja feita. Muito menos, quando consideramos que a “a boa foto” para o editor leva à capa, a capa leva aos prêmios e os prêmios talvez levem a uma segurança financeira que permite que se tenha verba para comprar uma câmera nova quando a atual quebrar, já que no Brasil do euro e do dólar passando dos R$ 5, equipamento fotográfico e ouro são a mesma coisa.

Mas não é possível ficar nessa retórica da foto boa e premiada em pleno 2022, depois de quase sofrermos um golpe de estado que, sério, está sendo anunciado há vários anos. Dito isso, o que mais me chama atenção no debate sobre a imagem do Lula, feita pela Gabriela Biló, na Folha de S.Paulo, é o quanto ela manifesta o inconsciente coletivo do próprio veículo e sua narrativa histórica sobre o atual presidente. A questão não recai somente sobre Biló fazer a imagem, mas sobre como a Folha utiliza essa imagem para reforçar, junto com todas as outras que publicou nas últimas cinco décadas, o seu enredo histórico de rejeição a Lula. O título que diz “No foco de Lula, presença militar no Planalto é recorde” não se conecta com a imagem, porque um bom editor sabe construir seu discurso nas entrelinhas. O que se conecta com a imagem é o subtítulo que diz: “Até novembro, havia 1.231 membros das Forças Armadas cedidos à Presidência, 13 são exonerados do GSI, alvo da desconfiança”.

O tiro vem como resposta, porque Lula ri de ter impedido o golpe e desbaratado os esquemas do GSI dentro do próprio Planalto. E a editoria “esperta” brinca com a expressão “alvo da desconfiança” ao associar esse jogo de palavras a uma imagem em que Lula é o alvo. O inconsciente coletivo vibra ao manter seu desejo narrativo, e Gabriela Biló acha que o problema é sobre “hate”. Não é mesmo.

Correção: 25 de janeiro, 12h35
Uma versão anterior deste texto afirmava que Muammar Kaddafi foi um chefe de estado libanês. Na verdade, ele era líbio.

com The Intercept Brasil

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo