Revista Conteúdo: ‘Que tipo de educação a gente tem?’

Neste momento em que o texto-base do Plano Nacional de Educação (PNE) acaba de ser aprovado e que se aguarda a votação dos destaques na próxima segunda-feira (2), vale a pena reler a entrevista com as coordenadoras das secretarias de Assuntos Educacionais e de Assuntos Institucionais da Contee, Adércia Bezerra Hostin e Nara Teixeira de Souza, publicada na edição deste mês da Revista Conteúdo. Não deixem, claro, de acessar a revista na íntegra pelo link http://contee.org.br/contee/conteudo/26/.

naraO golpe de 1964, que instaurou os 21 anos de ditadura no Brasil, provocou sérios impactos na educação, que ainda hoje são sentidos por quem atua nas salas de aula, nas instituições de ensino, nos movimentos estudantil e sindical de trabalhadores do setor. Mais do que resquícios de um modelo econômico, político e pedagógico, porém, o que a educação brasileira segue enfrentando são ditaduras “invisíveis” que vão desde o processo de financeirização do ensino – ditadura do consumo, do descartável e do lucro que transforma educação em mercadoria – até posturas extremamente conservadoras semelhantes às adotadas pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade – como a vista na tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados – que ainda impedem a promoção de um ensino comprometido com a igualdade e o combate a todo e qualquer tipo de discriminação.

Neste bate-papo com a CONTEÚDO, as diretoras da Contee Adércia Bezerra Hostin, coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais, e Nara Teixeira de Souza, coordenadora da Secretaria de Assuntos Institucionais, que acompanham de perto os debates referentes à educação em Brasília, falam sobre os diferentes tipos de ditadura enfrentados hoje e sobre o papel dos educadores na formação crítica das novas gerações.

Quais as ditaduras que afetam a educação hoje no Brasil?

Nara – A ditadura militar de 1964 com certeza ainda tem interferência na situação de hoje. Com os 50 anos do golpe militar, pudemos ver um pouco mais explícita essa questão. Lógico, sabemos que tem gente que apoiou a ditadura ou que era contra, mas acho que nessa descomemoração – ou comemoração por alguns grupos específicos – conseguimos visualizar melhor essas influências existentes. Por exemplo, acompanhando o PNE, principalmente no que toca essa discussão de gênero que acabou tendo uma repercussão muito grande, vimos a influência desses setores mais reacionários. Foi pela questão de gênero, mas vemos também que é uma concepção de classe. Concepções reacionárias que, pelo menos para nós, interferem de forma muito acentuada na sociedade. A gente vê o papel, por exemplo, da Igreja Católica e das outras religiões. São pontos de vista que perpassam a questão das religiões, mas também de todo um pensamento conservador no qual detectamos esse fundo de atraso de pensamento, de atraso de concepção de educação.

Antes do golpe de 1964, o governo Jango estava com várias propostas de reformas. Uma delas era a reforma educacional e, se ela tivesse sido aprovada, possivelmente o pensamento sobre educação na nossa sociedade seria outro. É um “se”, mas o que temos é a realidade concreta do golpe militar, o qual, com certeza, mudou muito a concepção de pensamento em educação. Fui criada nesse período. Nasci em 1969 e minha educação, até a oitava série, por exemplo, tinha uma concepção de louvor ao golpe militar. Participei de uma gincana de comemoração dos 20 anos da “revolução de 1964”. Isso me marcou muito, essa concepção anticomunista e reacionária da sociedade. Tive a felicidade de atuar no movimento estudantil e ver que o que me ensinaram na escola era uma história completamente mentirosa e equivocada, mas muitas pessoas da minha geração ou da geração um pouco anterior à minha, que foram educadas sob o signo dessa “revolução” – porque não era ditadura o que se estudava nas escolas –, trazem essa carga de ideia de sociedade na qual temos ainda uma dificuldade muito grande de discutir alguns temas importantes, como a questão do aborto. Hoje, milhares de mulheres morrem por conta de aborto mal feito, ficam estéreis… tudo isso porque a sociedade não discute esse tema.

De outro lado, temos a questão do tipo de educação que a gente quer. A Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) e a UNE (União Nacional dos Estudantes), por exemplo – a Ubes particularmente, onde comecei a atuar – têm uma proposta, que já foi mudada ao longo dos anos, de uma “nova escola”. O que é essa nova escola? É uma mudança muito grande, por exemplo, no ensino médio, já que, dentro do ensino médio, temos ainda uma concepção de não saber para o que ele é. Ele educa para o quê, para o trabalho? Não educa. Para a cidadania? Também não. Então que tipo de educação esses jovens que cursam o ensino médio têm? Nas mudanças que aconteceram na educação, vimos também uma abertura muito grande ao capital. Então, hoje, grande parte das escolas, até boa parte das públicas, tem um sistema de apostila. E se você pegar o que se está ensinando nas apostilas – eu trabalhava com um livro excelente de história e de repente me deram uma apostila –, não tem criticidade nenhuma.

E isso é um resquício do modelo ditatorial também, não? A imposição de um pensamento massificado.

Nara – Com certeza!

aderciaAdércia – Na verdade, isso que a Nara coloca muito tranquilamente, além de ser resquício da época da ditadura, é uma questão curricular. Há questões que a sociedade deixou transpor a época da ditadura para serem uma questão cultural. Hoje, por exemplo, a mulher tem uma soma triplicada das suas responsabilidades, porque há uma mudança de postura, mas ainda não há uma mudança total e cultural. E o que se trata dentro dessa estrutura é exatamente isso: uma mudança curricular. Observamos que as lutas são constantes. Lutamos para que se tire o ensino religioso, mas o grupo vai e o insere no currículo. Uma das bandeiras de luta da Contee é a garantia de uma educação pública, de qualidade, laica. E quando buscamos essa questão de ser laica, queremos garantir que o Estado também assegure isso para a sociedade como um todo. Que a gente tenha essa opção. E que, no caso do setor privado, isso realmente venha a ser uma opção. Quando você insere o ensino religioso, você está mudando uma possível revolução realmente social. Questões de cunho religioso direcionam para todas essas outras questões pontualmente, porque são culturalmente muito fortes; o uso do contraceptivo, o aborto, a questão de gênero, isso tudo acaba inserido numa única questão. Então, quando tu deixas que um currículo se aproprie desse movimento, tu estás impedindo que a sociedade avance significativamente numa revolução social para um mundo diferente, melhor, possível.

Observamos também que, nessa questão curricular que vem enraizada desde a época da ditadura, essas amarras não foram rompidas. Quando olhamos para este contexto colocado desde as manifestações de junho do ano passado, vemos muitos jovens que foram para as ruas sem saber, muitas vezes, o que estavam fazendo e que agora fazem uma apologia à Marcha da Família, quando, na nossa época, estariam militando em movimentos sociais de mudança, para que o país fosse democrático.

Para vocês, enquanto professoras que lidam com essa juventude, que sentimento provoca pensar que, 50 anos depois do golpe, o país ainda necessita de uma reforma educacional e enfrenta discussões tão conservadoras quanto aquelas de 1964?

Nara – Aí é uma questão de classe mesmo. Não sofremos um golpe somente militar. Foi um golpe civil também. E aquele grupo que financiou e bancou politicamente todo o aparato do golpe é o grupo que estava naquele momento dominando nossa sociedade e que continua. O mesmo grupo. Muda às vezes uma coisinha ou outra nos discursos, mas o veio inteiro permanece o mesmo. Então, que tipo de educação a gente tem? Há um problema muito grande: hoje os nossos jovens são muito individualistas. Temos dificuldades de trazê-los para o movimento sindical. Temos dificuldade para inseri-los em algumas bandeiras que consideramos muito caras. Por quê? Porque muitos dos jovens estão preocupados com o quê? Com a sobrevivência direta e com as suas coisas de indivíduo. Não estão preocupados com uma transformação radical da sociedade. Aí tem a questão da educação. Que tipo de educação foi dada nesse período todo? Não é uma educação voltada, como coloquei antes, a fazer uma discussão crítica da sociedade. E o que uma análise crítica rasa pode pôr em mudança? Que alternativa tem a sociedade? “Não tem, vou cuidar da minha vida.” O projeto de uma sociedade transformadora e igualitária – que para mim é uma sociedade socialista – não passa para muitas dessas pessoas. Se a sociedade não tem um sonho de transformação, ela não muda. Parece que o mundo é imutável. Para muitas pessoas é isso aqui mesmo, a gente vai fazer no máximo uma mudançazinha ou outra, mas mudar de fato a sociedade a grande parte dos jovens acha que não consegue. Ou então é pontual: o ônibus, a pauta que afeta diretamente o indivíduo.

Mesmo na chamada democracia, essa questão da posição individual é muito séria. Por exemplo, os grêmios estudantis, que são um espaço fundamental para nossos jovens começarem a fazer uma análise de intervenção política dentro da sua escola. Quantos grêmios estudantis realmente funcionam? Na educação privada, nem existem e, quando existem, estão atrelados. E isso atrapalha, porque, para exercer o processo fundamental de se achar como sujeito de transformação, não pode haver só um projeto de transformação, tem que ser um exercício prático de cidadania. E onde nossos jovens podem ter esse exercício prático de cidadania? Quais espaços existem hoje? São muito poucos. Alguns espaços eles não aceitam ter, porque acham que são conservadores ou, por outro lado, muito ligados à esquerda… Aí vão para um discurso de “sou contra tudo”, “nada presta’”. E isso vai contra a nossa sociedade, porque você já não pensa que pode ter, como eu acredito, um projeto de transformação.

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Como isso se reflete na luta em defesa da educação?

Nara – Em relação ao PNE, por exemplo, vimos meninos e meninas muito novos com bandeiras como “Sexo sim, gênero não”, “Mais educação, menos gênero”. Se a gente perguntar para esses meninos o que isso significa, eles não têm noção. Quase comprei uma briga com um menino que estava atrás de mim na votação porque, quando o Jean Willys entrou, o garoto assim: “Ó o ‘veado’ lá! E o ‘veado’ acha que sabe alguma coisa? O ‘veado’ é um idiota que não sabe nada”. Aí o outro: “O que é que esse povo acha? Esquerda não sabe nada, não tem educação. Esquerda nem estuda! Eles não têm noção de nada! São um bando de pessoas que não têm projeto nem estudam. Esquerda nem sabe o que é educação”. Olhei para a cara dele e falei: “Olha aqui: sou professora de história, mestre em educação, sou comunista. E, portanto, sou de esquerda. Estudei em escola pública a minha vida inteira, não sou rica, nunca fui rica, e estudei. E tenho muito orgulho de ser comunista. Que história é essa que você está falando para mim que esquerda e comunista não estudam? Acho que tive muito mais acesso à educação, facilitado por muitas coisas, e tenho uma compreensão de história muito maior do que você. Infelizmente, acho que está faltando você estudar um pouquinho mais de história e conhecer sua realidade.” O guri olhou para mim e saiu. Passou um pouquinho, ele foi embora. Por quê? Porque se você tiver oportunidade de confrontar o discurso…

Não tem contraposição.

Nara – Não tem.

Adércia – A verdade, para ser muito pontual, é que vivemos numa sociedade de consumo, daquilo que é consumido e descartado imediatamente. Ao mesmo tempo em que eu consumo, eu descarto. Isso contaminou as relações e, inclusive, as bandeiras de lutas. Quero tudo o que é muito imediato, tudo o que está muito “na moda”. É quase como se nossas bandeiras de luta, nossas falas, nossos esforços estivessem passando pelo fast food. E como é que eu vejo que a educação entra nesse patamar? Por que a educação virou também esse grande debate daquilo que é imediato, daquilo que é rápido e daquilo que é individual? E por que hoje uma das principais bandeiras de luta da Contee é “Educação não é mercadoria”? Por esse panorama muito claro. Precisa-se disputar espaço; não se discutem mais as coletividades, aquilo que é necessário para um país melhor, soberano, para uma democracia que seja realmente democracia, que tenha avanço social e que seja de melhoria para aqueles que estão aqui e aqueles que vão ficar. Então, quando a gente coloca que uma das principais bandeiras de luta da Contee é “Educação não é mercadoria”, é justamente por isso: porque a gente precisa romper com essa lógica do consumo imediato. De que eu não estou lá para disputar o vestibular porque eu preciso passar por cima do outro para ter uma melhor condição. Construímos uma ilusão de avanço. Nesses dez anos tivemos, sim, uma melhor distribuição de renda. Em contrapartida, tivemos uma falsa ilusão de que modificamos de classe social. E essa falsa ilusão nos tornou também mais hipócritas, no sentido de que, se avancei, não discuto mais questões importantes que são a segurança, a saúde e a educação pública. Essas bandeiras passam a não ser mais prioritárias, porque acho que minha apologia ao plano de saúde privado, à educação privada, à segurança privada me traz mais conforto e avanço. E não se faz mais a discussão sobre aquilo que seria o importante: os serviços públicos e as políticas públicas do país.

A escola não prepara para isso, principalmente as instituições privadas. A educação pública necessita de recursos imediatos para um avanço significativo e, no setor privado, é necessário romper com essa lógica do capital, que é a lógica do consumo, do descartável, do instantâneo, como se educação fosse só uma escada. Hoje observamos o marketing que as escolas fazem para que o aluno compre aquele produto de forma imediata. Se ele não gostar, pode trocar por outro, e outro, e outro. Isso também modifica a lógica dos educadores que estão nessas instituições de ensino. Observamos a fragilidade desses educadores e a dificuldade de discutir com eles temas como gestão democrática, formação, currículo. Existe uma resistência por parte até dos próprios trabalhadores em educação de aceitar a importância dessas bandeiras, porque, também na lógica do imediato e da troca, eles se sentem coagidos em avançar espaços.

Então, é importante buscar como se vai fazer uma ruptura com o que se está instalado de uma forma que, olhando de fora, parece definitiva. Entendemos que há uma necessidade imediata de fazer um rompimento e de cada vez mais deixar explícito quais são os vieses da história, o que isso pode nos ocasionar no futuro. As gerações futuras vão começar a sofrer com isso. Hoje observamos que as empresas tratam os funcionários da mesma forma como a gente vem sendo tratada desde o jardim de infância. E os pais usam muito desse subterfúgio com as instituições de ensino, de manipulá-las nesse sentido, quando entram na lógica de que educação é um mercado e que, se não diz respeito à família, pode, então, ser trocada.

Como se estivessem realmente vendendo e comprando um produto…

Nara – Isso. Uma coisa interessante que a Adércia falou e que eu lembrei é o seguinte: destacamos muito as manifestações que ocorreram o ano passado e tive a oportunidade de discutir, nesse período, com alguns professores, muitos até de escolas públicas, principalmente. Teve alguns momentos que presenciei que foram muito importantes nessa discussão. Em Cuiabá, queríamos sair com as bandeiras das nossas entidades. Falaram “partido não”, mas entidades… E aí, no processo todo, houve impedimento também das bandeiras de entidades. Fui entrar com a bandeira da CTB e tomaram da mão, a bandeira do pessoal da CUT também. Em relação a essas bandeiras, não é só o que está escrito: UNE, Contee… São as nossas entidades, que têm um movimento histórico.

No momento em que fizemos um ato na Assembleia – e isso me chocou muito – um companheiro meu estava segurando a bandeira da UNE e era jovem também. Nessa hora foi um monte de gente para cima dele: “Abaixa”. Ele: “Não abaixo”. “Abaixa”. “Não abaixo”. Na hora em que vi ele estava sozinho e fui para a frente dele, junto com uma outra companheira. Ficamos ele, eu e a menina. E o povo todo para cima: “Abaixa senão a gente faz abaixar”. Estávamos cercados de meninos e meninas de 15, 18 anos… O guri segurando a bandeira da UNE e pensando: “Vou apanhar, mas não vou descer essa bandeira”. Nós, que viemos do movimento estudantil, sabemos o que significa aquela bandeira. É uma bandeira história, de resistência à ditadura militar! Era uma bandeira muito importante. Aí, num momento, meu marido chegou por trás e falou: “Desce que vocês vão levar porrada. Não vamos criar caso aqui, desce a bandeira”. Olhei para meu marido, meu olho começou a cair água… Falei: “Não, Miranda…”. E ele: “Desce que vocês vão apanhar”. Aí ele desceu a bandeira. Saí de lá morrendo. Aí tinha um menino do meu lado que falou: “Que merda esse negócio dessa bandeira! Que diabo é isso?”. Olhei para a cara dele, putíssima, e perguntei: “Você sabe o que é UNE? UNE foi a entidade que lutou e na qual um monte de gente morreu para você estar aqui neste momento, para você falar um monte de merda no meu ouvido e eu ter que ouvir porque você tem direito. Como eu tenho direito de segurar a bandeira da minha entidade e ele também. E você está falando que ele não tem. Sabe quantos companheiros da sua idade ou um pouco mais velhos que você morreram por essa bandeira que você mandou descer? Você não sabe. Eu sei. Você devia ter vergonha de falar para esse menino descer essa bandeira.” O guri parou, olhou para mim e perguntou: “Você é professora de história?”. Falei: “Sou”. Aí ele parou, olhou de novo e falou: “Desculpa. Desculpa”. E saiu.

Ou seja: como estamos educando aqueles guris? O que é a bandeira da UNE, a bandeira da Contee, a bandeira das entidades para esses meninos? O que estamos ensinando para eles? Então, na hora em que falamos em educação, é isso. Aquele momento ali significou muito para mim, porque não é uma coisa pequena. É uma entidade representativa construída com a morte de muitos companheiros e companheiras… Não é a bandeira daquele menino que a estava segurando, não. São bandeiras nossas, históricas, que estamos nas ruas segurando. Muitos companheiros que estavam lá, professores, se questionaram: “O que estamos ensinando para esses guris?” Nada. Nada de fundamental. Estamos ensinando para eles que vale você se dar bem na vida.

Nunca pensei em ficar milionária nem deixar uma fortuna para minha filha. Sempre penso em deixar para ela conceitos de uma sociedade na qual eu acredito. Então, enquanto professora, na hora que vemos que não estamos conseguindo fazer isso com nossos alunos, dói muito. Aquele momento no ano passado me doeu e essa questão do PNE me dói enquanto mulher e enquanto professora, principalmente professora de história. Porque se perguntarmos para esse menino que estava segurando o cartaz “Gênero não” na Câmara, que eu considero absurdo, ele não vai saber discutir. E isso é o mais grave, porque se houvesse diálogo, se ele estivesse defendendo uma causa dele… Mas não é. Então, que educação estamos praticando? Como estamos educando nossos jovens para as futuras gerações? Porque tem que ser além de apertar botão. Não dá para ter um Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) que só ensina o cara a apertar botão ou usar uma máquina. Isso não serve, é pouco. Temos que educar para ser cidadão, para compreender a sociedade. E uma leitura de sociedade, de história, de sociologia a gente não tem conseguido, mesmo tendo colocado sociologia e filosofia no currículo.

Como professora, acho que esse debate sobre o que herdamos desse período de ditadura militar e também desse pequeno período que a gente tem de democracia mostra que temos conseguido pouco. A educação tem que ser transformada de maneira a, de fato, educar para a nova sociedade. Por isso, neste momento, é necessário discutirmos a reforma educacional e tantas outras reformas que consideramos importantes para a sociedade. Tenho certeza de que não vou fazer uma revolução nem ver uma sociedade socialista ou comunista… Mas gostaria muito que meu netinho de cinco anos, que eu amo de paixão, vivesse numa sociedade melhor. E que tivesse pelo menos a condição de fazer uma leitura diferente do que a maioria dessa juventude pensa. Queria que fosse crítico, que soubesse história, que soubesse discutir filosofia, sociologia, que fosse preparado para o mercado de trabalho, mas que fosse educado, principalmente, para ser cidadão. E isso não temos conseguido fazer plenamente por conta do modelo que herdamos da ditadura militar e cuja barreira não conseguimos ultrapassar. A gente fala ditadura militar, mas não são “os militares”, e sim aquele setor civil reacionário que continua no poder.

Qual a relevância de se refletir sobre essas questões neste ano eleitoral?

Adércia – Justamente por ser ano eleitoral, necessitamos discutir as plataformas de luta e de mudança, porque a cada movimento a gente observa também um afastamento de uma grande parte das pessoas que acreditam na mudança. Os trabalhadores têm desacreditado do projeto de mudança social. E cada vez mais vemos um acalanto, né? As pessoas vão se acostumando com esse modelo instalado e não buscam mais a mudança com a mesma força. Quando fazemos uma análise pontual de como está o movimento sindical, observamos que sempre o cenário é o mesmo, tem se cristalizado. E ouvimos também uma segunda fala, assim: “Não se preocupe, em todo lugar está igual”. Não! Os grandes momentos de mudança aconteceram quando não quisemos mais o igual. Precisamos romper essa lógica. Este é um ano importante, um ano em que se discute plataforma de governo e projetos para o Estado. Há uma necessidade também de ultrapassar aquilo que a gente busca como projeto para o governo e para o Estado, para a nação, para que se tenha uma continuidade, para que não seja um projeto estanque. Precisamos de conquistas duradouras, precisamos romper com a lógica de que o que aconteceu pode vir a acontecer de novo. A gente não pode viver sob a sombra do medo, da dúvida. Aqueles que dizem que aquela forma foi “boa” não conseguiram compreender o que realmente significou, porque se mantiveram instalados tranquilamente em seus espaços. A ditadura passou por algumas pessoas e não mudou seu modo de ser. Os que eram ricos enriqueceram mais ainda, os que eram pobres ficaram miseráveis. E as pessoas perderam seu direito de ser, mudaram de identidade. É isso que queremos? Qual o projeto de governo que a gente quer discutir este ano? Quais são as plataformas de luta?

Temos que pensar também em deixar de discutir questões individuais e, cada vez mais, discutir o coletivo. Precisamos resgatar nossa identidade; cada trabalhador precisa entender que é um cidadão e que, sendo cidadão, tem direitos e alguns deveres, principalmente o dever de lutar pela mudança. Durante o regime militar, tínhamos pessoas obrigadas a partir sem avisar os parentes, mudar de identidade… Mas, se pensarmos um pouquinho, a cada dia a gente muda de identidade sem estar na época da ditadura, porque você rompe com seus princípios cada vez que o patrão faz você burlar um companheiro seu de trabalho, quando você coloca um professor que não está preparado para avançar nessa discussão, quando você não garante formação para aquele professor, quando – voltando ao que a Nara falava das cartilhas e dos apostilados – formata um aluno padrão, sem respeitar sequer as particularidades de cada uma das regiões onde esses alunos estão. E padrão de quê? Um suposto padrão de “qualidade” que se busca para uma sociedade e que não é uma sociedade alternativa. Precisamos de uma sociedade de mudança. Se na época da ditadura as pessoas perdiam a identidade porque tinham que mudar de país, agora estamos perdendo-a dentro do nosso país, porque estamos sendo padronizados.

Essa é outra “herança” diretamente relacionada à campanha da Contee que vocês mencionaram, “Educação não é mercadoria”, porque, se o processo de financeirização data dos anos 2000, a opção de expansão via setor privado começa no governo militar…

Adércia – Temos observado esses conglomerados que vêm de fora do país se instalando ao redor e tomando força, passando por cima das características de cada uma das nossas regiões. O conglomerado não vem apenas se instalar e trazer uma educação de fácil acesso. Vem principalmente roubar aquilo que há de mais verdadeiro, que é a identidade dos cidadãos do nosso país. Essa formatação que vem sendo feita com os nossos jovens vai nos custar muito caro no futuro. Por isso é fundamental a discussão, neste ano, de uma das nossas principais bandeiras de luta: que se regulamente o setor privado e realmente o Estado assuma a obrigação de zelar pela educação. E que o setor privado seja de fato uma opção, e não a salvação para quem quer ultrapassar quem ficou na escola pública.

Nara – A gente que acompanha o PNE vê essa dificuldade em relação às nossas bandeiras. Estamos falando de democracia e educação e era uma proposta nossa de emenda, que foi aprovada na Conae, a garantia de gestão democrática. Mas em termos de gestão democrática para o setor privado não conseguimos avançar. Por quê? Porque será que dentro de uma educação mercantilista, com influência do capital estrangeiro, há espaço para ter democracia? Não tem. Então, essa posição de descrença de muitos companheiros que a Adércia coloca precisa ser modificada; a crença na mudança precisa ser resgatada.

Da Revista Conteúdo – Número 26. Leia a Revista Conteúdo na íntegra

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