Lula: ‘Democracia é bom na casa do outro. Aqui nem direito de resposta temos’
São Paulo – Em discurso dirigido ao ex-presidente da Espanha Felipe González, na Conferência “Novos desafios da democracia”, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva exortou o partido ontem (22) a repensar sua prática, voltar a dialogar com a juventude e falou “da necessidade de rediscutir as utopias, para que a gente possa fazer essa meninada sonhar ou aprender com eles como fazer a gente voltar a ter sonhos”.
Lula também criticou o partido e o governo. “Não sei se o defeito é nosso, se é do governo. Eu acho que o PT perdeu um pouco a utopia. Hoje a gente só pensa em cargo, em emprego, em ser eleito, ninguém hoje trabalha mais de graça.” Mas o ex-presidente disse também que o PT é “o mais importante partido de esquerda na América Latina”.
Sem se excluir, ele reconheceu as dificuldades que as antigas lideranças têm no atual processo político brasileiro. “Eu tô falando as mesmas coisas que eu falava em 1980. Eu penso se não está na hora de a gente fazer uma revolução nesse partido, uma revolução interna e colocar gente nova, que pensa diferente, mais ousada, com mais coragem do que a gente. Temos que definir se queremos salvar a nossa pele e nossos cargos ou salvar o nosso projeto.” Segundo ele, é preciso “criar um novo projeto de organização partidária neste país”.
E citou partidos como o Podemos (Espanha) e outras iniciativas populares no Brasil e no mundo, como experiências a serem observadas e valorizadas. Mas alertou: “Dos movimentos de hoje, que surja um partido melhor que o PT, mas que surja. Porque quando se nega a política, o que vem é muito pior”. O ex-presidente enalteceu a vitória do Podemos na Espanha e disse que “é mais ou menos como o quando PT ganhou Diadema em 1982”, observando considerar fundamental, no Brasil, não apenas a esquerda repensar seu papel. “Que surja no Brasil um partido melhor do que o PT, mas que surja”, disse, reiterando que não acredita em soluções fora da política – num ambiente em que os meios de comunicação apostam na desqualificação da política como meio de desestimular as pessoas a se interessar e participar dela.
Lula considera que a desconstrução da política seria um retrocesso em relação a um dos principais avanços alcançados nos últimos 12 anos. “Nunca antes na história do Brasil o povo exerceu tanto a democracia e participou das decisões do governo como no governo do PT (…) Se perguntarem qual foi meu maior legado, foi o exercício de democracia que praticamos no governo”, afirmou.
Ele também não deixou de falar no papel da imprensa brasileira e dos oligopólios dos meios de comunicação. “A regulação da mídia (no Brasil) é de 1962, no tempo em que ligar do Rio Grande do Sul para Brasília, segundo o Brizola, demorava seis horas. Ainda tem nove famílias que controlam praticamente todos os meios de comunicação no país. Toda vez que você fala em regulação dos meios de comunicação vem bordoada de todo lado. Democracia é muito importante na casa do outro. Aqui no Brasil nem direito de resposta temos mais”, ironizou.
Como sua fala foi direcionada a Felipe González, o ex-presidente brasileiro usou em diversos momentos exemplos passados ou presentes da Europa para ilustrar seu discurso.
Para Lula, a crise financeira mundial iniciada em 2008 “se transformou numa crise muito mais política sobretudo por falta de lideranças políticas”. O mesmo problema vivido pela esquerda brasileira, de modo geral, ou pelo PT, em particular. “Vejo a esquerda europeia ter imensa dificuldade de discutir a imigração, e a direita deita e rola, porque para a direita é fácil: é ser contra. A gente deveria assumir a postura de querer a imigração. Os ricos não vêm de barco.”
Sobre política econômica, o ex-presidente metalúrgico não falou diretamente do governo Dilma Rousseff, mas mencionou a Grécia e os países europeu que adotaram soluções de ajustes neoliberais para combater a crise. “O ajuste só fez com que a dívida bruta e a líquida crescesse.”
Numa análise retrospectiva sobre as crises vividas pela democracia no mundo, Lula lembrou o processo iniciado com a Primavera Árabe, mais um golpe nas utopias. “Quanta gente não ficou maravilhada quando começou a Primavera Árabe? E agora quem está governando? Os militares outra vez.”
Ele criticou os assassinatos dos líderes árabes iraquiano Saddam Hussein (em 2006) e líbio Muamar Kadafi (2011) e afirmou que eles prejudicam a democracia mundial. “A morte do Kadafi não tem explicação para a democracia. Porque a Líbia estava quieta, não incomodava ninguém. De repente resolveram transformar a Líbia em inimiga da humanidade, destruíram, e colocaram uma coisa mil vezes pior do que tinha. E ninguém responde por essa responsabilidade.” Segundo Lula, a democracia “nunca correu tanto risco como corre agora”.