Proposta de educação no campo de Bolsonaro está alinhada com o agronegócio
Letícia Maria Fortes de Campo sempre teve vontade de ler o mundo. Seus olhos percorriam desde rótulos de embalagens de produtos a livros infantis. Com isso aprendeu a ler e escrever muito rápido, já no primeiro ano escolar. Aos dez anos, Leticia é filha de assentados e estuda na Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, que fica a 60 quilômetros de Londrina.
Sua disciplina favorita é o português. Ela conta que adora as aulas de redação e para escrever se inspira em histórias da vida real. O texto que ela mais gostou de fazer, por exemplo, foi a história de uma professora que lecionou em sua escola antes mesmo dela nascer.
Letícia conta que Cidinha morreu defendendo o direito à educação e sua luta serve de inspiração pela força que a professora teve como mulher. “Eu gosto de escrever sobre pessoas que marcam a história. Escrevi sobre a professora que lutava pelo direito dos educadores, mas sofreu um acidente de carro quando voltava da cidade. Ela foi uma mulher muito lutadora e a história dela é muito bonita”.
Agora, no entanto, a educação e as histórias de Letícia, Cidinha e de milhares de crianças que vivem em assentamentos e acampamentos rurais estão ameaçadas. E desta vez os ataques não partem de pistoleiros do agronegócio, mas do próprio governo federal. Desde a campanha eleitoral o presidente Jair Bolsonaro (PSL) já atacava as escolas do campo afirmando que iria fechá-las. Em entrevista à revista Veja o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, afirmou que pretende fechar as escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e chamou as escolas públicas do campo de “fabriquinhas de ditadores”.
Além disso, o governo Bolsonaro qualifica o MST como organização criminosa e defendeu o direito dos fazendeiros utilizarem armas de fogo quando tiverem propriedades improdutivas ocupadas.
Educação na mira
Mesmo antes da eleição de Bolsonaro, a educação no campo já vinha sofrendo um conjunto de ataques significativos, especialmente após o golpe de 2016, que tirou Dilma Rousseff da presidência. Os principais retrocessos foram na qualidade de ensino, na redução de verbas destinadas às unidades rurais e no desinvestimento na formação de professores. Agora, encaram a criminalização de sua proposta educacional.
Erivan Hilário, do setor de educação do MST, explica que há uma política intencional de fechamento das escolas do campo que está alinhada com o agronegócio.
“O projeto defendido por esse governo e até pelo governo Temer é um projeto predador que destrói a natureza e esse projeto tem nome: é o agronegócio. É o que temos de mais perverso e atrasado em termos de desenvolvimento humano.Ele não respeita a natureza, cada vez mais libera agrotóxicos e cria um campo sem gente e sem vida. E nesse projeto de desenvolvimento não há lugar para escola do campo”, protesta.
O dirigente acrescenta que a primeira conquista dos camponeses foi mudar o imaginário desse trabalhador rural que passou a reconhecer que eles têm direito à educação. Para Salomão Ximenes, professor de política públicas da UFABC, o atual governo ameaça censurar e cercear comunidades camponesas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e caiçaras de acessar a educação e com isso afirmar seus direitos e seu modo de vida.
“Há uma tentativa de impor até pela medida de força uma visão de educação que é dita como neutra, não política, mas que visa silenciar qualquer perspectiva político-pedagógica que seja questionadora, como são muitas das escolas do campo. Sobretudo as que estão organizadas pelos movimentos sociais e criticam o modo de produção, os agrotóxicos, a grande monocultura, ou seja, o agronegócio”, analisa Ximenes.
De acordo com dados do MST, já foram realizados 320 cursos via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 40 instituições, e se formaram 165 mil educandos no ensino fundamental e médio e em cursos técnicos e de nível superior, como agronomia, agroecologia, medicina veterinária, história, direito, serviço social e cooperativismo. Atualmente, existem mais de 100 cursos de graduação em parceria com universidades públicas por todo o país.
Pronera
O Pronera foi um marco na educação do campo, pois possibilitou a elevação do nível de escolaridade das famílias camponesas e formou educadores que podem atuar nos territórios onde vivem. O programa, que apoia projetos de educação voltados para o desenvolvimento das áreas de reforma agrária, é um dos que está sob risco de ser extinto, segundo o coordenador do setor de educação do movimento.
“Concretamente não existe uma posição que o Pronera acabou, mas um das formas de acabar com uma política de combate a desigualdade é não financiar, não colocar recursos nessas iniciativas”, explica.
Outros ataques também partiram de emissoras alinhadas com o bolsonarismo, como foi o caso da reportagem da Record que atacou as escolas do MST e os Sem Terrinha, como são conhecidas as crianças que fazem parte do movimento, acusando as escolas do campo de fazerem “doutrinação ideológica”.
No entanto, o que a série de reportagens “Saberes do Campo” constatou foi que essas escolas públicas, mesmo em assentamentos, oferecem aprendizados baseados no currículo das escolas cidades, mas também ligados território.
O educador Márcio José Barbosa defende que a escola cumpre um papel essencial no acesso à educação na zona rural. “A gente não doutrina ninguém. Queremos que as crianças aprendam o máximo possível. Eu vi essa reportagem da Record e não concordo em nada com ela. É uma matéria preconceituosa, que atende ao desejo do governo de criminalizar o movimento e precisamos fazer o contraponto. O que a gente faz é trabalhar os conteúdos e garantir a escolarização das crianças no assentamento e no acampamento”, reforça o professor da Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, Paraná.
Bolsonaro já afirmou que poderia transformar o ensino do campo em uma modalidade “à distância”. Para o pesquisador em educação do campo da UFSCar, Luiz Bezerra Neto, a educação à distância só seria uma alternativa viável em locais onde os estudantes têm dificuldades de deslocamento, como no caso de comunidades ribeirinhas do interior do Amazonas. Porém, é exatamente nesses lugares é que existe falta de condições que viabilizam a EAD — desde energia elétrica até a falta de sinal de internet. Ele acredita que o projeto do governo Bolsonaro é destruir a escola pública e o caminho para não ter mais retrocessos é a mobilização popular.
“É preciso muita luta para impedir a criminalização de movimentos sociais que são os que lutam por melhorias nas políticas públicas, sobretudo à educação no campo. Não vejo muitas perspectivas de melhora com esse pessoal no MEC. Porque parece que o objetivo deles é destruir a educação, não só a educação no campo, mas a que leve o povo a pensar, a ter uma escola a ter um mínimo de qualidade”, avalia o especialista.
A reportagem entrou em contato com o Ministério da Educação solicitando informações sobre as propostas e programas voltados à educação no campo, assim como os desafios e o que está previsto na área pelo governo Bolsonaro, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.