Pregação de Bolsonaro contra urna eletrônica repete Trump e arrisca judicializar eleição de 2022
Presidente volta a semear a suspeita sobre as garantias do voto eletrônico. Comissão na Câmara debate proposta de alteração no sistema
O sistema de voto eletrônico —e suas garantias— se perfila como um dos terrenos de batalha em uma campanha eleitoral cujo cenário mais provável agora é a busca da reeleição contra seu principal opositor, o ex-presidente Lula. As críticas de Bolsonaro à urna eletrônica não são novas. Na última campanha, o militar reformado já alertou que só aceitaria o resultado se ele ganhasse. Venceu. Sua tese, muito divulgada nas redes sociais e negada pelas autoridades eleitorais, é que o voto eletrônico não é auditável.Os bolsonaristas que se manifestam de tempos em tempos com a camisa da seleção costumam levar às ruas do Brasil reivindicações variadas: o aval para impor medidas autoritárias camuflado sob o lema “Presidente, eu autorizo” se mistura com críticas ao confinamento, ao Supremo Tribunal Federal e ao que é um orgulho nacional, a urna eletrônica. Há 25 anos os brasileiros deixaram as cédulas para trás. Mas os cartazes que pedem “voto impresso e auditável já” se transformaram em uma constante nas manifestações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro empenhado em semear dúvidas sobre o sistema de votação vigente e agitar as suspeitas de fraude. Faltam 16 meses para as eleições presidenciais.
O desenlace das últimas eleições dos Estados Unidos deu nova munição a Bolsonaro. A negativa de Donald Trump a aceitar sua derrota e a guerra aberta que empreendeu para tentar demonstrar uma fraude nas urnas da qual as instituições não encontraram indício deram asas a Bolsonaro para emulá-lo. Foi um dos últimos mandatários a parabenizar o hoje presidente Joe Biden e intensificou o discurso de fraude. “Se não tivermos voto impresso em 2022, alguma maneira de auditar o voto, teremos problemas piores dos que nos EUA”, proclamou o ultradireitista em janeiro.
Em suas falas dos últimos meses ganham protagonismo teorias conspiratórias que impediriam sua reeleição. A ideia defendida por Bolsonaro não é voltar ao voto com cédula, e sim manter a urna eletrônica com a novidade de que o eleitor receberá um comprovante impresso de seu voto.
É uma causa que serve como uma luva na estratégia de Bolsonaro, como diz a cientista política Daniela Campello, da Fundação Getulio Vargas: “Este Governo tem grandes dificuldades para construir projetos, alianças. É um Governo que destrói as coisas, destrói a política ambiental, a política externa… Esta é mais uma oportunidade de gerar o caos que ele aproveitará”.
O discurso bolsonarista teve força suficiente para que a Câmara dos Deputados criasse dias atrás uma comissão para debater uma proposta de emenda constitucional que implantaria esse comprovante impresso do voto. Já foi tentada antes, sempre foi recusada.
Mas o ambiente está tão contaminado que o ministro Luís Roberto Barroso, que preside o Tribunal Superior Eleitoral, lidera uma campanha institucional em defesa do sistema vigente. “Jamais aconteceu nenhum caso comprovado de fraude. Pelo contrário, eliminamos os casos de fraude que eram comuns”, afirma categórico Barroso no vídeo em que detalha em tom didático os segredos da urna. Entre outras vantagens que cita, a rapidez da apuração. Em um país de tamanho continental com 150 milhões de eleitores, o resultado é divulgado na mesma noite.
Os brasileiros adoram as novidades tecnológicas. Caem rápido no gosto. Quando a pandemia começou, comércios e empresas se mudaram em um abrir e fechar de olhos ao WhatsApp. O voto eletrônico estreou em 57 cidades nas eleições de 1996, quando somente poucas pessoas navegavam pela internet e os celulares eram novidade.
Os pais da urna foram cinco homens funcionários de institutos públicos de pesquisa e do tribunal eleitoral. Foram apelidados de Os Ninjas porque o projeto era supersecreto e três deles descendiam de imigrantes japoneses.
A cientista política Campello também coloca a estratégia de Bolsonaro em sua imitação constante de Trump, mas afirma que o mandatário está cada vez mais frágil e sustenta que essa tendência aumentará nos próximos meses: “Mesmo sabendo que as instituições norte-americanas tiveram capacidade muito maior de responder a Trump do que as brasileiras têm para responder a Bolsonaro, duvido que um presidente que chega muito enfraquecido à eleição tenha a capacidade de mobilizar pessoas suficientes para criar esse caos”.
Durante 25 anos o Brasil realizou eleições sem grandes sobressaltos. O problema mais recente foi um atraso nas municipais do ano passado atribuído a um ataque digital. De qualquer maneira, o resultado não foi divulgado na hora do jantar, mas veio antes da meia-noite.
Com o passar dos anos a urna foi perdendo peso até chegar aos nove quilos que pesa cada uma das 500.000 distribuídas da última vez. São aparelhos fáceis de usar e resistentes o suficiente para aguentar o calor tropical, travessias amazônicas e baterias para 12 horas se a luz acaba. Em cada eleição a imprensa informa as façanhas dos funcionários eleitorais e dos militares para garantir as votações no Brasil mais remoto. Os resultados são enviados por satélite.
A grande vantagem da urna eletrônica, dizem seus defensores, é que não está conectada à internet, o que a princípio a blindaria de ataques. O aparelho, entretanto, é submetido a outros testes incluindo um aberto ao público. Durante uma semana, técnicos em computação, hackers, policiais e partidos são convidados a atacar o sistema para detectar possíveis vulnerabilidades.
A adoção do voto eletrônico também contribuiu para “dificultar a judicialização da política, possibilidade em que Bolsonaro obviamente está apostando”, frisa a cientista política. O juiz Barroso alertou na sexta-feira que, com o voto impresso, “o resultado eleitoral acabará sendo judicializado”. E afirmou que as mudanças significarão mais gastos, maior risco de quebra do segredo do voto. Em sua opinião, será um retrocesso: “Como precisar ir ao banco para fazer uma transferência e usar fichas nos orelhões”.