A criminalização dos cientistas na era dos ataques às universidades
Estamos vivendo momentos de muita agitação e que têm nos levado à comoção, e agora os holofotes se voltam às universidades e a à ciência.
A era do ataque às universidades e à ciência recomeçou no ano passado (havíamos visto isso na década de 1990). Primeiro vieram notícias de degradação, de distorção do fazer e do trabalho desenvolvido nas universidades públicas, na saúde pública, na pesquisa e na ciência em prol do desenvolvimento do país.
Depois, um relatório do Banco Mundial que pretende realizar uma análise sobre o gasto público do Brasil e identificar alternativas para a redução do déficit fiscal, mas desconhece a realidade brasileira, o perfil sócio econômico dos atuais estudantes e o custo do aluno em uma universidade que tem pós-graduação e extensão.
Surpreendidos e bastante chocados, recebemos a notícia da prisão humilhante do reitor da UFSC, sem provas, e que o levou ao suicídio. Passados vários meses, nada se provou contra o reitor, que perdeu a vida para não perder a honra. Algumas semanas depois, outro reitor, o da UFMG, juntamente com vários outros ex-reitores, foi levado coercitivamente para depor sobre algo que ele poderia ter falado sem qualquer problema ou impedimento. Bastava chamar.
Agora inauguramos mais uma etapa: a da criminalização de cientistas. Esses seres ilibados, que vivem para estudar, que deixam de lado o descanso, a família, o sono e que muitas vezes passam a vida de maneira simples, apesar do esmero intelectual.
Não raro são professores que formaram muitos profissionais que se tornaram importantes e ricos. Estudam e pensam para conseguir entender os princípios da vida ou formar novos conceitos, ou descobrir o que pode trazer o bem para alguém, o alívio para uma doença, a descoberta de um novo método de diagnóstico, de uma nova vacina, de uma nova forma de construção de casas, de um novo aparelho para a comunicação, de novas tecnologias para a indústria, para a pesca, para a agricultura, que fazem cálculos, descobrem teoremas ou que pensam como se organiza o universo.
O caso das recentes acusações feitas ao Prof. Elisaldo Carlini nos assustou e nos indignou. Professor emérito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp), Carlini é um dos pioneiros da Farmacologia do nosso país. Infelizmente, vem sendo criminalizado em razão de sua pesquisa sobre drogas medicinais à base de cannabis sativa (princípio ativo da maconha), pelo qual é internacionalmente reconhecido. Foi intimado a depor à polícia de São Paulo no dia 21/2, sob a acusação de fazer apologia ao crime, devido à sua pesquisa.
O Prof. Elisaldo Carlini formou-se em Medicina pela Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) em 1956 e é um dos maiores especialistas em entorpecentes do Brasil, um dos mais respeitados internacionalmente, tendo estudado os efeitos da maconha e de outras drogas em nível experimental durante toda sua vida profissional.
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Ao longo dos seus 88 anos, foi condecorado duas vezes pela Presidência da República por seu trabalho como pesquisador, citado 12 mil vezes em pesquisas científicas nacionais e internacionais. Foi presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e membro do Conselho Econômico Social das Nações Unidas (Ecosoc/ONU).
Doutor honoris causa de inúmeras universidades e instituições dentro e fora do país, Carlini também é diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), está no sétimo mandato como membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems, da Organização Mundial da Saúde (OMS). E continua ativamente debruçado em suas pesquisas experimentais, bem como na formação de doutores nessa área. Sua carreira e sua trajetória como intelectual e cientista demonstram claramente que o Prof. Carlini vive uma vida acadêmica em dedicação exclusiva. Sem nenhum outro sentido a não ser o desenvolvimento da ciência.
Os fatos ocorridos com Carlini não nos desanimam, simplesmente nos mostram o quão importante é defendermos o nosso legado, o nosso país. O quanto queremos fazer ciência e produzir conhecimento e não simplesmente comprar conhecimento a um alto preço. Em um momento em que as universidades públicas, que desenvolvem pesquisa de qualidade, lutam para continuar realizando ciência e formar profissionais, além de projetos sociais, torna-se ainda mais importante defender a vida e a obra do Prof. Elisaldo Carlini, um símbolo no qual devemos nos espelhar.
Desde então, inúmeros atos têm sido realizados em seu favor, cartas de apoio foram escritas e um abaixo-assinado, iniciado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciência (ABC), já recebeu milhares de assinaturas.
Ao nos solidarizarmos com Carlini, reafirmamos o quão fundamental é o desenvolvimento científico, sem o qual não se pode conquistar a evolução da condição humana. Só assim atuaremos por um conhecimento universal, pela ciência e, principalmente, pela liberdade.
*Soraya S. Smaili é professora e reitora da Universidade Federal de São Paulo.