A imprensa que insiste na polarização é cúmplice na barbárie

Mesmo após anos de evidências e fatos, como o assassinato de Marcelo Arruda, jornalistas e veículos ainda investem em uma polarização que nunca existiu

A ROUPA MAIS PREZADA pela maioria dos jornalistas é aquela costurada com o fio da objetividade. Sentem-se não apenas mais bonitos, mas principalmente mais blindados e, portanto, mais seguros, com ela. Tornam-se semi-deuses: enxergam tudo do alto, sem se misturar com mesquinharias cotidianas como posicionamento político (coisa de ativista) e as questões do machismo (problema das mulheres), do racismo (problema dos negros) e do classismo (problema dos pobres).

Para costurar essa roupa-escudo, os jornalistas usam como principal matéria-prima os fatos e as evidências. É algo que vai na mesma linha do “cientificamente demonstrado”. Se algo aconteceu daquele jeito, só pode ser explicado pela descrição da ocorrência, como se um acontecimento não tivesse passado, contexto, futuro, raiz.

Pois bem, vamos brincar de Jornalista Equilibrado Usando Terno e Dono de Algum MBA Gringo e levar em consideração que os fatos são suficientes para explicarmos as coisas que ocorrem “lá fora”.

  1. Moa do Katendê: assassinado com 12 facadas por um eleitor de Bolsonaro durante o primeiro turno das eleições presidenciais em 2018 após declarar seu voto em Fernando Haddad.
  2. Jornalista espancada com pedaço de ferro e ameaçada de estupro também no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. Saía do local no qual havia acabado de votar quando dois homens a arrastaram pelo braço ao verem seu crachá de jornalista. Os agressores disseram que ela era “de esquerda”. Um deles usava calça jeans e uma camiseta preta com a foto de Jair Bolsonaro (PSL) e os dizeres “Bolsonaro Presidente”.
  3. Em uma lancha, ao lado de apoiadores, Bolsonaro dança um funk que compara mulheres de esquerda a cadelas. Dezembro de 2021, durante as férias do presidente do país, no Guarujá, litoral de São Paulo.
  4. Um compilado de fatos: ataques coordenados contra a jornalista Patrícia Campos Mello; Marielle Franco; “Fuzilar a petralhada”; “Varrer essa turma vermelha do Brasil“; “Petralhada, vai tudo vocês para a ponta da praia” (lugar de desova de corpos na ditadura).
  5. Jair Bolsonaro concede indulto ao deputado Daniel Silveira, condenado pelo STF após atacar a corte e dizer que imaginava ministros “levando uma surra”.
  6. Nas últimas semanas, diversos atos violentos em eventos envolvendo a campanha de Lula foram registrados, desde a explosão de bombas caseiras com fezes à invasão de reuniões.
  7. O assassinato do guarda municipal e tesoureiro do PT Marcelo Aloizio de Arruda, que comemorava seu aniversário de 50 anos quando foi atacado pelo policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho. O caso possui semelhanças com o ocorrido com Moa do Katendê: no caso deste, o criminoso se envolveu em uma discussão, foi até em casa e se armou com uma faca do tipo peixeira. No segundo, o assassino deixou mulher e filha em casa e voltou com sua arma de fogo. Mas Marcelo também estava armado: morreu após disparar contra Guaranho.

Eu sei, eu sei: você já leu tudo isso que está aqui. A gente se engana achando que jornalismo trata necessariamente de novidade. Na verdade, ele tem muito de repetição. E é exatamente isso que está acontecendo desde o último terrível fato elencado aí em cima, o assassinato de Marcelo. Mesmo após anos de evidências e fatos que desenham um ambiente político novo no Brasil, no qual o bolsonarismo passa a mirar diariamente uma arma real ou simbólica contra nossas cabeças, uma penca de jornalistas insiste em colocar o campo democrático na mesma balança do discurso de morte e extermínio do presidente.

Mas não é de qualquer “campo democrático” que estamos falando: é preciso nomear o ex-presidente Lula para entender melhor o fenômeno dos jornalistas e/ou articulistas “objetivos” que ignoram os adorados fatos quando o ex-metalúrgico ou o Partido dos Trabalhadores estão na roda.

Nos últimos dias, artigos como o escrito por Ricardo Kertzman, na IstoÉ (coloca Lula e Bolsonaro como “as bestas do apocalipse”), e o de Fábio Zanini, na Folha (“Ato de bolsonaristas pelas armas, fala de Lula e crime no Paraná mostram clima desfavorável à pacificação”), entre outros, nos mostraram como barbárie também se desenha a partir do ar-condicionado do home office ou das redações.

“Nesse ambiente, eventos banais tornam-se mortais, especialmente se os dois lados estiverem armados”, diz um trecho do artigo do último colunista. Essa é uma falsa equivalência estarrecedora, e não somente pelo fato de dezenas de eventos violentos pulularem após o espraiamento do bolsonarismo no país, mas por diminuir o peso imenso da caneta e do discurso de alguém que está no poder – e ainda turbinadíssimo pelo Centrão.

Um lado é o presidente do Brasil. O outro é um candidato.

Um lado é o presidente do Brasil. O outro é um candidato.

Vou repetir: um lado é o presidente do Brasil. E ele é parte máxima de nossa institucionalidade.

A polarização política sempre existiu no país. O que é novo entre nós e que continua a ser tratada com punhos de renda é a violência do bolsonarismo.

A polarização política sempre existiu no país. O que é novo entre nós e que continua a ser tratada com punhos de renda é a violência do bolsonarismo. O que não é novo entre nós é uma imprensa dotada de uma visão precária de democracia. Acho muito ruim que o candidato elogie atos violentos como o realizado pelo ex-vereador Manoel Eduardo Marinho, conhecido como Maninho do PT, como fez em um evento no fim de semana. Mas comparar essa fala infeliz ao paredão de violência do bolsonarismo é forçar a barra.

Perdi a conta do número de pessoas que me disseram ter vontade de se expressar politicamente usando bandeiras ou adesivos em seus carros, janelas, roupas. Não o fazem por uma razão simples: medo de apanhar na rua. Ou, como no caso de Marcelo, de serem assassinadas.

Vocês têm notícias de bolsonaristas com medo de usar adesivo do presidente ou pendurar em seus carros bandeirinhas do Brasil?

Estão chamando “um lado” (para usar o termo raso) que tem apanhado, morrido, se lascado e está em parte acuado, de “extremista”?

Nos últimos anos, a palavra “polarização” vem sendo repetida por uma estrutura midiática acostumada a binarismos diversos, explícitos em termos como “gente do bem” e, vejam só, “dois lados”.

Nessas lógicas binárias não se associam Daniel Silveira, funk misógino e os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, por exemplo. Ou incentivo ao garimpo, racismo e xenofobia. Divide-se o bolsonarismo em gavetinhas e, usando-o aos poucos de cada vez, tem-se a impressão que ele pode não ser tão terrível assim.

Parte de nossa imprensa continua a tropeçar nas próprias platitudes ao se negar a trabalhar com a complexidade lá fora. Assim, constrói mitos e heróis, vilões e desgarrados, tudo a depender das suas necessidades econômicas e políticas no momento. A questão não são fatos, nem a leitura mais acurada dos mesmos, no final. A questão é – em nome de uma ideologia, bom dizer – instrumentalizá-los, mesmo quando flertam com a destruição de vidas.

Toda vez que equipara Bolsonaro e o bolsonarismo a qualquer coisa que já tenha acontecido na política brasileira, o jornalismo pula o cercadinho e vai fazer companhia ao presidente.

A democracia brasileira conviveu durante décadas com o pluripartidarismo sem que repórteres e editores precisassem recorrer a toda hora a termos que conformassem as legendas como “extremistas”. Isso era termo usado, no máximo, para tratar aquelas com poucas chances de atingir postos majoritários, como o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, o PSTU, e o Partido da Causa Operária, o PCO, ambos à esquerda, ou o Partido de Reedificação da Ordem Nacional, o Prona, já extinto, à direita. O Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB, hoje Movimento Democrático Brasileiro, MDB, o Partido dos Trabalhadores, o PT, ou o Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB, por exemplo, transitavam entre centro, centro-direita e centro-esquerda, sem ocuparem os postos máximos da radicalização política.

Se nosso espectro político majoritário foi historicamente “equilibrado” ao centro com matizes à esquerda e à direita, o que muda no cenário para que a imprensa e mesmo nós, sociedade perpassada mais pelo senso comum do que pelo senso crítico, passássemos a ver tudo pela lente “radical”?

A instrumentalização da objetividade jornalística ajudou não só a propagar um racismo estrutural e epistêmico quanto nos trouxe de presente um Jair Bolsonaro.

A resposta está no crescimento da ultra-direita brasileira, uma explosão de visibilidade embalada por ao menos três fatores. O primeiro é a consolidação de um contexto político e social mais conservador em todo o mundo, no qual se misturam, entre outros componentes, o colapso político de vários países causado por violentas disputas internas e uma onda inédita de imigração (foram 272 milhões de imigrantes em 2019, 51 milhões a mais do que em 2010, segundo relatório da ONU). A precarização global do trabalho, resultando em um aumento de preconceito e violência sobretudo entre populações imigrantes, somente agrava essa questão.

O segundo fator se ancora na agudização dos sentimentos de raiva, impotência e medo derivados do contexto esboçado acima: trata-se da instrumentalização política de dados e algoritmos, principalmente nas redes sociais. O mais célebre escândalo desse uso indevido de informações foi protagonizado pela Cambridge Analytica, empresa que utilizou dados pessoais de usuários do Facebook para influenciar as eleições presidenciais americanas em 2016.

O terceiro fator para o crescimento da extrema direita no Brasil, apesar de seu precedente também global, ainda é pouco investigado entre nós – e é sobre ele que precisamos atentar: ele decorre dessa insistência em tratar Bolsonaro e o bolsonarismo como um extremo em oposição a outro, supostamente existente.

Vou repetir: de um lado está o presidente do Brasil. É o cargo máximo de nossa institucionalidade. Do outro, são movimentos sociais, candidatos, população.

Bolsonaro, como já escrevi, não nasceu somente graças ao Superpop e ao CQC, sejamos claros. Essa é outra platitude que só serve para manter bonitinhos os ternos e MBAs dos Jornalistas Equilibrados. Ele sofreu um banho de loja realizado pela imprensa que se autointitula como “profissional” e transformou o autor da frase “o erro da ditadura foi torturar e não matar” (dita em 2008 e 2016) em um cara “controverso”.

Desde a madrugada de domingo, a respeito do assassinato de Marcelo, li várias vezes que um lulista e um bolsonarista “trocaram tiros”.

Alguém tem a festa invadida, a própria vida e a da família e amigos ameaçada por um homem armado. Usa seu próprio revólver para se defender. E o resumo é “troca de tiros”.

Poderia ser “legítima defesa”, mas estamos falando de algo que envolve o PT.

O fato é que o jornalismo “neutro”, empresarial, das redes e conglomerados mais assentados, passou a se constituir como norma. Tudo aquilo que não está conformado nele seria, assim, um desvio, uma anormalidade situada, como já colocou a pesquisadora e jornalista Márcia Veiga. Um veículo como, por exemplo, este The Intercept Brasil, foi e é criticado por se posicionar demais, ou, pior, por ser “ativista”. Mas, se entendemos que o Intercept foi “ideológico” ao publicar as mensagens da Vaza Jato, devemos pensar o mesmo em relação ao Jornal Nacional no momento em que este vazou a ligação telefônica entre Dilma Rousseff e Lula.

Para marcar esse lugar que parece limpo e equilibrado, esse “estar acima das paixões”, nossos veículos naturalizaram o discurso criminoso de um político celebrizado midiaticamente. Primeiro, ele era apenas um cara controverso; depois, já presidente, um extremista que está em uma ponta enquanto Lula (cujo governo foi marcado por alianças com partidos como PMDB, hoje MDB, está na outra.

É fundamental perceber como o ex-presidente vai ser continuamente construído como o Bolsonaro do outro lado do espelho. Está posta a “polarização” que – sugerem esses veículos – nos apequena enquanto sociedade e da qual precisamos nos livrar; afinal, precisamos valorizar a democracia à brasileira, na qual indígenas e pretos são tratados como cidadãos de segunda classe e uma distribuição de renda mais justa é uma ideia estapafúrdia. A instrumentalização da objetividade jornalística (através, por exemplo, do jornalismo declaratório) ajudou não só a propagar um racismo estrutural e epistêmico quanto nos trouxe de presente um Jair Bolsonaro.

Enquanto imprensa e outras instituições fundamentais para a manutenção de nossa relutante democracia assinarem embaixo das práticas autoritárias e preconceituosas, enquanto normalizarem Bolsonaro o colocando como um espelho reverso de Lula, vamos seguindo o bonde em direção ao precipício. No volante, alguém “autêntico” que foi confundido pela imprensa séria como um tiozão do pavê que às vezes soltava um impropério.

Engraçado.

Folclórico.

Controverso.

“O avesso do fantoche é o terrorista”, escreveu o sociólogo Derrick de Kerckhove, que analisa democracia, dados e novos fenômenos da política. É uma análise que é também um retrato de um Brasil, onde, depois de pouco mais de um ano na presidência, o presidente resolveu levar até à imprensa que o ajudou a chegar ao poder, um humorista, o Carioca, vestido como ele mesmo, Jair Bolsonaro. Na ocasião, o presidente foi questionado sobre o PIB que crescera apenas 1,1% em 2019. Em vez de falar com repórteres, Bolsonaro estimulou Carioca a distribuir bananas e a responder em seu lugar. Caos instaurado, perguntas não respondidas, bananas jogadas, selfies, apoiadores transmitindo ao vivo, gargalhadas, “mito”.

Vou repetir: é o presidente do Brasil. É o cargo máximo de nossa institucionalidade.

Há algo muito importante naquele dia e que talvez ainda não tenhamos entendido: Bolsonaro agiu com imensa coerência quando colocou um humorista para ser nosso presidente. Ali nos deu, jornalistas, uma lição: ao ajudarmos a eleger um cara “meio controverso”, demonstramos que podemos ser tratados como idiotas. Dos atos tantas vezes violentos contra a imprensa, talvez aquele tenha sido um dos mais didáticos, e mesmo lúdico: tivemos uma experiência única de ver alguém sem qualquer capacidade para responder pela República ocupar os holofotes da política para fazer graça, distrair, ocupar a nossa atenção.

Eu não estou me referindo ao humorista, e sim ao fantoche. Falo do seu avesso.

Vou repetir: ele é o presidente do Brasil.

*Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 2021 o Brasil registrou 430 casos de violência contra jornalistas. Foram mais casos que em 2020, quando foram registrados 428 ocorrências. É um recorde na série histórica, iniciada em 1990.

Parte deste texto foi construída a partir de uma análise sobre a construção de Bolsonaro como celebridade, publicada no livro No tremor do mundo: Ensaios e entrevistas à luz da pandemia, da editora Cobogó

The Intercept Brasil

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