A militância pró-mercado da imprensa já não comove um Brasil arrasado pelo sofrimento
Contrários à histeria dos jornais após falas de Lula, internautas reforçam que um país rapinado não pode atender apenas ao clube seleto dos superricos
Diário do Brazil, 21 de setembro de 1884: o país caminhava para finalmente decretar a abolição quando o periódico estampou o terror do mercado com a futura libertação de milhares de pessoas: “A desconfiança é geral. O capital se retrai”. Fomos o último país do mundo a dar fim ao sistema escravocrata.
O Globo, 26 de abril de 1962: o mercado chorava e rangia os dentes com a criação do 13º salário mínimo, que virou lei em julho de 1962 no governo do presidente João Goulart: “desastroso”, dizia a manchete. O 13º era uma demanda antiga de trabalhadores como ferroviários e metalúrgicos cansados de receber somente um panetone e um vinho barato como gratificação no final do ano.
Folha de S.Paulo, 11 de novembro de 2022: após um breve discurso no qual Lula criticou as regras fiscais do Brasil e sugeriu um Bolsa Família fora do teto de gastos, o periódico estampou: “Citi diz que mercado pode ter se enganado em relação a Lula”. No mesmo dia, o jornal publicou um editorial cravando, apenas duas semanas após a eleição, que o presidente eleito “conseguiu derrubar grande parte das esperanças de que seu governo vá adotar uma política econômica racional e socialmente responsável”. “Mau começo” é o título do texto.
COMO PODEMOS VER, a instituição mercado parece ser ainda mais frágil do que o candidato derrotado à presidência da República, cujos olhos estão marejados desde a noite de 30 de outubro (embora o Citibank tenha tido o maior lucro em 10 anos em 2021, quando enfrentávamos o auge da pandemia). Bastou o primeiro “se retrair” e parte dos jornais retomou o papel de arautos do fim do mundo.
Mas, depois de um impeachment vergonhoso; da prisão e impedimento de candidatura de Lula; de quase 700 mil mortos pela covid-19; de o ministro Paulo Guedes querer combater o vírus “com reformas”; depois do aumento do assassinato de pessoas negras mesmo durante o lockdown; depois das filas dos caminhões de lixo para obter comida; depois do desespero das pessoas sem acesso a oxigênio nos hospitais; depois da inauguração do touro dourado da B3 no centro enquanto milhões padeciam… não dá simplesmente para sentir dó de um mercado quase sempre refratário ao sofrimento da masileira.
E aqui é preciso perguntar: o que entendemos por mercado? Essa instituição é, muitas vezes, tratada pela imprensa como um ente abstrato e quase fantasmal. Ou, no extremo oposto, como uma rede supostamente homogênea que conecta desde os maiores clientes e altos funcionários de um grande banco a uma cidadã de classe média que guarda o pouco dinheiro que resta em uma aplicação financeira qualquer.
Há nos dois tratamentos uma mistura de enganação e de hipocrisia. Porque o mercado é coisa concreta – e é extremamente hierarquizado em seus interesses e poderes. É, a grosso modo, o conjunto dos cinco maiores bancos do Brasil e mais um punhado de grandes fundos de investimento. E é esse mercado que esperneia diante da possibilidade de repartir uma parte do orçamento público que captura (de dinheiro de impostos, sobretudo) com aqueles que não possuem esse poder de chantagem – e não conseguem expressar suas vontades nos espaços dos editoriais.
Se esse mercado está sempre tão à vontade para apitar sobre questões que interferem na vida – e na morte – da população, vale perguntar:
Onde estava o mercado quando milhares de famílias foram despejadas durante a pandemia?
Onde está o mercado enquanto pessoas negras são continuamente dizimadas?
Onde está o mercado enquanto diversos povos indígenas são mortos e/ou sofrem ameaças de garimpeiros?
Onde estava o mercado quando, nos últimos meses, o candidato derrotado saiu explodindo teto, parede e piso de gastos?
Por qual razão o mercado realiza a todo momento uma espécie de chantagem quando projeta qualquer mínima chance de uma economia não voltada somente para atender aos seus próprios gemidos?
Se imprensa e mercado se incomodam com o valor de R$ 175 bilhões que seriam empregados anualmente para o pagamento de R$ 600 do Bolsa Família, como pensar nos cerca de R$ 100 bilhões gastos, também anualmente, somente para cobrir os custos do Judiciário? E o que dizer da tolerância com os cerca de R$ 42 bilhões líquidos pagos a militares da reserva e a seus familiares somente em 2020, como mostra esse texto de Felipe Betim?
Sobre que setores na prometida reforma administrativa e previdenciária precisamos mesmo falar? Que superprivilégios (e eles são bastante desiguais na administração pública) deveriam ser urgentemente revistos? Por que os rendimentos dos superricos continuam sendo menos taxados do que os da população mais pobre? E por que lucros e dividendos não são taxados de maneira justa no Brasil?
É claro que não dá para fazer uma leitura binária de um assunto tão tentacular. Ainda que timidamente, a heterogeneidade desse mercado se manifesta, com um ou outro CNPJ interessado nas questões sociais. Mas é justamente binarizando o tema – sendo tchutchuca com o mercado e tigrona com as políticas públicas de combate à pobreza – que a imprensa trata o assunto na maioria das vezes.
Lembro bem quando, em 7 de abril de 2021, nomes importantes do empresariado brasileiro se reuniram para jantar com Jair Bolsonaro em um rega-bofe à base de champanhe Veuve Clicquot no Jardim América, em São Paulo. Estavam lá pessoas como Rubens Ometto, da Cosan, Flávio Rocha, do Grupo Guararapes Riachuelo, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o “Tutinha” da Jovem Pan, e Paulo Skaf, ex-Fiesp. Bolsonaro, acompanhado pelos ministros da Economia Paulo Guedes e da Saúde Marcelo Queiroga, esculhambou medidas de isolamento e chamou governadores a favor do lockdown de “vagabundos”. Foi ovacionado.
Naquele dia apenas, o país registrou 3.733 mortes por covid-19. No podcast Café da Manhã, da Folha, uma jornalista disse que os empresários não eram ideológicos, mas “pragmáticos”.
O ministro da Economia Paulo Guedes – o mesmo que sugeriu combater o coronavírus com reformas – fala à imprensa após jantar em que Jair Bolsonaro recriminou medidas de contenção da pandemia de covid-19.
‘Aprendam a repartir o pão’
Não tenho dúvida de que o sofrimento coletivo pelo qual passamos – e que infelizmente não era uma novidade para milhões de pessoas – deixou alguns aprendizados necessários. Entre eles, a clareza de que desigualdade social não é uma abstração, mas uma realidade que define nossa vida, nossa morte, nosso gozo e nossa dor.
Talvez, justamente por isso, nos deparamos com um fato que me parece inédito nessa nova “retração” do mercado após declarações sobre gastos sociais: as reações ao drama repercutido pelos editoriais foram majoritariamente desfavoráveis à imprensa e ao mercado. Em redes sociais e nas caixas de comentários das matérias, a maioria das manifestações observava, em que se pese a necessidade do controle da inflação e responsabilidade fiscal, que um país arrasado pela incompetência e pilhagem não pode continuar a responder prioritariamente a um clube seleto – que não se incomoda com o fato de os 10% mais ricos ganharem quase 60% de toda a renda do Brasil, segundo o World Inequality Lab.
No Instagram da Folha, os comentários no post que critica a declaração de Lula expressam o espanto e a raiva de leitoras e leitores. “Eu fico impressionada como a Folha não se constrange em naturalizar a fome num país que produz riqueza como o Brasil”, disse Gabi da Pele Preta.
No Twitter, outros tantos seguem a mesma linha: “Não adianta espernear, o combate à fome será prioridade no governo Lula. Esse é o recado do Leonel Brizola para o mercado (Faria Lima). Engulam o choro e aprendam a repartir o pão!”, escreveu Cássia Andrade em um tuíte acompanhado por um discurso de Brizola, falecido em 2004. “Teto dos gastos e Paulo Guedes. Guedes furou o teto dos gastos por quatro anos. Gerou um rombo nas contas públicas. Por que o ‘mercado’ e a grande imprensa nunca cobraram nada dele? Por que protegem tanto Guedes?”, questionou Uallace Moreira.
Desigualdade social não é uma abstração, mas uma realidade que define a nossa vida, nossa morte, nosso gozo e nossa dor.
No UOL, o jornalista Chico Alves escreveu que a “Devoção da imprensa ao ‘mercado’ não faz bem ao Brasil”. Monica de Bolle, economista e professora da Universidade Johns Hopkins, foi sintética: “e que esses últimos quatro anos sirvam para mostrar ao jornalismo econômico que sua relevância depende do entendimento de que a população que não trabalha no mercado não está interessada em análise econômica de elevador e sem compromisso com o país”.
Ela está coberta de razão: o jornalista que se comporta como ativista da bolsa de valores deixa de atuar como mediador entre instituições e população, função que, pelo menos em tese, deveria cumprir.
O mercado, por exemplo, tem relação direta com o fato de uma mãe precisar atuar como doméstica na pandemia e ainda ter que levar seu filho para o trabalho. O mercado tem relação direta com o fato de essa mulher perder o seu filho para o racismo. Não precisamos que os jornais nos digam isso – eles nunca disseram, na verdade. Aliás, essa é outra maneira de lembrar que responsabilidade fiscal e responsabilidade social andam juntas, ainda que não exatamente do jeito que costumamos ser alertados sobre esse fato.
Mas nós passamos por uma inflexão enquanto sociedade – e tenho a impressão de que setores relevantes de nossa imprensa ainda não compreenderam isso. Não tenho dúvidas de que mudanças na postura de diversos veículos (sobre racismo, xenofobia, misoginia, entre outros temas) nasceram da pressão do público.
Um exemplo eloquente aconteceu após a divulgação de uma capa do jornal Aqui PE, do Diário de Pernambuco. Falei a respeito dele no meu último livro e o trago também aqui: em 1° de setembro de 2017, o Aqui PE publicou uma foto com a imagem de uma mulher negra morta, caída no chão e com parte da calcinha e das nádegas à mostra. Dizia a manchete: “Flanelinha assassinada a pauladas no Recife Antigo”. A imagem das regiões íntimas de Diana gerou reações por parte de diversos setores da sociedade. Vinte e cinco entidades ligadas à defesa dos direitos das mulheres e coletivos que atuam como observatórios da mídia publicaram uma nota de repúdio. A seguir, um trecho:
Ao reforçar estereótipos de gênero, retroalimenta uma cadeia de argumentações misóginas, racistas e classistas, as quais podem desembocar num amplo feixe de práticas violentas. O Aqui PE precisa se retratar publicamente e manter uma linha editorial coerente com o jornalismo, enquanto campo mediador de sentidos. Do contrário, continuará apenas alimentando ódio e manchando essa profissão tão nobre e relevante para a vida em sociedade.
O caso chegou ao Ministério Público de Pernambuco, que instaurou uma ação civil pública. A partir dela, foram acertadas as etapas da retratação e reparação que o jornal deveria cumprir. Assim, o Aqui PE publicou um “Erramos” na capa. Depois, publicou uma série de matérias sobre direitos humanos, com a violência contra mulheres abrindo o especial. Finalmente, jornal e entidades que assinaram a nota se comprometeram a realizar um seminário sobre direitos humanos para profissionais e estagiários.
É um caso que ilustra bem: uma sociedade atenta e cansada da militância jornalística antimulheres, antinegros, antipobres consegue mudar a qualidade daquilo que é dito e visto sobre nós. Uma sociedade cansada da militância jornalística pró-mercado pode fazer o mesmo.
*Recentemente, o jornalista Rodrigo Alves, do podcast Vida de Jornalista, reuniu profissionais de todo país (tive a sorte de estar entre elas e eles) para perguntar o que esperar do jornalismo após essas eleições e o que aprendemos nesses terríveis anos com Bolsonaro. Recomendo a escuta e atenção especial ao que diz minha colega Nayara Felizardo, aqui do Intercept, sobre a necessidade da descentralização das coberturas jornalísticas.
*A pesquisa sobre as capas de jornais trazendo antigas notícias sobre o mercado foi realizada por Marcelo Moutinho.