A peleja da ciência contra a besta-fera da ignorância

Recém-nomeado para ser um dos coordenadores do comitê científico do Consórcio Nordeste, o neurocientista Miguel Nicolelis fala sobre o protagonismo da ciência em meio a crise mundial causada pelo novo coronavírus

Por Flávia Oliveira em O Povo

Leitor ávido, Miguel Nicolelis costuma adentrar as madrugadas na companhia de artigos ou mesmo conversando com colegas pela internet. O assunto principal costuma ser o mesmo: ciência. Enquanto muitos brasileiros trocam mensagens sobre supostos efeitos milagrosos do alho, limão e sal grosso para o combate ao novo coronavírus, ele se esforça para mostrar que o momento dramático pelo qual estamos passando exige a busca por dados confiáveis obtidos por meios científicos e não a crença em achismos.

Pós-doutor em fisiologia e biofísica, professor e codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, nos Estados Unidos, foi convidado recentemente para ser um dos coordenadores do comitê científico montado pelo Consórcio Nordeste, que congrega os nove governadores da região, a fim de orientá-los a tomar medidas no combate ao coronavírus em seus estados. Outra missão do grupo é arregimentar profissionais voluntários de diversas áreas para engrossar as fileiras da luta que está sendo travada nos rincões mais áridos da desinformação.

Em entrevista ao O POVO feita por videoconferência, em um dos raros intervalos do trabalho, Nicolelis faz metáforas de guerra para falar da situação da pandemia no Brasil. “Essa primeira fase é uma batalha de informação, de comunicação. Se nós perdermos a batalha no campo da comunicação, não há esperança de fazer mais nada. Temos que dar a população a chance de ter acesso às informações corretas, para salvar vidas”, diz.

O POVO – Como surgiu o convite para coordenar o comitê científico do Consórcio Nordeste?

Miguel Nicolelis – Cheguei ao Brasil há alguns dias, por razões familiares, mas quando cheguei aqui, vi de perto como a coisa estava complicada (em relação ao surto de Covid-19). Comecei então a usar meu canal no YouTube para falar que era preciso ter um comando centralizado, nacional, que pudesse dar conta das multidimensões necessárias de atuação para combater a pandemia. Há dez dias, mais ou menos, recebi um telefonema do ex-ministro Carlos Gabas, que é secretário executivo do Consórcio do Nordeste, dizendo que o Consórcio – em particular, o governador Rui Costa (PT-BA) – queria criar uma comissão científica para assessorar os governadores dos nove estados, e que o ex-ministro Sérgio Rezende eu fomos indicados para coordenar o grupo. Eu fiquei muito surpreso porque apesar de defender a criação de uma comissão como essa, nunca cruzou pela minha mente fazer parte dela ou coordená-la. O argumento usado foi que tenho essa experiência de muitos anos de trabalho com missões internacionais, assim como de gerenciar grandes consórcios de pesquisadores. O objetivo do comitê é criar pontes de comunicação não só com os governadores mas com a sociedade como um todo, para enfrentar essa situação de guerra, porque estamos de fato em uma. Precisamos de um Estado-Maior científico, para além do político e econômico, a fim de que se forneça subsídios científicos para tomada de decisões políticas.

O POVO – Por que está havendo o embate entre política e ciência? Esse fenômeno está sendo mais grave aqui no Brasil?

Nicolelis – É um fenômeno mundial mas está sendo mais acentuado no Brasil. Os países que não fizeram esse acoplamento da ciência com a política, como são os casos da Inglaterra, Itália, Espanha, Estados Unidos e agora, o Brasil, estão sofrendo dramaticamente. É só ver os números dos países onde a ciência fez parte da estratégia desde o início, como a Alemanha, Coreia do Sul e Taiwan. Eles conseguiram ter um número de pessoas infectadas muito baixo, comparado com outros países, e começaram a testar as pessoas desde o início. Também isolaram os casos e tiveram políticas muito claras, e agora não estão tendo problemas de saturação ou de colapso do sistema de saúde. Pelo contrário, os alemães estão levando pacientes do norte da Itália e da França para seus hospitais. Algumas pessoas até podem dizer: “ah, mas a Itália já chegou no platô (da curva de infecção), mas isso quer dizer que ainda tem centenas de mortos todos os dias. Existe o platô, mas a situação ainda é inédita. No Brasil, desde o golpe de 2016, a ciência “entrou no rodo” das políticas de austeridade fiscal neoliberais que reduzem o fluxo de recursos para a saúde, educação e a ciência. Eu estava lendo hoje o (jornal britânico) The Guardian, e soube que o chefe do comitê científico da Comunidade Europeia renunciou porque todas as propostas que ele fez para fazer com que se investisse em projetos científicos para combate ao coronavírus não passaram. Não foram aprovadas pelo braço político da Comunidade Europeia. Infelizmente, teve que ter uma pandemia e uma tragédia mundial para destacar a relevância da ciência para a sociedade moderna e quão importante é que ela esteja engajada em decisões cotidianas políticas, particularmente em uma situação de guerra como a que estamos vivendo.

O POVO – O senhor tem lido alguns modelos de previsão sobre o cenário da epidemia. Quais seriam as perspectivas de infecção por coronavírus no Brasil?

Nicolelis – Primeiro li os modelos americanos e colombianos; depois os que vieram de Oxford e os brasileiros. O problema desses modelos é que não se leva em consideração as peculiaridades do Brasil, como o clima, a alta densidade populacional nas periferias das grandes cidades. Então é muito difícil usá-los para fazer as previsões que queremos. Há poucos dias, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) soltou um paper técnico com uma simulação de taxas de infecção observadas na China e na Itália. Construíram cenários, como por exemplo, a possibilidade de 10, 20 ou 50% da população brasileira ser contaminada, e o fluxo da disponibilidade de leitos de UTI. Os modelos não estão totalmente ajustados para a realidade nacional, mas mesmo assim, eles já são preocupantes porque os cenários considerados brandos têm número de óbitos na casa de dezenas ou até uma ou duas centenas de milhares. Essa, aliás, é a previsão que os EUA fez, e na qual não acredito. Eles estão prevendo entre 100 mil e 200 mil óbitos mas os cientistas de lá fizeram questão de dizer: “olha, esse aí o cenário mais brando, ou seja, se todo mundo ficasse dentro de casa e ninguém viajasse”. Mas as pessoas lá estavam viajando livremente pelo país até a semana passada. Então esse cenário brando não vai se concretizar. Para o Brasil – e ressalto que é apenas uma opinião minha, sem base científica – penso que não vamos ter cenários brandos. Na minha carreira, em termos de riscos, sempre me preparei o pior. Se o pior não se materializa, pelo menos me preparei. Se eu me enganar, ótimo.

O POVO – Você disse em uma conferência online que está em contato com pesquisadores cearenses para se inteirar sobre a situação da pandemia no Ceará.

Nicolelis – Sim, tenho conversado com o pessoal do Ceará e de Fortaleza. Gosto muito do Tanta (o apelido do médico infectologista Antônio Lima, gerente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde e representante do Ceará do comitê). Ficamos amigos em cinco dias. Ele é um excelente infectologista, um jovem realmente brilhante. Tem pós-doutorado em Harvard e é um cara sensacional. Ele está nos municiado de dados continuamente.

O POVO – O Ceará está em terceiro em número de casos. Seria porque estamos testando mais?

Nicolelis – Não, existem vários fatores. O Ceará é o estado que tem mais casos, atrás de São Paulo e Rio, mas também está testando muita gente. Teve uma testagem mais eficiente do que outros estados e está com uma taxa de letalidade mais baixa, inclusive mais baixa do que o São Paulo, pelos dados de ontem. Agora a gente não sabe o número total de infectados porque a testagem ainda é muito baixa. Aí se você olhar os testes da Alemanha e Coréia, por exemplo, você vai ver que eles testaram muito mais. Então o número de casos deles é mais realista, assim como a mortalidade. O nosso grande problema é que a gente não sabe o universo total de casos infectados. A gente só tem uma amostragem, que é subnotificada, dentre outros motivos, pela falta de testes. O Brasil não se preparou para adquirir um número suficiente de testes. Há alguns meses, a China nos deu notícias de que a coisa era séria. Eles lá também foram pegos de surpresa, mas logo pegaram no tranco. Com a capacidade industrial muito grande, fizeram uma reorganização da indústria e começaram a produzir insumos médicos, testes e tudo mais que era necessário. Os dados são fundamentais para fazer previsões, criar modelos matemáticos e definir cenários. A subnotificação é um problema muito grave e é similar a dos Estados Unidos, por incrível que pareça. A subnotificação lá é muito parecida. Por isso que olhar para os Estados Unidos hoje nos dá uma noção do que pode acontecer daqui a alguns dias ou semanas aqui.

O POVO – Quais seriam as alternativas?

Nicolelis – Estamos discutindo o monitoramento por aplicativo digital, de forma que os doentes reportem seus sintomas diretamente de casa. Não é a melhor forma, mas é uma maneira de recolher dados para que epidemiologistas e matemáticos possam inferir o quadro real. Se não vamos ter testes para todos, pelo menos podemos ter uma suspeita clínica. De acordo com os contatos e levantamentos que estamos fazendo, é o que está sendo feito em outros países em condições parecidas. E ainda tem a questão de efetividade do teste. Um colega na Inglaterra me disse que os testes rápidos estão com uma baixa sensibilidade e tem gente já testada como positiva dando resultado negativo. Os cientistas precisam de dados confiáveis, mas como não os temos, teremos que descobrir formas de avaliar o grau de infecção. Isso os epidemiologista brasileiros estão cansados de fazer. Eles têm grande experiência com a dengue, por exemplo.

O POVO – E em relação a falta de materiais, como Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), o que poderia ser feito?

Nicolelis – Eu estou lendo muitos trabalhos. Aliás, a produção científica diária sobre o coronavírus é enorme. Pego uns cinco trabalhos para ler simultaneamente, selecionando as coisas mais importantes porque não dá tempo. Aliás, o site que estamos criando vai servir também para colocar esses papers lá, para que especialistas do Brasil e de fora possam nos ajudar a separar o joio do trigo. Teve o trabalho sobre a cloroquina, na França, que criou essa confusão toda no mundo. O trabalho está sendo basicamente destruído na Europa e no mundo inteiro, até porque não foi conduzido da maneira apropriada. Até a sociedade científica que publicou a pesquisa já disse que o estudo não foi feito corretamente. Eu estava lendo os estudos feitos em diferentes universidades e institutos de física de materiais de Engenharia dos Estados Unidos, e vi que eles testaram diferentes materiais para confecção de EPIs, como algodão, flanela, filtro de aspirador em pó e até de lareira. Eu, por exemplo, montei um laboratório na minha lavanderia para fazer um teste com algodão e flanela, tentando reproduzir o que eu vi em artigos. Fizemos a recomendação aos governos do Norte e Nordeste para que recrutem costureiras e parques têxteis a fim confeccionar máscaras e roupas de proteção, gerando um acoplamento científico-social. Vamos recrutar as costureiras e oferecer aporte financeiro para a produção. São políticas públicas que podem ajudar as camadas mais humildes da população a combater as dificuldades econômicas do país. A ciência é sim um agente de transformação social e econômica.

O POVO – Até porque vai ser difícil conseguir os EPIs dos EUA e Europa.

Nicolelis – Dos Estados Unidos, não vai ter nenhuma ajuda. A Europa, está mal se mantendo. A China é a nossa única chance de suprimentos industriais mas aí o Brasil está criando um caso diplomático com ela, o que é um absurdo, porque é o maior parceiro comercial que o Brasil tem, responsável uma fração enorme da balança de exportações do Brasil. É uma insanidade completa. Mas não tenho também grandes esperanças que o fluxo de lá para cá vai ser algo de outro mundo, porque eles estão remetendo também aos Estados Unidos e Europa. Então nós vamos ter que reorganizar a nossa produção industrial. As grandes empresas têm a tendência de pensar assim: “ah, não sei se eu vou ter lucro ou se vou conseguir fazer isso”. Estamos sentindo essa inércia, mas ela tem que ser vencida. Nós vamos fazer o que for possível para engajar a sociedade como um todo. Porque é uma guerra, é uma invasão. O problema é que o inimigo é invisível e só o conhecemos há três meses. Só vamos conseguir ganhar essa guerra se toda a população estiver focada nesse esforço, principalmente para manter o distanciamento social, que é a única coisa nesse momento que a ciência diz com certeza que funciona.

O POVO – O senhor voltou a publicar no canal do YouTube também para mostrar à população que ainda não existe uma cura milagrosa para a Covid-19. Seria uma forma de combater as informações falsas que estão circulando com mais força agora?

Nicolelis – Eu tenho esse canal há muitos anos, para falar sobre neurociência e o projeto Andar de Novo. Sobre as informações falsas, o problema é que a maioria das pessoas desconhece como é o processo científico de descoberta de novas drogas e testes de vacinas. Todo dia é manchete notícias como: “pesquisadores australianos descobrem droga que mata o coronavírus”. Veja só, a influenza matou 50 milhões de pessoas no mundo em 1918. Nós estamos sabemos da existência desse vírus há mais de 100 anos e ainda não tem remédio para ele. Pois bem, voltando ao novo coronavírus: fui atrás do trabalho da Austrália. Os caras fizeram um teste com a droga X e deu certo em cultura de célula, o que é só o primeiro passo. Tem milhões de coisas que funcionam em cultura mas que não funciona em seres vivos. Outro problema: as fake news. A cloroquina é um exemplo. Tem gente que diz: “ah, mas teve paciente que melhorou!”. Como você sabe que o paciente melhorou? Não tem grupo de controle! O paciente poderia ter melhorado sem o auxílio da droga. A hidrocloroquina ainda não foi provada como tendo efeito real. É muita irresponsabilidade haver agentes políticos de grande penetração na mídia venderem essa história. O CDC de Atlanta (Center for Disease Control and Prevention – Centro de Controle e Prevenção de Doenças), o mais respeitado do mundo, tinha no site uma indicação de uso da cloroquina mas eles já tiraram. E protestaram contra o presidente americano dizendo que não vão ser forçados a manter isso lá, porque eles foram de fato pressionados. Já em relação às fake news, algumas são tão sutis que mesmo a imprensa especializada não consegue pegar. Vou mais longe: algumas passam incólumes até por especialistas. Por isso que é importante esse esforço conjunto para dizer o que é verdade ou não.

O POVO – Vamos ter um mundo como era antes, depois da pandemia?

Nicolelis – Essa é a pergunta que mais me intriga. Acho que o mundo que a gente conhecia até janeiro deste ano simplesmente acabou. Essa pandemia tá expondo uma série de fragilidades neste modelo de civilização que elegemos ao longo dos últimos três séculos. E elas foram expostas dramaticamente. Estamos falando de um envelope de proteína com um filamento de RNA lá dentro e que pôs o mundo de joelhos. Mas por que? Porque a austeridade fiscal proposta pelo modelo neoliberal que domina o planeta neste momento destruiu avassaladoramente os sistemas públicos mundo afora, com algumas poucas exceções. Criamos uma sociedade complexa amparada em cartas de baralho. Bateu um vento, colapsa tudo. Quando centramos a sociedade em abstrações mentais humanas, como modelos econômicos neoliberais e sistemas financeiros, falando que tudo isso é mais importante que a vida humana, criamos o cenário atual: diminuição de investimentos na ciência e no sistema de saúde pública. Estamos pagando o preço pela criação de um modelo de civilização não sustentável e que expõe a espécie humana. Os cientistas falam isso há décadas. Falaram também que uma pandemia como essa poderia acontecer a qualquer momento. Eu espero que o mundo de amanhã “dê um reset” depois dessa pandemia e comece a discutir um outro modelo civilizatório, porque se não, o próximo evento pode ser de extinção.

O POVO – O senhor acredita que o que estamos vivendo hoje vai mudar nosso estilo de vida individual e global, enquanto espécie?

Nicolelis – Sim. Isso curiosamente aconteceu depois da pandemia de 1918, mas o mundo caiu numa depressão econômica muito rapidamente e depois teve a Segunda Guerra Mundial. Além da pandemia, houve o horror da Primeira Guerra em paralelo, que foi causa determinante para o espalhamento da pandemia. Para você ter uma ideia, um ataque decisivo alemão, que poderia ter mudado o panorama da guerra, teve que ser cancelado por causa do surto de influenza entre os soldados. Quando os soldados americanos começaram a retornar aos EUA, levaram uma mutação do vírus muito mais resistente. Essa situação criou um número de baixas muito maior do que as dos campos de batalha, só que não se fala muito disso, não é? Mas é verdade. Voltando ao cenário atual, acredito que precisamos manter um estado mental otimista e atitude de enfrentamento, o que é importante até para o nosso estado imunológico. Estamos com a sensação de que nos roubaram a primavera, mas a primavera vai, sim, voltar.

Escritor

Nicolelis é autor de livros na área de neurociência. O mais recente é The True Creator of Everything: How the Human Brain Shaped the Universe as We Know It (2020), ainda sem versão em português.

Exoesqueleto

Em 2009, Nicolelis reuniu um time de colegas neurocientistas, roboticistas, neuro engenheiros, cientistas da computação, neurocirurgiões e profissionais da reabilitação para formar o consórcio científico internacional sem fins lucrativos denominado Walk Again Project (Projeto Andar de Novo). A missão era desenvolver uma veste robótica (exoesqueleto) para restaurar a locomoção em pessoas acometidas por paralisia.

Site

Recém-lançado, o site do Comitê científico de combate ao novo coronavírus (https://www.comitecientifico-ne.com.br) reúne informações sobre estudos em andamento sobre a pandemia e arregimenta interessados em colaborar com a equipe.

CTB

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