A quem interessa a BNCC?

Especialistas em educação apontam que a terceira versão do documento, que pode ser homologada ainda em 2017, aprofunda a sintonia entre a Base Nacional Comum Curricular e as formulações defendidas por fundações e institutos empresariais que prestam serviços para a educação pública

André Antunes – EPSJV/Fiocruz

A educação básica é a nova “bola da vez” do mercado. Poucos meses depois de o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) impedir a fusão dos dois maiores grupos privados de educação superior do país, Kroton Educacional e Estácio Participações, por entender que a união significaria riscos à livre concorrência, as empresas anunciaram que pretendem voltar seus olhares para a educação básica. Em outubro, a Estácio anunciou que a partir de 2018 passará a oferecer vagas também para o ensino médio e para cursos de formação profissional em sete unidades no estado do Rio de Janeiro. Já a Kroton, que ao contrário da Estácio, já atuava na educação básica, anunciou, também em outubro, que está em processo de negociações para aquisição de 16 escolas.

O otimismo do mercado com as oportunidades de investimento no setor educacional brasileiro atravessa fronteiras. Reportagem recente do Intercept Brasil, publicada em outubro, deu destaque para falas do presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, que em entrevista à rádio CBN listou como um dos motivos para o aumento da “confiança” de investidores estrangeiros na economia brasileira – auferida por Goldfajn durante reuniões realizadas em Nova York – a “reforma da educação”.

Se com isso o presidente do BC se referia somente à reforma do ensino médio, aprovada em fevereiro deste ano, não se sabe; mas analistas ouvidos pela Poli avaliam que é preciso destacar também o papel que a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) deve cumprir no que caracterizam como um processo de subordinação da educação brasileira aos ditames da economia e aos interesses do mercado. Especialistas em educação têm denunciado que o documento, cuja terceira versão aguarda parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) para ser homologada pelo Ministério da Educação – o que, segundo o órgão, deve acontecer ainda em 2017 –, aprofundou o grau de sintonia entre a BNCC e as formulações defendidas por fundações e institutos empresariais que atuam na educação. Não por acaso, dizem, o empresariado criou o Movimento pela Base Nacional Comum, que desde 2013 tem incidido nos debates sobre a BNCC e que, segundo os mesmos analistas críticos ao documento, se transformou em um interlocutor privilegiado do MEC sob a gestão José Mendonça Filho.
OCDE: “Ministro da educação do mundo”?

David Chaves, doutorando da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que estuda a atuação dos organismos multilaterais na educação, entende que uma chave importante para analisar a influência das teses empresariais sobre as políticas de educação de uma maneira geral, e sobre a BNCC especificamente, é a produção de organismos como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Segundo ele, a entidade é relevante porque indica ao mundo empresarial quais países estão cumprindo orientações em áreas como educação e economia, sinalizando os locais mais atrativos para investimentos privados. Uma dessas variáveis é a existência de mão de obra qualificada. Qualificada, claro, segundo os padrões estabelecidos pelo organismo.

A OCDE é responsável pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês), voltado para estudantes a partir do 8º ano do ensino fundamental na faixa etária dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. Segundo David, os dados do Pisa servem para a construção das políticas públicas na área educacional, procurando afinar a formação dos jovens em consonância com o que se espera deles na vida produtiva e social. “A OCDE, hoje, funciona como uma espécie de ministro da educação do mundo”, ressalta David, complementando: “Tanto para o governo quanto para o setor empresarial é fundamental um alinhamento com as diretrizes do Pisa, uma vez que os países que têm destaque nessa avaliação são classificados pela OCDE como aqueles que investem numa educação de qualidade e terão mão de obra qualificada, o que possibilita a atração de investimento externo”.

Claudia Piccinini, professora da UFRJ que vem estudando os interesses privados por trás da discussão da BNCC, acredita que o documento prestes a ser implementado no país deve reforçar a hegemonia de uma concepção de educação que relaciona qualidade do ensino com as necessidades do mundo do trabalho. “Quando lemos o texto da Base, o tempo inteiro, o que justifica sua formulação é a necessidade de ampliar a qualidade do sistema educacional brasileiro e com equidade, garantir acesso. Mas tudo isso está vindo sem uma contrapartida financeira. O Brasil não está cumprindo as metas do Plano Nacional de Educação. Então, essa ideia de qualidade, na verdade, é uma grande interrogação”, observa Claudia, para logo em seguida completar: “O que a gente tem de concreto é o conceito de qualidade preconizado pelos documentos da OCDE, do Banco Mundial, e também em documentos do empresariado brasileiro, como a Confederação Nacional da Indústria, que defendem que a qualidade na educação está diretamente ligada ao aumento na produtividade no trabalho como forma de ampliar a competitividade na indústria, nos serviços”.

Empresários à vista

Para educadores e pesquisadores críticos à BNCC, atualmente, no contexto das discussões sobre a Base, o maior expoente das teses empresariais para a educação formuladas pela OCDE é o Movimento pela Base Nacional Comum. “O grande protagonismo do Movimento pela Base nesse debate se dá, sem dúvida, pela articulação e, principalmente, financiamento de setores do grande capital afinados com as ideias do Banco Mundial e da OCDE em relação à educação”, afirma Claudia Piccinini. “E o que nós percebemos nesse processo é que a BNCC foi incorporando as bandeiras do movimento empresarial. Apesar de o documento ter recebido uma quantidade imensa de falas, de participações, de indicações dos professores e de sindicatos durante o processo de consulta pública, o que a gente vê é que no projeto final o que está colocado é a demanda do movimento empresarial”, pontua.

O Movimento pela Base se autodefine como “um grupo não governamental de profissionais da educação que desde 2013 atua para facilitar a construção de uma Base de qualidade” por meio de debates, estudos e pesquisas com gestores, professores e alunos, além da investigação de “casos de sucesso” em outros países. Uma dessas experiências internacionais é apontada por pesquisadores da área como a principal inspiração do movimento pela construção da BNCC: o Common Core, base nacional implementada nos Estados Unidos, que inclui apenas linguagens e matemática, as disciplinas cobradas pelas avaliações internacionais que medem a qualidade da educação ofertada no país.

Foi a convite de uma das instituições que integram o Movimento, e uma de suas principais financiadoras, a Fundação Lemann – criada em 2002 pelo homem mais rico do Brasil, o empresário Jorge Paulo Lemann, sócio do grupo que controla a AB Inbev, maior grupo cervejeiro do mundo – que um grupo de parlamentares viajou em 2013 para os Estados Unidos para participar do seminário ‘Liderando Reformas Educacionais e Fortalecendo o Brasil para o Século 21’, organizado pela Universidade de Yale em parceria com a Fundação Lemann. Entre eles estava o deputado federal Alex Canziani (PTB-PR), presidente da Frente Parlamentar da Educação e integrante do Movimento pela Base. O objetivo da viagem, segundo Canziani, era conhecer “as vantagens da unificação do currículo escolar” a partir da experiência do Common Core. “A ideia é que nós possamos, através dos secretários estaduais de educação, através dos secretários municipais, do próprio MEC, fazer uma discussão sobre currículo. O que nós queremos para o jovem brasileiro? O que nós queremos que nossas crianças aprendam em cada um dos anos que passam na educação básica do nosso país?”, justificou o parlamentar em discurso proferido na Câmara dos Deputados na semana seguinte à viagem.

A capacidade de articulação é um ponto forte do Movimento pela Base. As organizações ligadas ao empresariado, e que atuam na educação pública por meio de diversos programas, figuram com destaque entre seus integrantes: além da Fundação Lemann, participam representantes do Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho, Fundação SM e Itaú BBA, entre outras. A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) representam os gestores da educação no Movimento, que conta também com a participação de parlamentares, como Alex Canziani e Thiago Peixoto (PSD-TO).

Outro grupo importante de instituições participantes do movimento são as organizações prestadoras de serviços pedagógicos como o Centro de Estudos, Pesquisas, Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), a Comunidade Educativa Cedac e o Laboratório de Educação, todas financiadas por grandes grupos econômicos, como Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Votorantim e Carioca Engenharia.

A quem interessa uma BNCC?

Alice Ribeiro, secretária-executiva do Movimento pela Base, argumenta que o grupo nasceu do entendimento de que a BNCC seria necessária para garantir uma educação pública de qualidade. “Diversos marcos legais do país já estabelecem quais são as prioridades e as finalidades da educação básica nacional. A própria lei do Plano Nacional de Educação traz isso com clareza. O nosso entendimento é que a Base é um passo nessa direção, da consecução desses objetivos para que seja ofertada uma educação de qualidade”, justifica.

O professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Salomão Ximenes, no entanto, não concorda com essa leitura. Ele vincula à própria atuação do que chama de “reformadores empresariais da educação” e à sua capacidade de articulação política a construção de um consenso em torno da necessidade da BNCC. Um exemplo seria a lei do PNE, aprovada em 2014, que cita a implantação da “base nacional comum dos currículos” como uma estratégia para a consecução da meta 7 do Plano, que demanda o fomento da qualidade da educação com base no aumento dos índices do Ideb. “O principal grupo que incidiu para que esse tema entrasse no Plano Nacional de Educação foi esse setor de reformadores empresariais, que influenciaram no Congresso para que isso fosse incorporado na lei. Isso não vem dos sindicatos nem dos movimentos populares”, argumenta Salomão.

Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, concorda. “Essa demanda entra no PNE com uma emenda ao texto original escrita pelo Fernando Haddad, que é um economista que, na área da educação, sempre se colocou ao lado dos movimentos empresariais”, pontua. Segundo ele, a pressão dos movimentos sociais da educação mobilizados durante a tramitação da matéria no Congresso conseguiu retirar do texto outras demandas dos grupos empresariais que, no entanto, voltaram com força na discussão da última versão da BNCC, que em seu texto de apresentação afirma como um de seus compromissos “a garantia de que os direitos de aprendizagem sejam assegurados a todos os alunos”. “A ideia de expectativa de aprendizagem vem dos movimentos empresariais, e está vinculada a uma pressão pelo ‘conteudismo’. É uma concepção contrária ao que a gente defende, que é o direito à educação, que pressupõe condições de trabalho para o professor, escola adequada, materiais didáticos adequados. O direito à aprendizagem foca apenas nos resultados medidos pelas avaliações externas”, diz Daniel.

A leitura de Camila Rostirola, professora da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) segue a mesma linha. Ela acredita que a BNCC deverá servir como um instrumento de aprofundamento da lógica empresarial na gestão da escola pública.

Segundo ela, o próprio formato da Base, que lista objetivos de aprendizagem, já serviria como controle para as avaliações em larga escala. “A BNCC vai ter relação com as matrizes de referência das avaliações nacionais e, posteriormente, das avaliações estaduais, justamente para garantir que as escolas sigam ela à risca”, diz. E acrescenta: “Outra questão que a gente vem observando é que vai se gastar um tempo muito grande dentro das escolas em função da preparação para os testes e avaliações, que, por sua vez, se transformam em um fator de comparação entre as escolas e os professores”. Segundo Camila, essa dinâmica já pode ser observada quando são divulgados os resultados de uma avaliação em larga escala, já que os meios de comunicação e as próprias escolas fazem rankings em que se destacam nos primeiros lugares de “qualidade” as unidades onde os alunos vão melhor nos testes.

A partir da Base, alerta ela, não só a lógica do rankeamento deve se acirrar como a “culpa” pelos resultados deve se cristalizar em uma única figura: o professor. “O que observamos no Brasil e em experiências internacionais hoje é uma lógica da culpabilização. Quem é o grande culpado pelo aluno não aprender? Pela escola ir mal nas avaliações? É o professor. Essa é a lógica por trás das políticas de avaliação: você culpa pelos maus resultados sem observar as condições sociais, as condições econômicas e culturais dos contextos dos municípios e dos estados. Você tira a responsabilidade coletiva dos entes públicos e, de maneira radical, deposita a “culpa” no individuo, no docente”.
Coincidência ou não, Maria Helena Guimarães, atual secretária-executiva do MEC e figura-chave da gestão Paulo Renato no governo FHC, deu mostras de que o discurso oficial passa mesmo por aí. “Todas as pesquisas – nacionais, internacionais – indicam que a qualidade do professor é, isoladamente, o fator que mais influencia a melhora do aprendizado. Isso significa que, independentemente das diferenças de renda, de classe social e das desigualdades existentes – que existem e vão continuar, infelizmente, por muito tempo –, a qualidade do professor é o que mais pode nos ajudar a melhorar a qualidade da educação e melhorar a equidade do sistema no nosso país”, afirmou ela sem citar nenhuma fonte para as informações durante o lançamento da Política Nacional de Formação de Professores, em outubro.

Mercado educacional?

Para Salomão Ximenes, ainda que a inclusão da Base no Plano Nacional de Educação tenha sido resultado da pressão dos grupos empresariais, a ideia era de que ela seria apenas um dos elementos para ampliação da garantia da qualidade da educação. “Isso tinha que estar articulado à garantia de condições para o funcionamento das escolas, valorização do magistério, financiamento. Mas na situação atual, o que fica muito evidente é que a agenda da Base avança e o restante da agenda do PNE não, porque há uma visão tecnocrática de que ela não requer recursos. Na verdade, tem uma parte desse setor que vê na Base uma chave para um mercado 2.0 de venda de serviços para as escolas”, analisa ele.

Alice Ribeiro, secretária-executiva do Movimento pela Base, vê de maneira diversa. Ela afirma que, de fato, os problemas da educação vão além da questão pedagógica, sobre o qual a BNCC pretende incidir, e cita problemas de gestão e de infraestrutura como os principais. Mas ressalta: “As questões de infraestrutura e de gestão são tão urgentes e doem tanto no dia a dia que acabam recebendo mais atenção, e é natural: se a escola está caindo na cabeça do menino, não tem professor em sala de aula, isso tudo dá manchete, é muito agudo, e acaba sendo alvo de muitas discussões e ações”, diz Alice, para quem os problemas pedagógicos acabam ficando “em segundo plano”. “A visão do Movimento foi de que essa questão pedagógica, sobre o que o aluno deveria aprender, uma clareza maior sobre o que é esperado que os alunos aprendam, merecia uma atenção especial”, diz.

Com relação à reivindicação de cumprimento do PNE como um todo, e não apenas do que o Plano diz sobre a Base, Alice afirma que o Movimento não tem posição. Com a ressalva de que é um posicionamento pessoal, ela defende, no entanto, que a implantação da BNCC vai gerar uma demanda por um maior aporte de recursos técnicos e financeiros por parte do MEC. “As questões relativas à implementação da Base custam. As adaptações que vão precisar ser feitas, como a elaboração de recursos didáticos, formação de professores, elas custam bastante dinheiro, então é muito importante que haja, de fato, um planejamento financeiro cuidadoso para que a gente não tenha um documento forte tecnicamente mas que não consiga sair do papel por falta de recursos técnicos ou financeiros”, aponta ela.

No artigo ‘Base Nacional Comum Curricular: disputas ideológicas na educação nacional’, Cláudia Piccinini ressalta que a própria implantação da BNCC – mesmo sem ter sido homologada – tornou-se uma fonte de receitas para fundações privadas por meio de parcerias com o poder público. A edição do Diário Oficial do dia 23 de março, antes mesmo da divulgação da terceira versão da BNCC pelo MEC, já trazia uma pista. Lá, o Miinstério formalizou a contratação da Fundação Vanzolini – que tem como foco a área de gestão da administração pública e tem projetos voltados para a formação de professores – para execução de serviços referentes à implantação da BNCC. O contrato chegava ao valor de R$ 19 milhões.

Segundo Cláudia, em 2016 o grupo de estudos do qual participa na UFRJ fez um mapeamento dos programas e projetos em execução atualmente pelos institutos e fundações empresariais que compõem o Movimento pela Base no país. “São 229 projetos ligados diretamente à educação no Brasil inteiro, voltados pra formação de professores, gestão, protagonismo juvenil. Nós mapeamos alguns estados, como Tocantins, em que você tem praticamente todos os municípios recebendo assessoria dessas fundações. Toda formação continuada de professores, todos os projetos relacionados à educação, de alguma maneira, passam por esses projetos”, aponta ela.

Mas por que então a BNCC interessa às organizações empresariais, se aparentemente elas estão indo tão bem sem ela? Salomão Ximenes tem uma aposta: “A Base dá ao mercado educacional previsibilidade e segurança econômica. Esse mercado passa a contar com uma definição do conteúdo educacional a ser ofertado a cada ano, a cada semana e, com isso, vai poder formatar o seu sistema de ensino, as suas apostilas, o seu sistema de formação de professores de acordo com isso”. Segundo ele, a implantação da Base vai permitir que os programas sejam direcionados à melhoria de resultados nas avaliações externas, como o Ideb. “E isso agora com uma possibilidade de contratualização muito direta. Por exemplo: o município vai poder contratar a empresa ‘X’, o sistema educacional ‘Y’, que vai lhe prometer melhorar o Ideb para 4,5 no prazo de quatro anos e esse será o resultado a ser entregue ao final do processo de contratualização”, diz o professor da UFABC. “É possível visualizar isso, inclusive, não só pela venda de sistemas de ensino, mas até mesmo pela transferência da gestão de escolas. A experiência americana é riquíssima nesse sentido e o governo de Goiás, com a proposta de entregar a gestão de escolas para as OSs [Organizações Sociais], já se aproxima disso. Você passa a mercantilizar esses resultados porque eles se tornam bastante previsíveis quando você estabelece a Base”, conclui.

Alice Ribeiro não concorda com as críticas e defende que as teses formuladas pelas instituições empresariais não apresentaram um peso desproporcional no processo de elaboração da BNCC. “Acho que é uma crítica que não procede. Os membros do Movimento, tanto pessoas físicas quanto instituições, há muito tempo vêm discutindo a educação brasileira e dando contribuições muito concretas. A gente não tem e não dá informação privilegiada. Tudo que o Movimento gera, as pesquisas, as leituras críticas, está tudo no nosso site. As informações a que a gente tem acesso são públicas. O que a gente faz é organizar muito essas informações e analisar junto com um grupo de pessoas extremamente qualificado”, argumenta ela. E completa: “Acho que o Movimento é um grupo que se organizou para discutir a causa de uma maneira aprofundada e ampliada.

Isso, certamente, traz uma perspectiva muito rica. Agora, o Movimento não redige a Base, ele não toma decisão a respeito do documento. Isso é uma atribuição do Ministério da Educação em parceria com estados e municípios por parte do Consed e da Undime. O nosso papel é de ampliar e aprofundar as discussões”.

Também para Patricia Mota Guedes, gerente de pesquisa e desenvolvimento da Fundação Itaú Social, que integra o Movimento pela Base, a versão atual da BNCC expressa as diferentes vozes presentes nos espaços de elaboração do documento. “O Movimento pela Base até teve um papel importante na discussão que ajudou a estimular o Ministério da Educação a liderar um processo, mas depois ele tomou força própria. Se você olhar a quantidade de devolutivas que o documento teve durante os diferentes momentos de revisão, foram milhões de comentários. Os especialistas das universidades se envolveram. Houve também um esforço grande da Undime e do Consed junto com o Conselho Nacional de Educação na organização de fóruns regionais, dos quais participaram muitos professores, além das audiências públicas”, defende ela, fazendo referência aos seminários nacionais realizados em junho de 2016 para debater a segunda versão da BNCC e às cinco audiências públicas realizadas entre junho e setembro de 2017 para debater a terceira versão do documento, apresentado em abril, já sob o governo de Michel Temer.

Rupturas

A professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Mônica Ribeiro, entretanto, entende que o discurso de que a versão atual da BNCC apresenta uma linha de continuidade em relação aos debates referentes às versões anteriores é enganoso. “Para legitimar a BNCC se diz que é a terceira vez que o documento é colocado para consulta pública, mas isso não é verdade. Essa terceira versão não tem qualquer linha de continuidade com os documentos anteriores, é totalmente novo. Foram outros especialistas que fizeram, ele fala de outras referências que não estavam ali anteriormente”, critica ela. Entre as “rupturas” apontadas por Mônica no texto da terceira versão da BNCC está a introdução da noção de competências como referência conceitual para a elaboração dos currículos da educação básica. E isso, garante, é uma evidência do aumento da confluência entre as agendas do governo e do empresariado. “A gente já tem uma larga discussão no Brasil fazendo a crítica ao modelo de competências, e o quanto isso está atrelado a uma visão mercantilizada da educação”, destaca.

Ainda assim, a secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães, já adiantou, em setembro, que a BNCC do ensino médio, que estava em fase de elaboração pelo MEC no momento em que essa reportagem era produzida, seguirá a mesma estrutura. Ao contrário das anteriores, a terceira versão – e ao que tudo indica, a definitiva – retirou o ensino médio do texto da BNCC. A justificativa apresentada pelo governo foi a de que o texto precisaria ser reformulado para se adequar às mudanças trazidas pela reforma do ensino médio. Segundo o MEC, a versão da Base para essa etapa da educação básica será divulgada até o final de 2017. A Poli entrou em contato com a assessoria de imprensa do MEC em outubro solicitando informações sobre a BNCC do ensino médio, mas até o fechamento desta edição não obteve resposta.

Mônica Ribeiro afirma que a introdução das competências como referências para a construção dos currículos na educação básica no texto da BNCC retoma uma disputa que vem se desenrolando ao longo dos últimos 20 anos no país. Segundo ela, principalmente após a aprovação da LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996, houve um movimento no governo Fernando Henrique Cardoso de tornar a chamada pedagogia das competências a referência para construção curricular em todas as etapas da educação. Foi nesse contexto que foram editados os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, em 1998. “A concepção de competências nesses documentos associa o fazer da escola ao fazer mais imediato da prática do trabalho. Não tomava sequer como referência as relações que estão implícitas no mundo do trabalho, mas tomava supostas demandas de mercado para pensar a formação dos estudantes da escola de educação básica no Brasil”, diz Mônica.

Segundo Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), vários países iniciaram reformas educacionais com base na pedagogia das competências naquele período, muito em decorrência do trabalho de indução de organismos multilaterais como a OCDE e o Banco Mundial. Ela explica que a mobilização de educadores críticos foi capaz de fazer com que a adoção da pedagogia das competências para reelaboração dos currículos não fosse obrigatória. “A partir de 2003, no governo Lula, por conta da crítica à pedagogia das competências, o debate da educação brasileira se volta para a discussão de concepção de formação humana integral, que defende que o conhecimento importante não é o conhecimento que é útil pragmaticamente, voltado para resultados, mas é o conhecimento que possibilita ao sujeito compreender a realidade e atuar nela”, diz Marise, que ressalta que no período entre 2003 e 2016 os grupos mais sintonizados com a concepção de formação humana integral conseguiram disputar a hegemonia dentro do governo com os grupos afinados com a pedagogia das competências. “Não é por acaso que é neste governo que todo esse pensamento é retomado”, pontua ela. E completa. “Essa é uma noção que se pauta pela formação dos indivíduos para se tornarem adaptáveis à realidade, não para torná-los capazes de atuar na realidade visando transformá-la. É absolutamente apropriada para a lógica contemporânea do neoliberalismo, do individualismo, da flexibilidade e da instabilidade da vida”, explica.

Mônica Ribeiro concorda, assinalando a coerência entre a reforma da educação básica e as reformas que têm procurado flexibilizar a legislação brasileira sobre os direitos sociais. “A reforma trabalhista, a reforma da Previdência, a terceirização, tudo isso faz parte de um mesmo movimento de retirada do Estado dos setores sociais e de implantação de uma lógica privada na administração pública. As reformas do campo da educação estão absolutamente afinadas com esse conjunto de reformas”, defende.

Por que competências?

O texto de apresentação da terceira versão da BNCC explica que a noção de competência é utilizada “no sentido da mobilização e aplicação dos conhecimentos escolares, entendidos de forma ampla (conceitos, procedimentos, valores e atitudes)”. Assim, segundo o texto, “ser competente significa ser capaz de, ao se defrontar com um problema, ativar e utilizar o conhecimento construído”. A justificativa apresentada pelo MEC para a introdução das competências é o artigo 9 da LDB, onde está escrito que cabe à União “estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum”. Ainda segundo o texto de apresentação da BNCC, a elaboração de currículos referenciados em competências fundamenta reformas curriculares que vem ocorrendo em vários países ao longo das últimas décadas. “É esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos”, afirma o texto.

Outro artigo citado no texto da BNCC como “fundamento pedagógico” é um artigo da LDB que sofreu modificações a partir da aprovação da reforma do ensino médio, em 2017. Apresentada pelo presidente Michel Temer por meio da medida provisória 746, e aprovada pelo Congresso Nacional em fevereiro de 2017, a reforma incluiu, no texto da LDB, um artigo que afirma que os currículos desse nível de ensino “deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais”. O uso de termos como “aspectos socioemocionais” e “projeto de vida” são importantes para desvelar os fundamentos ideológicos por trás da reforma da legislação da educação básica na conjuntura atual. Segundo David Chaves, se tratam de expressões tiradas diretamente de documentos sobre educação produzidos pela OCDE, que defende a necessidade de que a escola desenvolva nos estudantes certas “competências socioemocionais”, entendidas como elementos centrais para alavancar o desempenho nas avaliações externas. Uma das principais competências socioemocionais é a “resiliência”. Estudantes resilientes, na definição da OCDE, são “aqueles que provêm de um ambiente socioeconômico relativamente desfavorável e alcançam altos desempenhos, do ponto de vista dos padrões internacionais”.

Não por acaso, a “resiliência” é apontada no texto da BNCC como uma das “competências gerais”, que devem ser estimuladas entre os estudantes em todas as etapas da educação básica. Para David, esse é o principal exemplo da convergência entre o texto da BNCC e a visão empresarial sobre educação. “OCDE e BNCC caminham na direção do estímulo ao empreendedorismo como forma de tornar o cidadão capaz de superar as adversidades da crise estrutural do capitalismo que se reflete, dentre outras coisas, na falta de emprego e na redução das conquistas em torno dos direitos trabalhistas”, avalia ele.
Seu objeto de estudo atualmente é a parceria firmada em 2012 entre a Secretaria estadual de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) e o Instituto Ayrton Senna – uma das instituições que compõem o Movimento pela Base – para a implantação do programa ‘Solução Educacional para o Ensino Médio’. Com patrocínio da Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (Codin) e da multinacional Procter & Gamble, o programa foi implantado em uma escola modelo, o Colégio Estadual Chico Anysio, com o intuito de replicá-lo para toda a rede estadual. “É um programa que trabalha com projetos de vida e com a ideia da OCDE de desenvolver competências socioemocionais, que orientam todas as ações do programa, à proporção que supostamente aumentariam o desempenho nas disciplinas cognitivas, como português, matemática, história, geografia e ciências, e preparariam cidadãos mais capazes de lidarem com as dificuldades da vida, tornando-os mais flexíveis e habilitando-os a serem empreendedores”, explica David, que é crítico do que chama de “caráter funcionalista” da formação oferecida por esse tipo de programa.

“A planificação dos conteúdos minimalistas e a concentração de forças apenas no que ‘vai cair na prova’ constituem-se, para nós, numa estratégia de anular a escola enquanto espaço contraditório de disputa por projetos societários e sedimentar a ideia de que as avaliações externas são medidoras da ‘qualidade’, como se essa palavra fosse universal e representasse o entendimento de todos sobre ela”, critica. E complementa: “Na realidade, elas se constituem numa determinada forma de qualidade, ligada a determinados grupos que precisarão dos futuros trabalhadores socioemocionalmente conformados”.

CNE vota novo parecer

O Conselho Nacional de Educação votará nos dias 6 e 7 de dezembro um novo parecer sobre a Base Nacional Comum Curricular, equivalente a uma quarta versão do documento. O parecer só estará disponível após a votação. Segundo a Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca), o Ministério da Educação (MEC) sinalizou mudanças na educação infantil e reestruturação no bloco de Língua Portuguesa do ensino fundamental. Mas, apesar de críticas, o tratamento de questões de gênero, o enfoque do ensino de história e a menção a competências em lugar de direitos de aprendizagem não devem ser alterados. Mais informações no site da Jeduca.

Portal Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

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