Artigo 142 é para impedir movimento golpista, não apoiá-lo

O recente movimento golpista de bloquear estradas demonstra que o Brasil é um país que vive sendo assombrado pelos fantasmas do passado. Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob ditadura militar

Ricardo Russell Brandão Cavalcanti1 e
Saulo Emmanuel Rocha de Medeiros
2

O golpe de 1964 estabeleceu a censura, restrição de direitos políticos e dura perseguição aos opositores do regime. O Congresso foi fechado, houve a imposição de nova Constituição, os direitos políticos dos cidadãos foram suspensos, houve a cassação dos mandatos parlamentares, dissolução de partidos políticos, foram proibidas greves e manifestações.

O cotidiano do regime era pautado por torturas, assassinatos, prisões, exílios e o desaparecimento de pessoas.

Ao analisar essa parte da história do Brasil, pensa-se que é impossível se querer a volta de período tão tenebroso para o povo brasileiro, porém, recentemente, a narrativa sobre mitos e lendas estão fazendo parte da nossa história política, de modo que, ao que parece, parcela da população tenta desenterrar os fantasmas do passado, bem como reviver uma das partes mais dolorosas da história brasileira.

Com base no acima exposto, este artigo busca, por meio de metodologia exploratória e descritiva, debater sobre (im)possível intervenção militar no Brasil.

O golpe de 1964

Segundo Candeu e Vermeersch (2016), “o golpe militar de 1964 marcou fortemente a história do Brasil pelo retrocesso da democracia, educação e dos direitos civis”. “Nas escolas esse período foi muito além do que censurar diversos conteúdos de história e geografia de todos os níveis de ensino”, existindo o verdadeiro sucateamento da educação pública.

Para SAVIAN (2008):
Em consequência da exclusão do princípio da vinculação orçamentária, o governo federal foi reduzindo progressivamente os recursos aplicados na educação. Assim, liberado da imposição constitucional, o investimento em educação por parte do MEC chegou a aproximadamente 1/3 do mínimo fixado pela Constituição de 1946 e confirmado pela LDB de 1961.

Quanto aos direitos trabalhistas na época do regime militar, Lara e Silva (2015) comentam que:

Os direitos trabalhistas e sociais sofreram retrocessos com a implantação da ditadura civil-militar no Brasil em 1964. O golpe de 1º de abril, apoiado pelo imperialismo norte-americano, pelos setores conservadores da alta hierarquia da Igreja Católica, pela burguesia internacional e nacional (industrial e financeira, os grandes proprietários de terras), conteve o avanço das forças populares que vinham num crescente nível de organização e mobilização em torno das lutas pelas reformas de base.

Manifestantes golpistas fazem gesto nazista | Foto: Reprodução/redes sociais

Para manter a política do arrocho, o caminho legislativo encontrado foi a lei antigreve. A lei de greve de 1º de julho de 1964 (Lei 4.330) proibiu a greve no serviço público, nas empresas estatais e nos serviços essenciais. A greve só seria considerada legal quando os empregadores atrasassem o pagamento ou quando não pagassem salários conforme as decisões judiciais.

Os recursos para saúde nos tempos do regime militar também foram direcionados para o fortalecimento dos grupos privados. Carvalho e Santos (2015), salientam que:

Os recursos médico-hospitalares foram direcionados ao setor privado, de forma que poderia contar com o apoio de setores importantes e influentes dentro da sociedade e da economia para o funcionamento do serviço. Criou-se, assim, convênios e contratos com a maioria dos médicos e hospitais existentes no país. Essa forma de organização levou à criação em 1978 do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), que pagava aos hospitais particulares o atendimento dos segurados. Além disso, levou-se, também, à criação de sistema médico-industrial, com aumento do consumo de medicamentos, baseados em medicina curativa; capitalização dos grupos envolvidos nesse sistema e, ainda, ampliação de hospitais da rede privada. Até o final de 1970 foi excluída a gestão tripartite das unidades previdenciárias, centralizando o controle do Estado e afastando os trabalhadores dos processos decisórios.

Já a censura dificultou o acesso à cultura. Nesse sentido, Franco (1995) afirma:

A ação imediata do Estado Militar após a edição do AI-5, por meio do qual esse alterava a postura diante da vida cultural, foi basicamente repressiva. Esse estava de fato determinado a suprimir efetivamente qualquer herança ou consequência da prática cultural anterior a 1968. Para isso, por meio da censura, suprimiu toda forma expressiva que pudesse ter qualquer eventual significação política; reprimiu indistintamente todo tipo de obra ou criou dificuldades objetivas para a circulação e distribuição de grande número dessas; atacou a produção cultural universitária, afetando gravemente tanto o destino quanto a qualidade; demitiu professores e perseguiu (alguns) produtores culturais.

Em outras palavras: o objetivo imediato era o de calar a voz da sociedade e impedir as manifestações culturais. Além disto, exerceu árdua censura diária à imprensa que, em alguns casos, se viu forçada, para resistir à proibição de informar e denunciar tal ato de violência, a publicar constantemente receitas culinárias imaginárias — jocosas, algumas vezes — ou trechos de poemas de Camões, particularmente de Os Lusíadas. Enfim, o Estado Militar, tomado por este desejo de suprimir a cultura do período anterior, parecia almejar o estabelecimento de formidável silêncio social; espécie de “vazio cultural”. Claro está que, com tais atitudes, comprometia a qualidade da formação dos cidadãos e estabelecia atmosfera cultural desanimadora e incipiente.

No mais, o período militar foi marcado por prisões arbitrárias, tal como aconteceu com os cantores Gilberto Gil e Caetano Veloso, que foram presos por causa de boato de que tinham se enrolado na bandeira do Brasil para cantar o Hino Nacional enxertado de palavrões (Caetano, 2020), existindo também no período a prática de tortura, assim como afirma Marcos Napolitano ao dizer que na época “a repressão à base de tortura superou qualquer limite jurídico ou humanitário” (NAPOLITANO, 2014), existindo, ainda, o extermínio de pessoas contrárias ao regime imposto, assim como também afirma o último autor citado:

Logo, o sistema repressivo, parte estrutural do regime, elaborou sofisticada técnica de desaparecimento, cujo primeiro momento era o desaparecimento físico do corpo, seja por incineração, esquartejamento, sepultamento como anônimo ou com nomes trocados. (NAPOLITANO, 2014)

Enfim, o período da ditadura militar deveria ser sumariamente esquecido e nunca repetido, mas, apesar disso, seria juridicamente possível o retorno de regime assim? É o que tentaremos responder no próximo capítulo.

Da (im)possibilidade de novo regime (ditadura) militar

Para ser falar sobre a possibilidade de novo regime militar, temos que analisar a função das Forças Armadas prevista na Constituição, que afirma o seguinte:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (grifos nossos)

No mesmo sentido, a Lei Complementar 97/99 prevê:

Art. 15. O emprego das Forças Armadas em defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação: (grifos nossos)

Desse modo, ainda que as Forças Armadas estejam sob a autoridade suprema do presidente da República, essas têm como função garantir a lei e a ordem, o que simplesmente impede a utilização dessas para dar golpe militar, uma vez que a nossa Lei Maior afirma que logo no artigo primeiro que o Brasil é um “Estado democrático de Direito”, não sendo por outra razão que José Afonso da Silva afirma que as Forças estão a serviço do Direito e da Paz Social (SILVA, 2020), o que as torna instituições de Estado e não de governo.

No mais, não há golpe militar sem violência e a organização de grupos militares com fito de praticar violência é crime previsto no Código Penal Militar nos seguintes termos:

Organização de grupo para a prática de violência

Art. 150. Reunirem-se dois ou mais militares ou assemelhados, com armamento ou material bélico, de propriedade militar, praticando violência à pessoa ou à coisa pública ou particular em lugar sujeito ou não à administração militar: Pena – reclusão, de 4 a 8 anos.

Outrossim, caso, na condição de autoridade suprema das Forças Armadas, o presidente da República determine a realização de intervenção militar contra o Estado Democrático e os outros poderes da República, ele incidirá em Crime de Responsabilidade previsto na própria Constituição, que em seu artigo 85 prevê:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; (…) VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais. (grifos nossos).

Facilmente podemos concluir que o simples fato de o presidente incentivar golpe militar já o fará incidir nos incisos acima colacionados, o que por si só é o suficiente para ele sofrer processo de impeachment.

Outrossim, a Lei de Segurança Nacional, 7.170/83, também inibe qualquer possibilidade jurídica de golpe militar ao afirmar logo no artigo 1º: “Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I – a integridade territorial e a soberania nacional; Il – o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito”. Além disso, a referida lei traz as seguintes condutas que, caso praticadas por qualquer pessoa, serão consideradas crimes:

Art. 16 – Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça.

Art. 17 – Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito.

Art. 18 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.

Desse modo, qualquer pessoa que mantenha grupo com os fins acima ou que simplesmente tente mudar o regime vigente no Brasil ou ainda tente impedir com violência ou ameaça o exercício de qualquer dos Poderes da República cometerá crime, ou seja: a mera tentativa de golpe por qualquer pessoa já é um crime, o mesmo acontecerá com quem faça, inclusive nas redes sociais, propaganda nesse sentido, tal como dispõe a mesma Lei 7.170/83 ao afirmar ser crime: “Art. 22 – Fazer, em público, propaganda: I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”.

Enfim, não existe qualquer respaldo jurídico para que o presidente da República se utilize das Forças Armadas ou de qualquer pessoa para a realização de intervenção militar visando mudar o regime vigente e qualquer tentativa nesse sentido será considerada crime tanto por parte do presidente da República como de todos os militares e civis envolvidos.

Naturalmente, pensa-se logo na possibilidade de golpe desrespeitando-se o sistema jurídico vigente tal como aconteceu em 1964. Entretanto, a situação atual é bem diferente do que acontecia na década de 1970, tendo em vista que atualmente as instituições funcionam de forma plena, incluindo o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público e a Defensoria Pública, essa última com a função e preservar os Direitos Humanos.

No mais, o atual presidente sequer foi reeleito. Assim, além de faltar respaldo jurídico ao presidente, falta também respaldo político e institucional para a tomada de qualquer medida inconstitucional.

Conclusão

No último dia 30 de outubro tivemos o segundo turno das eleições para escolher o futuro presidente do Brasil e no mesmo dia foi declarado um vencedor, que discursou afirmando que governaria para todas e todos. Entretanto, no dia seguinte foi iniciado movimento de protestos no país organizado principalmente pelo segmento dos caminhoneiros pedindo intervenção militar no Brasil.

O referido protesto acabou sendo inflamado pela demora de o presidente não reeleito em reconhecer a derrota e a base jurídica utilizada pelos manifestantes foi o artigo 142 da Constituição da República, que supostamente permitiria intervenção militar.

No entanto, vimos no presente estudo que o referido artigo constitucional não permite golpe militar, mas sim, em verdade, serve para impedir que isso aconteça. No mais, qualquer tentativa de se estabelecer regime militar no Brasil é crime por parte de todas as pessoas envolvidas.

Assim, espera-se apenas que se cumpram os resultados das urnas e que o Brasil continue a ser um Estado democrático de Direito.

1Defensor público federal, professor efetivo do IFPE, mestre e doutor em Direito e especialista em Ciência Política.

2Mestre em Gestão Pública. Professor do IFPE.

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CAETANO, Veloso. Narciso em Férias. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

CANDEU, Gabriela Naiara de Souza; VERMEERSCH, Paula Ferreira. A ditadura militar e suas consequências na consciência da educação como política. Colloquium Humanarum, vol. 13, n. Especial, Jul–Dez, 2016, p. 33-37. ISSN: 1809-8207.

CARVALHO, Rodrigo Badaró de. SANTOS, Thaís dos. O direito à saúde no brasil: uma análise dos impactos do golpe militar no debate sobre universalização da saúde. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA. 2015

FRANCO, Renato. Política e Cultura no Brasil: 1969-1979. (DES)figurações. Departamento de História – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – 14800-901 – Araraquara – SP. Perspectivas, São Paulo, 17-18: 69-74, 1994/1995.

LARA, Ricardo. SILVA, Mauri Antônio da. A ditadura civil-militar de 1964: os impactos de longa duração nos direitos trabalhistas e sociais no Brasil. ARTIGOS • Serv. Soc. Soc. (122) • Apr-Jun 2015

NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do regime militar Brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014.

SAVIAN, Dermeval. O legado educacional do regime militar. Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 76, p. 291-312, set./dez. 2008

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros/JusPodium, 2020.

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