Balas mais letais do que as de metais

Por José Geraldo Santana de Oliveira*

“A gente principia as coisas, no não saber porque, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal…”

Essas sábias, emblemáticas e instigantes lições, em forma de registro, são de Riobaldo, personagem principal do imortal romance que consagrou e imortalizou Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956.

Não obstante a razoável distância temporal que as separam do atual contexto sócio político brasileiro, mantêm-se incólumes, tanto no campo como na cidade, notadamente quanto às astúcias dos que mandam e dos que os servem fielmente e da necessidade de até Deus se armar para enfrentá-los.

No tocante às balas letais, que se constituem em escudo para os detentores do poder, hoje, não são mais apenas “pedacinhozinho” de metal. Além delas, que continuam a ser usadas à larga, há outras, igualmente letais, às vezes mais, que se travestem de emendas constitucionais (ECs), leis e decisões judiciais, em particular as do Supremo Tribunal Federal (STF).

Caso alguém duvide dessa assertiva, basta que confira a EC 95, que congela os investimentos sociais por 20 anos; a Lei nº 13429/2017, que escancara a terceirização, permitindo, inclusive, a intermediação de mão de obra; a Lei nº 13467/2017, que transforma a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em arma do capital contra os trabalhadores; e as decisões do STF, proferidas no recurso extraordinário (RE) 1018459, que proíbe a cobrança de contribuição assistencial de trabalhador não associado; na ação direta de constitucionalidade (ADI) 5794, na ação declaratória de constitucionalidade (ADC) 55, que julgam constitucional a conversão da contribuição sindical em facultativa, retirando-lhe a obrigatoriedade; no RE 958252, que autoriza a terceirização de todas atividades econômicas; e na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 324, que julga inconstitucional a Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), último e único freio que existia à terceirização da atividade econômica principal (fim).

Sabedores de que a resistência e a força dos trabalhadores provèm de sua união e que esta somente se consubstancia em sindicatos fortes, não mediram e continuam a não medir esforços para desacreditá-los aos olhos dos seus representados e de toda a sociedade.

Com essa vil finalidade, difamam e caluniam os sindicatos e os seus dirigentes, acusando-os, de forma sórdida, de serem em número excessivo, de não possuir representatividade, de não ser capazes de garantir quaisquer benefícios às respectivas categorias e de viver em razão da contribuição sindical compulsória, e nada mais.

Os maiores difamadores e caluniadores dos sindicatos  encastelam-se na chamada grande mídia e no Poder Judiciário, sobretudo no STF.

Porém, as maldosas pechas (deformidade; falha moral) que imputam aos sindicatos não resistem ao mais singelo confronto com os dados extraídos do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Segundo o Cadastro Nacional de Entidades Sindicais (CNES), atualizado até 2017, para o contingente superior a 100 milhões de trabalhadores ativos, espalhados nos mais de  5.570 municípios,  há 11.698 sindicatos de
trabalhadores registrados no MTE, sendo 8.755 urbanos, dos quais 2.054 são de servidores públicos, que não negociam convenções e acordos coletivos de trabalho, e 2.943 rurais que, em regra, também não
negociam instrumentos normativos coletivos. De 2007 a 2017 foram registradas no Sistema Mediador do MTE 56 mil convenções coletivas e 308 mil acordos coletivos, firmados por um total de 6.007 sindicatos, do universo de 6.701 com capacidade negocial (11698-2054-2943), sendo que entre 84% e 95% desses instrumento normativos abordam os principais aspectos das relações laborais, tais como contratação, remuneração e condições de trabalho.

No quesito representatividade, melhor sorte não se reserva às falácias de tais difamadores e caluniadores, como provam os números da OIT. Não é demais lembrar que alguns ministros do STF compararam o sindicalismo brasileiro com o alemão e o norte-americano, mesmo tendo ciência de que o índice de sindicalização nesses países é menor do que o do Brasil.

O índice de sindicalização no Brasil é de 19,5%; na Austrália, 15,5%; no Chile, 15,5%; na Alemanha, 18,1%; no Japão, 17,8%; na Espanha, 16,9%; na Estônia, 5,7%; na França, 7,7%; no México, 13,5%; no EUA, 10,7%; na  Coreia do Sul, 10,1%; na Áustria, 27,8%; na Bélgica, 55,1%; no Canadá, 26,4%; na Dinamarca, 66,4%; na Finlândia, 69%; na Islândia, com pouco mais de 200 mil habitantes, 86,4%; na  Irlanda, 27,4%; na Itália, 37,3%; em Luxemburgo, 32,8%; na  Noruega, que tem o maior IDH do mundo, 52,1%; na  Suécia, 67,3%; e  no Reino Unido, 25,1%.

Se os dados acima não são suficientes para comprovar a orquestrada campanha de descrédito das entidades sindicais de trabalhadores, tendo como regentes, repita-se, a mídia e a maioria dos ministros do STF,  os que se referem ao financiamento das atividades sindicais como gritantes. Os dados demonstram a desfaçatez desses agentes do capital, bem como a sordidez de sua nefasta campanha.

Nos termos do Art. 8º, da Constituição Federal (CF), é livre a organização sindical, de trabalhadores e empregadores, sendo o Brasil o único País do mundo que autoriza a criação de sindicatos patronais, que, também, são beneficiários da contribuição sindical.

Pois bem! O jornal Folha de São Paulo, indisfarçado inimigo das organizações sindicais de trabalhadores, divulgou no seu caderno “Mercado”, de 3 de julho de 2017, dados extraídos do MTE sobre a contribuição sindical e a contribuição compulsória – que não foi tocada – recolhida nas guias de previdência social (GPS) para o chamado Sistema ‘S’ ( Senai, Sesi, Senai, Senac, Senar, Sescoop, Sest, Senat e Sebrae), e a ele repassada pela Receita Federal, e que é gerida pelas federações sindicais patronais, por força do que dispõe o Art. 240, da CF: “Art. 240. Ficam ressalvadas do disposto no art. 195 as atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical.”

Diz a realçada matéria da Folha de São Paulo: “Entidades patronais que apoiaram o fim da contribuição sindical obrigatória, previsto pela reforma trabalhista em discussão no Congresso, têm condições de abrir mão do imposto porque ele representa uma fatia muito pequena dos recursos que as sustentam —ao contrário do que ocorre com a maioria dos sindicatos de trabalhadores.

“No ano passado, o imposto sindical respondeu por apenas 11% do orçamento de R$ 164 milhões administrado pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), segundo balanço da entidade obtido pela Folha.

[..]

“Na semana passada, a Fiesp publicou anúncio nos jornais dizendo que abriria mão do imposto sindical para ser ‘coerente em sua luta por menos impostos’. A entidade é presidida por Paulo Skaf, aliado do presidente Michel Temer que concorreu ao governo do Estado de São Paulo pelo PMDB nas eleições de 2014.

“No mesmo dia, a Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) divulgou nota apoiando o fim do imposto sindical. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) já havia se posicionado assim semanas atrás.

“As vultosas quantias que abastecem as entidades patronais, no entanto, vêm de outra fonte: taxas previstas em contratos firmados para gerir o sistema S (Sesi, Senai, Sesc etc.). Na Fiesp, essa taxa levou ao repasse de R$ 100 milhões no ano passado, o equivalente a 60% do orçamento da federação.

“As empresas recolhem mensalmente entre 0,2% e 2,5% da folha de salários para o sistema S, cujo objetivo é promover a qualificação e garantir o lazer dos trabalhadores. No ano passado, o sistema S arrecadou R$ 16 bilhões.

“Repasses do Sesi e do Senai também representam a maior parte do orçamento da CNI e das outras federações estaduais da indústria. A Firjan informou que o dinheiro do Sesi e do Senai cobrirá 72% do orçamento de R$ 45,7 milhões previsto para este ano”.

Segundo a destacada matéria, no ano de 2017 as entidades sindicais de trabalhadores receberam R$ 1,97 bilhão, e as patronais R$ 777,4 milhões, a título de contribuição sindical, o que representa o total de R$ 2,75 bilhões a esse título.

Veja-se que quadro interessante: a contribuição compulsória das entidades sindicais patronais, garantida pelo Art. 240, da CF – e que é, ao fim e ao cabo, cobrada de todos os consumidores –, totalizou R$ 16,4 bilhões em 2017; tem-se que ela, sozinha, corresponde a seis vezes o total da contribuição a sindical (R$ 2,75 bilhões), nela incluída a parcela patronal de R$ 777,4 milhões.

Se se tomar apenas a parcela dos trabalhadores na contribuição sindical de 2017, que chegou R$ 1,97 bilhão, a contribuição do Sistema ‘S’ representa 8,3 vezes o seu total.

Faz-se necessário ressaltar que os ministros do STF, que declararam guerra aos sindicatos profissionais, não por esquecimento ou descuido, não disseram uma só palavra sobre a contribuição ao sistema S. Este proposital silêncio é prova cabal de sua cumplicidade com os interesses patronais.

Vale lembrar que o ministro Roberto Barroso, sempre atento contra os sindicatos profissionais, afirmou, em seu voto, que a contribuição sindical é boa para os sindicalistas e não para os trabalhadores; mas também ele não disse um sussurro sequer sobre as contribuições patronais.

Aliás, esse espúrio conúbio entre os ministros do STF e o capital igualmente se patenteia na decisão tomada pelo “Plenário Virtual” no RE 1018459, que julgou inconstitucional a cobrança de contribuição de trabalhador não associado, sendo que o Acórdão ainda não foi publicado, apesar de a decisão haver sido tomada em fevereiro de 2017. A tese vinculante, aprovada nesse RE (Tema 935) se firma no seguinte conteúdo: “Inconstitucionalidade da contribuição assistencial imposta aos empregados não filiados ao sindicato, por acordo, convenção coletiva de trabalho ou sentença”.

A surrada e desmoralizada cantilena dos regentes da sórdida campanha de enfraquecimento dos sindicatos profissionais, segundo a qual esses precisam viver das contribuições de seus sócios, devendo, para isto, mostrar serviço, como visto, não se aplica aos sindicatos patronais, não sendo sequer admitida a sua discussão para esses e por esses.

Conforme a já citada matéria publicada na Folha de São Paulo em 3 de julho de 2017, “Na semana passada, Horácio Lafer Piva, ex-presidente da Fiesp e conselheiro da Klabin, Pedro Passos, conselheiro da Natura e ex-presidente do Iedi, e Pedro Wongtschowski, atual presidente do Iedi e conselheiro do grupo Ultra, publicaram um artigo na Folha pedindo mudanças na representação patronal.

“Para os três empresários, as federações estaduais deveriam ser sustentadas apenas com contribuições voluntárias para serem forçadas a prestar serviços de qualidade.

“Aliados de Skaf, que preside a Fiesp desde 2004, rebateram o artigo sob condição de anonimato. Eles dizem que, se todas as contribuições fossem voluntárias, prevaleceria nas entidades a defesa das grandes empresas, que dispõem de mais recursos.”

Quanta hipocrisia e maldade!

Se se quiser buscar mais uma robusta prova da sórdida campanha de desmoralização e estrangulamento dos sindicatos profissionais, pode-se encontrá-la nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) quanto ao fundo partidário e ao fundo eleitoral, para 2018, que são, respectivamente, de R$ 310 milhões e R$ 1,7 bilhão.

Todos os partidos políticos com representação no Congresso Nacional, participam desses fundos, recebendo valores proporcionais ao tamanho de suas bancadas.

Veja-se que colossal crime de lesa sociedade, para financiar com dinheiro público entidades sindicais patronais e partidos políticos, inclusive os que votam contra a ordem democrática, não há barreiras ou ressalvas. Todavia, ao financiamento de entidades sindicais de trabalhadores, com dinheiro destes e de ninguém mais, impõem-se barreiras intransponíveis.

*José Geraldo Santana de Oliveira é consultor jurídico da Contee

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