Dados da violência contra a mulher não refletem realidade, mas a dificuldade em registrar a denúncia

São Paulo – Quando as curvas de contágio e óbito do coronavírus na Itália ficaram ainda maiores, as denúncias de violência doméstica diminuíram. De acordo com dados do comitê parlamentar de violência contra as mulheres, houve uma queda de 43% no registro da agressão de gênero depois do dia 9 de março – quando o isolamento social foi finalmente imposto no país para conter a pandemia.

Assim, a Itália que mostrava ao mundo o preço pago pela demora em decretar quarentena – com um dos maiores recordes de mortes por Covid-19 –, indicava também que a aparente redução no número de ocorrência não refletia na diminuição da violência de gênero, mas a dificuldade da vítima em realizar a denúncia durante o período de isolamento.

Foram 505 registros a menos nos primeiros 22 dias de março, ante o mesmo período em 2019, destacavam os registros da polícia italiana.

Por aqui no Brasil, onde a exportação de casos de contaminação já acontecia, os especialistas em violência de gênero, também acompanhava o desembarque da subnotificação. Depois de analisar à RBA que a Covid-19, ou a convivência em casa, não estimulam a violência, mas sim machismo histórico no qual estão ancoradas a desigualdade de gênero e a falta de políticas públicas, pesquisadores destacam aquilo que os dados brasileiros também não expressam: os casos que não chegam ao conhecimento das autoridades.

Já nos primeiros dias de isolamento, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apurou uma queda nos registros de Boletins de Ocorrência (B.O) em crimes como o de lesões corporais, que exigem a presença das vítimas, como mostra nota técnica divulgada nesta segunda-feira (20). Na comparação dos dados de março deste ano, com o março de 2019, as denúncias oficiais caíram 49,1% no Pará, 29,1% no Ceará, 28,6% no Acre, 8,9% em São Paulo e 9,4% no Rio Grande do Sul.

“A subnotificação tende a ser mais alta também nesse período, porque as pessoas estão isoladas dentro de casa e dá para imaginar a conjuntura”, alerta a advogada Tainã Góis, co-fundadora da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde) e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB e do Conselho Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo.

“Você não sabe se pode ou não ir até à delegacia, se a delegacia está ou não aberta, você não sabe o que pode ser feito. Às vezes você mora em uma casa pequena, que não tem como usar o telefone, falar para alguém o que está acontecendo, ou ligar para a polícia sem que o agressor ouça. Tudo isso tende a agravar”, chama a atenção a especialista.

O corpo que não se esconde, o feminicídio

O estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou ainda uma redução nos registros de violência sexual na maioria dos estados que enviaram seus dados, incluindo ainda Mato Grosso, onde a queda foi de 25,6%. Apenas no Rio Grande do Norte, que decretou isolamento social amplo posteriormente às outras unidades federativas, em 1º de abril, este tipo de crime apresentou crescimento.

A organização ainda observou que entre o final de março e os primeiros dias de abril, também caíram o número de Medidas Protetivas de Urgência concedidas. No Acre, por exemplo, a redução chegou a 67,7%.

Por outro lado, houve crescimento nos casos de feminicídio, ressalta o levantamento. Só em São Paulo, foram 10 casos em março deste ano contra 2 em 2019. A mesma tendência de aumento é apontada nos registros do 190 – a linha de denúncia da Polícia Militar que pode ser acionada não só pelas vítimas, mas por vizinhos.

O Fórum revelou inclusive, com base em um estudo digital para entender os impactos da quarentena na vida das mulheres em situação de violência, que os relatos de brigas de casal com indícios de agressão doméstica cresceram 431% no Twitter entre fevereiro e abril deste ano.

O contraste entre os dados administrativos oficiais com o registro de assassinato de mulheres e a pesquisa digital reforçam, na análise da diretora-executiva do FBSP, Samira Bueno, não apenas uma franca ascensão da violência de gênero, mas também a dificuldade que as vítimas têm tido para acessar os equipamentos públicos presencialmente. “É fundamental que sejamos capazes de inovar tanto nos mecanismos de denúncia, que podem ser feitos por terceiros, quanto no atendimento e orientação a estas mulheres”, cobrou a executiva por meio da nota.

O Ministério da Mulher que falta

Com a tendência de queda nas denúncias, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves, chegou a divulgar no início de abril que o canais Ligue 180 e Disque 100 seriam reforçados por meio do aplicativo Direitos Humanos BR, para que as mulheres possam fazer o registro da denúncia de forma online, sem recorrer à ligação.

Mais de 20 dias após o lançamento, o serviço digital está disponível apenas para celulares do sistema operacional Android, sem previsão para os usuários do sistema iOS.

À reportagem, a pasta alega que a empresa “Apple tem feito algumas exigências técnicas, que estão sendo sanadas”. Em nota, o órgão disse “já ter “desenvolvido um plano de contingência para conter os problemas decorrentes do período da pandemia”, articulado com “diversas instituições e publicação de conteúdos informativos”, como uma cartilha com orientações para as mulheres.

Tainã Góis ressalta, no entanto, que falta por parte do Ministério da Mulher um protocolo unificado de atendimento que não seja penal. A exemplo de como estabelece a Lei Maria da Penha, que fala na integração de serviços para tirar a vítima de sua condição de vulnerabilidade.

“A mulher que vai para a delegacia deveria ser encaminhada para o hospital, assistência social, os equipamentos públicos, uma ponte integral”, destaca.

É tipo Covid-19, pega todo mundo, mas que tá pior, pega pior

O boletim de ocorrência online também é outra ferramenta que vem sendo usada para combater a subnotificação e garantir maior descrição para as vítimas denunciarem seus agressores. Até o momento, contudo, apenas São PauloRio de JaneiroEspírito Santo e Ceará disponibilizam esse tipo de registro.

A medida esbarra em outros problemas estruturais, como ressalta a professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira.

Especialista em violência de gênero e serviços de saúde da mulher e também pesquisadora, Ana Flávia explica que a violência contra a mulher, embora seja indiferente às classes sociais, é “tipo Covid-19, pega todo mundo, mas quem tá pior, pega pior”, compara. Nesse caso, a falta de acesso à informação e aos equipamentos públicos e de atendimento psicoterápico é sobretudo desigual entre as mulheres pobres e negras – que já são as principais vítimas do feminicídio.

“Temos que lembrar que são muitas mulheres, com diferentes eixos de opressão. Então se você está em um lugar pequeno, em que várias pessoas dividem os mesmos cômodos e que falta dinheiro para comprar comida, a tensão do confinamento é ainda maior”, observa. “Isso nos faz pensar com quem a gente mora, com quem a gente quer morar e o quanto a nossa casa é um lugar de proteção. E, para muitas mulheres, infelizmente não é. É um lugar de submissão de poder e de controle”.

Fernando Frazão/EBCÀ RBA, especialistas e pesquisadores analisam que, por trás da violência contra a mulher e de seu agravamento na pandemia, há o machismo histórico, a desigualdade de gênero e a falta de políticas públicas

A teia da rede de proteção que desfia

A partir desse diagnóstico de subnotificação e das experiências internacionais, o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública listou algumas recomendações para a atuação do poder público, como a importância de diversificar os canais de denúncias por telefone ou online, mas também em serviços essenciais como farmácias e supermercados.

O Fórum também destaca a criação de campanhas de serviços de proteção à mulher, desmistificando a crença de que violência doméstica diz respeito à esfera privada, chamando a atenção de vizinhos para que possam ajudar; como a necessidade de uma resposta rápida por parte do Estado para o acolhimento das vítimas. Usada como exemplo, a Itália já anunciou a requisição de quartos de hotéis para servirem como abrigos para as mulheres cumprirem a quarentena longe dos agressores.

A Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público (CDDF/CNMP), emitiu nota técnica pedindo a mobilização dos profissionais do órgão, que continuam atuando nos estados, assim como as defensorias.

Mas, para além dessas medidas, as especialistas se preocupam com os problemas anteriores que se ampliam nesse contexto de pandemia.

Ana Flávia lembra, por exemplo, da dificuldade que os profissionais da saúde, e de outras área da rede de atendimento, têm de se colocar no lugar da mulher para entender a violência da qual elas foram vítimas.

Uma das coordenadoras da pesquisa Atenção primária à saúde e o cuidado integral em violência doméstica de gênero: estudo sobre a rota crítica das mulheres e crianças e redes intersetoriais, a professora é também a responsável por importar um jogo nicaraguense para tentar aproximar esses profissionais dos diferentes contextos sociais das vítimas, o “No lugar dela”.

“Temos que nos colocar no lugar da mulher. Precisamos ampliar a escuta sem julgamento dessas mulheres, não forças-las a tomar uma atitude, mas ao mesmo tempo dar alternativas concretas e viáveis. Os médicos precisam estar atentos para a identificação desses casos e pelo correto acolhimento e referenciamento, que é o que eles têm de fazer. Eles não vão se deslocar de sintomáticos respiratórios para violência, mas ouvir e encaminhar é básico, porque senão as consequências são muito graves”, afirma a pesquisadora da USP.

E o agressor?

Na outra ponta da linha de frente, os profissionais da segurança pública também precisam estar mais sensíveis à questão da violência de gênero. Tainã relata que muitas mulheres que moram em comunidades deixam de denunciar os agressores, ou de ir até a delegacia, por medo da polícia. “É a polícia que espanca o filho dela na esquina que ela você vai chamar”, ressalta.

“Eu já ouvi um caso, uma mulher me contou que, o mesmo responsável da operação da guarda civil do bairro dela, tinha espancado o seu filho duas semanas antes, e foi o cara que apareceu lá quando ela chamou por conta de violência doméstica”, descreve a conselheira e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, acrescentando que nem mesmo esse tipo delito escapa da visão punitivista da sociedade, criando um ônus ainda maior para as mulheres.

“A gente trata quem comete um crime como a violência doméstica, ou todo outro tipo de crime, como um pária social, um marginal. Então as soluções da nossa sociedade para alguém que comete uma conduta errada é a prisão, a punição, o ostracismo. Como é que você lida com uma questão dessa na pandemia? Você vai afastar esse homem de casa e colocar aonde? você vai deixar ele exposto também? Essa é a punição para o cara que cometeu violência doméstica? Como é que você vai fazer com os equipamentos para as mulheres?”, questiona a advogada da DeFEMde.

“Toda a cadeia de serviço social fica prejudicada e a resposta é sempre a mesma: fortalecer esses equipamentos, a assistência social e os serviços públicos, e não as medidas penais”, finaliza.

Serviço

As Delegacias da Mulher continuam funcionando normalmente no período de quarentena. Os casos de violência e assédio podem também ser denunciados ao 190, que faz atendimentos diários e ininterruptos.

Em todo o país as emergências devem ser registradas no Disque 180 ou o Disque 100, que oferecem orientações. Os abrigos emergenciais das cidades também funcionam normalmente. É preciso procurar pelo serviço por um órgão da prefeitura mais próximo para que o encaminhamento seja feito. As Casas da Mulher Brasileira, que concentram serviços judiciais, psicológicos e assistenciais, também seguem operando normalmente na quarentena.

Rede Brasil Atual

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