Estilhaços do regime militar: o mal feito à educação

Violência física e simbólica e comprometimento da qualidade da escola pública estão entre os males feitos pela ditadura à educação. É o que comprova a reportagem de capa da Revista Conteúdo deste mês, disponível abaixo. A íntegra da publicação está disponível no link http://contee.org.br/contee/conteudo/26/.

Uma bomba. Talvez essa seja a metáfora mais apropriada para ilustrar o impacto do golpe militar sobre todos os aspectos da sociedade brasileira e, em particular, sobre a educação. As consequências físicas da explosão de violência e repressão são óbvias, haja vista o número de estudantes, professores e trabalhadores em estabelecimentos de ensino perseguidos, torturados, mortos. No entanto, há fragmentos de detonação menos visíveis a olho nu – o olho nu da suposta “normalidade” dos acontecimentos sociais – e que deixaram feridas graves. E abertas. É como as tais bombas de efeito moral tão presentes nos noticiários hoje em dia, usadas para reprimir manifestações como aquelas que ocorreram a partir de junho do ano passado ou aquelas sempre empreendidas pelos movimentos sociais ao longo de sua história.

Algumas medidas ditatoriais tiveram, de fato, o efeito – e o objetivo – desses “armamentos de distração”, ou seja, o de amedrontar e incapacitar. Sua fumaça obscureceu a visão crítica; seu clarão desorientou a capacidade do movimento pedagógico de interferir politicamente para a construção da soberania e do desenvolvimento social; seu gás lacrimogênio sufocou a escola pública; seus estilhaços despedaçaram a educação.

As consequências foram tão sérias que, nestes 50 anos do golpe de 1964, uma audiência pública na Câmara dos Deputados foi realizada no último dia 24 de abril para debater o desmantelamento do ensino público provocado pela ditadura. Os especialistas convidados para a discussão – o sociólogo Emir Sader, o professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Sadi dal Rosso, o presidente do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti, o representante do PCdoB, Volnei Garrafa, e o representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcos Guerra – foram unânimes em apontar os impactos nefastos do controle da administração universitária, do exílio de professores, do comprometimento da qualidade da educação pública (aliado à ruptura de um modelo econômico de distribuição de renda atrelada ao arrocho salarial), da perda de qualidade na formação dos educadores, da mudança curricular (com a retirada de disciplinas cruciais para o desenvolvimento da reflexão crítica).

Em entrevista à CONTEÚDO e à TV Contee, o professor e ex-ministro da Educação Murílio Hingel, que comandou a pasta de 1º de outubro de 1992 a 1º de janeiro de 1995 e que, à época da derrubada do presidente João Goulart, era diretor da Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile) de Juiz de Fora, em Minas Gerais, considera a pressão sobre o ensino de nível superior, particularmente na área das humanidades, o pior dos resultados do movimento de 1964. “Porque, face a todo esse quadro, veio a suspensão dos diretórios acadêmicos, o fechamento dos diretórios centrais dos estudantes e realmente, encerrando esse ciclo, o fechamento da União Nacional dos Estudantes e até a demolição do prédio que servia de sede à UNE”, recorda. “O que isso significou? Significou que, dentro do ambiente universitário, DA, DCE, UNE, que eram espaços que propiciavam a discussão, o debate de políticas, de partidos e de formação de lideranças, ficaram fechados. Assim, o Brasil viveu um tempo bastante grande sem a possibilidade de formar lideranças que, quando da volta da democracia, poderiam ter exercido um papel importante, mas que não existiam, porque não tinham sido formadas. Esse prejuízo sentimos até os dias de hoje.”

Patricia TropiaSe a devastação física – com as perseguições, cassações, expulsões, prisões, torturas, mortes, desaparecimentos e exílios – sacrificou de uma maneira extremamente violenta todos os que tinham ideias e ideais progressistas e/ou de esquerda no campo educacional, assim como em todos os demais setores da vida pública –, há uma devastação simbólica para a qual ainda não houve anistia nem reparação. A privatização do ensino, que culmina agora com o processo de financeirização, desnacionalização e oligopolização do ensino superior combatido pela Contee, teve seu início na educação básica, uma vez que o regime ditatorial fez minguar as verbas para a escola pública, auxiliando no desenvolvimento das instituições privadas.

“Os militares cedo perceberam a importância e o poder da educação tanto em termos econômicos ­– tal como apregoava a teoria do capital humano formulada por Gary Becker e Theodore Schultz – quanto político-ideológicos, pois se incumbiram de alterar todos os níveis de ensino, instrumentalizando-os em favor de uma concepção de educação tecnicista, utilitarista e instrumental; portanto, supostamente neutra. Para tanto foram reformuladas a estrutura e a organização do ensino, alteradas as funções da educação – o que provocou mudanças profundas na escolarização brasileira”, ressalta a pedagoga Patrícia Trópia, professora na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Segundo ela, “a reforma de 1º e 2º graus, instituída pela Lei 5.692/71, criou o ensino técnico profissionalizante, rebaixou a formação de professores de educação infantil e das séries iniciais do 1o grau, viabilizou um modelo de expansão da rede pública graças à contenção salarial, deixando, por sua vez, a educação livre não apenas ao ensino privado religioso, mas às ‘forças do mercado’”. Paralelamente a esse processo, houve a reforma universitária, que introduziu no país o programa conhecido como MEC-Usaid.

Murilio Hingel“Não podemos nos esquecer de que a reforma do ensino superior aconteceu justamente em 1969, quando os governos militares se tornaram mais fechados, com o Ato Institucional Nº 5”, destaca Murílio Hingel. “Essa reforma resultou de um acordo entre o Ministério da Educação e a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos da América. A esse acordo, que se chama Acordo MEC-Usaid, se deve essa reforma, cujo princípio era o de quebrar uma estrutura universitária e substituí-la por uma outra estrutura que significasse a fragmentação, a pulverização – que é justamente a universidade que temos hoje.”

A reforma em questão consistiu na desintegração das faculdades e departamentalização dos cursos. Desse modo, um pequeno grupo de professores passava a ter o controle sobre a totalidade do departamento e sobre as decisões. “Quando se substituiu a ideia da faculdade pela ideia do departamento como unidade básica da organização da universidade, os cursos universitários se diluíram, porque eram constituídos por vários departamentos oferecendo disciplinas e, portanto, o estudante universitário não sabia exatamente se ele pertencia a esta unidade, a este instituto ou àquela faculdade”, explica o ex-ministro.

O objetivo claro era desmantelar a união e o consequente debate ideológico. “Essa foi uma herança e foi intencional, até porque essa reforma foi ditada por um acordo entre o MEC e a Usaid e nós sabemos da presença e da participação do governo norte-americano, através do famoso embaixador Lincoln Gordon, que chegou até a prever a possibilidade de deslocar navios da frota americana para a costa brasileira se houvesse alguma movimentação contra o movimento militar”, enfatiza Hingel. “Isso foi muito negativo e está vigente até os dias de hoje.”

Patrícia complementa que “os acordos MEC-Usaid visavam estabelecer convênios de assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira, desde a educação primária ao ensino superior”. “Mas tal ‘ajuda técnica’ aos governos militares tinha, na realidade, um objetivo mais sistêmico e político: o de fornecer as diretrizes políticas e técnicas para uma reorientação do sistema educacional brasileiro à luz das necessidades do desenvolvimento capitalista internacional.” Foi nessa época que houve uma ampliação acentuada do ensino superior privado, sustentado a partir do mesmo apoio ideológico dado à ditadura pela classe média. “Em síntese, a educação na ditadura levou ao aumento da dependência entre educação e mercado de trabalho, à racionalização do sistema educacional, ao avanço do ensino pago, à profissionalização do ensino médio e ao controle político-ideológico por meio tanto do rebaixamento da formação de professores quanto das reformas curriculares”, resume a pedagoga.

As ditaduras atuais

Uma das sequelas manifestas e persistentes desse atentado cometido pelos militares e pela parcela conservadora da sociedade que contribuiu para elevá-los ao poder e lá sustentá-los por 21 anos é aquela que a Contee combate através da campanha “Educação não é mercadoria”. O processo de financeirização da educação superior está estampado em todos os noticiários econômicos, com as negociações financeiras milionárias, a abertura de capital na bolsa de valores, as aquisições e incorporações que ferem até mesmo o próprio modelo econômico – ameaçando o princípio da concorrência –, rasgam a Constituição da República – tratando a educação como mero serviço, e não como direito de cada cidadão – e pasteurizam o ensino sem qualquer zelo por trabalhadores, estudantes ou pela qualidade.

No entanto, essa ditadura econômica também afeta de forma sintomática e nociva – ainda que disfarçada sob a máscara de investimentos públicos – a educação básica e a infantil. “Com todo rigor, o ensino no Brasil sempre foi aberto à iniciativa privada. A educação brasileira, antes de ter um caráter de fato público – financiado pelo Estado, gratuito e aberto a todos –, era uma exclusividade da Igreja e das elites. A novidade da ditadura militar foi ter permitido a expansão do mercado educacional, para além do ensino ofertado em instituições religiosas, e isso se deu, em grande medida, como resposta às pressões do capital comercial, ou seja, da fração da burguesia interessada em acumular capital com a educação”, afirma Patrícia Trópia.

Theresa-AdriaoAtualmente, segundo a professora da Unicamp Theresa Adrião, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), essa privatização, concretizada à custa de investimentos públicos, contribui para o enfraquecimento de um modelo pedagógico autônomo. “A entrada do capital no ensino privado é fortalecida com o subsídio estatal”, atesta. “São os fundos públicos – e, no Brasil, isso cada vez é mais evidente – que financiam as grandes corporações. E um exemplo mais específico é o que se chama de sistema privado de ensino. Grandes editoras que têm braços e atuam em diversas frentes do mercado acabam investindo muito da sua energia na criação de mercados no setor público, por meio da venda dos pacotes que, na verdade, são políticas educacionais adotadas, em sua maior parte, pelos municípios, em substituição a uma possibilidade de elaboração de um projeto autônomo educacional.”

Theresa frisa que não se trata apenas da adoção de apostilados, mas de todo um sistema. “Com o sistema vem a ‘formação’ (entre aspas, porque não é formação), o processo de avaliação, o material do professor, o material do aluno, a lição de casa… Há um esvaziamento da atividade docente e uma apropriação do núcleo duro da escola, que é o currículo. E isso com recurso público.”

Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (Greppe) da Unicamp, que se debruça sobre os aspectos relacionados à interface entre o financiamento e a gestão da educação básica e as relações entre o público e o privado no campo educacional, a professora questiona os caminhos tortuosos pelos quais boa parte dessas aquisições se realiza. “Quem decide que empresa entra no município, quem controla a qualidade desse material? A política pública – falo dos municípios, porque são os que mais adotam, mas há estados também que o fazem – está subordinada a essas grandes corporações. Por isso a gente tem essa questão da gestão e do financiamento como um eixo de análise e um eixo de intervenção política. É olhando a destinação dos gastos públicos – e no nosso caso, volto a insistir, com a possibilidade de aumento de recursos que o Plano Nacional de Educação (PNE) assinala – que se mostra como essa privatização está acontecendo.”

Há, ainda, outro questionamento que merece ser feito, segundo Theresa: dado que, cada vez mais, esses recursos estão sendo canalizados para grupos que investem na “qualidade” da educação, por que eles dizem que a educação pública está desqualificada, se são eles os responsáveis pela “qualidade”? Isso envolve uma questão ideológica, intensificada pela mídia, de uma suposta supremacia do privado sobre o público. “Se pensarmos no desenho da privatização no Brasil, é a atuação dessas grandes corporações na educação básica que acabou desenhando o modelo pelo qual o capital acaba disputando os recursos públicos.”

Existe um agravante que corrobora essas estilhas. Recentemente, por exemplo, no dia 24 de março, o MEC, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Instituto Ayrton Senna assinaram protocolo de intenções para incentivar pesquisas sobre o desenvolvimento e o papel de habilidades socioemocionais no ensino. O documento prevê a criação de um programa de formação de pesquisadores e professores no campo das competências não cognitivas. “É um outro processo da privatização, no qual ela vem articulada com os mecanismos de monitoramento, de controle do trabalho, de controle dos processos pedagógicos e, agora, pode ser que venha a incidir sobre aquilo que se denomina habilidades e competências não cognitivas: sociabilidade, liderança, criatividade… Não tem fim. É um controle privado de toda a educação, do próprio direito à educação.”

Leia aqui o artigo completo da professora Patrícia Trópia sobre o legado da ditadura na educação

Da Revista Conteúdo – Número 26. Leia a Revista Conteúdo na íntegra

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