Estratégia Nacional de Escolas Conectadas e ONGs empresariais que disputam recursos públicos
A MegaEdu, coalização de 14 Ongs empresariais, está empenhada em ditar a política educacional digital do país para obter financiamento
Por Gabriel Grabowski
Na terceira década do século 21, já em tempos de Inteligência Artificial (IA) e controverso ChatGPT, após uma pandemia que evidenciou e aprofundou as desigualdades tecnológicas de quase metade dos estudantes das escolas públicas brasileiras, entra na pauta e na disputa a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, iniciativa do Ministério da Educação (MEC), prevendo investimentos de 8,8 bilhões de reais, para universalizar a conectividade das escolas públicas de educação básica até 2026.
Ancorada em alguns eixos, como: garantir energia elétrica com fontes renováveis; expandir a qualidade do acesso à internet com rede de fibra ótica e outras soluções; disponibilizar Wi-Fi para garantir conexão a turmas inteiras em conjunto com equipes pedagógicas; e comprar equipamentos e dispositivos eletrônicos portáteis de acesso à internet, a estratégia prevê beneficiar 138,3 mil instituições em todo o país.
Cabe relembrar que cerca de 3,4 mil escolas no País não tinham acesso à rede de energia elétrica até o fim de 2022, segundo dados da Anatel. Outras 9,5 mil não dispunham de acesso à internet e 46,1 mil não possuíam laboratórios de informática. Estudos e diagnósticos do Censo da educação Básica (Inep/MEC) e da Associação dos Tribunais de Conta (TC) evidenciam e comprovam a falta de equipamentos, rede de internet, laboratórios, professores formados e monitores na maioria das escolas públicas dos diversos estados e municípios brasileiros.
A “Estratégia Nacional de Escolas Conectadas” tem reservados em recursos para investimentos entre R$ 7 a 8 bilhões. Os identificáveis serão recursos provenientes de R$ 3,2 bilhões do Leilão do 5G sob gestão da Entidade Administradora da Conectividade de Escolas (Eace) e, do financiamento de novas redes de telecomunicações através do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), que disponibiliza R$ 2,1 bilhões geridos pelo BNDES. Outros R$ 1,7 bilhões de recursos advirão da Lei 14.172/2021; mais R$ 350 milhões da PIEC (Política de Inovação Educação Conectada) e R$ 250 milhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
O Fundo de Universalização dos Serviços de telecomunicações (Fust) -, foi instituído pela Lei nº 9.998/2000 cujas finalidades preveem estimular a expansão, o uso e a melhora da qualidade das redes e dos serviços de telecomunicações, reduzir as desigualdades regionais e estimular o uso e desenvolvimento de novas tecnologias de conectividade para a promoção do desenvolvimento econômico e social. Portanto, este fundo existe há quase 24 anos, é resultado de contribuições da sociedade quando do pagamento de serviços de telecomunicações e energia. Este fundo prevê que um percentual seria aplicado na melhoria de conectividade das redes de serviços da saúde e educação (unidades básicas, escolas, centros comunitários e outros), porém, tais recursos têm despertado a cobiça e a disputa por grupos econômicos e fundações empresariais.
Por exemplo, no ato de lançamento desta estratégia dia 26 de setembro, marcou presença a MegaEdu, uma coalização que envolve 14 ONGS interessadas em ditar a política educacional digital do Brasil, que contam com o apoio institucional e financeiro de empresários como Abílio Diniz, Moreira Salles, Pedro Passos, Luiz Trajano, além de fundos americanos. A MegaEdu é comandada por Cristieni Silva de Castilhos, com assento no Conselho Gestor do FUST, órgão que investirá R$ 2,1 bulhões neste programa. Esta vaga no Conselho foi conquista com apoio da “Coalizão de Tecnologia na Educação”, entidade formada pelo Conselho de Inovação pra Educação Brasileira (CIEB), da Fundação Lemann e o Instituto natura. Os 14 ONGs ratificaram o nome dela para o referido Conselho.
As entidades que apoiam a MegaEdu são: Instituto Península (Carrefour, de Abílio Diniz); Instituo Natura (empresário Pedro Passos); Fundação Lemann (Jorge Pedro Lemannn); Ensina Brasil (maior empresa bio-farmacêutica); Nova Escola (criada em 2015 com apoio Lemann); Instituto Gesto (organização que tem como parceiros Fundação Lemann e Instituto Natura); Reuna (parceria com Fundação Leman e Itaú Social e apoio do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e “Movimento pela Base”, que se empenharam na construção desta BNCC vigente e a reforma no Novo Ensino Médio; Vector Brasil; Instituto Singularidade e Fundação Itaú Social (ligado a família Moreira Salles).
Uma estratégia por trás da estratégia
O movimento empresarial atua de forma organizada e institucionalizada há bastante tempo. Desde 2013, por meio do “Movimento pela BNCC”, grupos vem influenciando as políticas educacionais no Brasil, justificando suas intervenções como forma de tirar a educação deste quadro de caos que compromete a competitividade do país no cenário internacional e pautam uma educação baseada em resultados. O grande empresariado brasileiro traz para o ambiente escolar as ideias de modificações que são implementadas nos âmbitos da produção, reorganizando o processo educativo “de maneira a torná-lo objetivo e operacional” (Dermeval Saviani), planejando a educação para ser eficiente, neutra e produtiva, caracterizando deste modo, uma pedagogia das competência e tecnicista que coloca tanto o professor quanto o alunado em segundo plano.
A pandemia do covid-19 deu um grande impulso a expansão sem precedentes de uma “indústria global da educação” fortemente assente no digital, com ofertas privadas, mas interessada sobretudo na produção de conteúdos, materiais e instrumentos de gestão para a educação pública. Vários entes da federação (estados e cidades grandes) estão formando parcerias com as ONGs citadas e ignoram as potenciais contribuições e parcerias com as Universidades que se dedicam a formação de profissionais e pesquisas de alta qualidade.
No livro Escolas e Professores: proteger, transformar, valorizar, António Nóvoa, com a colaboração de Yara Alvim, apontam como o grande “mercado global da educação” vai continuar a crescer nos próximos anos. O que fazer? Pela nossa parte, afirmam os pesquisadores, o mais importante é reforçar a esfera pública digital, desenvolver respostas públicas na organização e “curadoria” do digital, criar alternativas sólidas ao “modelo de negócios” que domina a internet, promover formas de acesso aberto e de uso colaborativo. É com base nestes princípios que podemos imaginar uma apropriação do digital nos espaços educativos e a sua utilização pelos professores, sem cairmos no disparate de reproduzir “à distância” as aulas habituais ou na ilusão de que as tecnologias são neutras e nos trazem soluções “prontas-a-usar”.
Outra obra, de Christian Laval, “A Escola não é uma empresa. O neoliberalismo em ataque ao ensino público”, demonstra a forte intervenção das organizações internacionais (OMC, OCDE, Banco Mundial, FMI) na conformação da ideia das contratações de pessoal na educação. Esse fenômeno, que aqui no Brasil se reflete no número excessivo de contratações temporárias em nossas redes de ensino, burla a determinação constitucional que indica a exclusividade do concurso público para ingresso no serviço público.
Segundo Laval, esses organismos internacionais também atuam no processo de comparações, especialmente através do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), realizado com aplicação de provas de Matemática, Ciência e a disciplina da Língua local. Essa avaliação internacional promove comparações de países com situações econômicas e sociais diversas. Para impulsionar estas medidas em cada país, estes organismos internacionais em muitas ocasiões fabricam um discurso global que tira a força ou autonomia das políticas educacionais específicas de cada país.
Trabalhar com educação e produção de conhecimento, com as atuais gerações da era digital, implicam acolher as novas tecnologias e inovações no campo educativo. Não importa quantos dispositivos existem ou que serão lançados, o importante é termos as diversas ferramentais como aliadas e educar as pessoas para seu uso.
Pierre Lévy, em As Tecnologias da Inteligência, propõe o fim da pretensa oposição entre o homem e a técnica. Critica o mito da “técnica neutra”, nem boa, nem má. Demonstra que ela está sempre associada a um contexto mais amplo e precisa estar vinculado a um projeto social coletivo. As sociedades ditas democráticas, se merecem seu nome, devem ter o interesse e o compromisso em reconhecer nos processos sociotécnicos fatos políticos relevantes.
A partir desta perspectiva, é preciso que as diversas tecnologias e plataformas, estejam a serviço de um projeto educacional e pedagógico qualificado, ampliando as condições de aprendizagem de todos, especialmente estudantes e professores, sob gestão e coordenação da esfera pública, em detrimento dos interesses econômicos e ideológicos das ONGs empresariais.
A previsão de Giles Deleuze de 1990 faz muito sentido no contexto atual brasileiro: “Pode-se prever que a educação será, cada vez menos, um meio fechado, que se distingue do meio profissional como olho meio fechado, mas que todos os dois desaparecerão, em proveito de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo exercido sobre o operário-aluno ou sobre os dirigentes da universidade”.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe