Histórias de retaliações marcam os três meses do Massacre do Centro Cívico

Curitiba – Willian Pilger trabalha na secretaria do colégio estadual Irmã Maria Margarida, estabelecida em Salto do Lontra, cidade do sudoeste paranaense, situada a quase 500 quilômetros de Curitiba. Há exatos três meses, junto com outros professores e funcionários de escolas da região, viajou até a capital do Paraná para participar dos protestos de servidores públicos contra as mudanças impostas pelo governador tucano Beto Richa à previdência do funcionalismo estadual. Assim como milhares de outros servidores, Pilger estava no Centro Cívico de Curitiba na tarde de 29 de abril, quando a polícia protagonizou o mais violento episódio de repressão contra funcionários públicos já ocorrido no estado para garantir que a proposta de Richa fosse aprovada na Assembleia Legislativa. Mais de 200 pessoas ficaram feridas no massacre.

As semanas se passaram, a greve terminou e as aulas foram retomadas. De volta a Salto do Lontra, Willian e outras pessoas que participaram dos protestos, especialmente quem esteve em Curitiba naquele 29 de abril, tornaram-se alvo de atenção de seus conterrâneos, muitos deles curiosos em conhecer a versão das pessoas que viveram o episódio que tragicamente entrou para a história. O que Willian não imaginava ao voltar para casa é que a violência e a truculência que marcaram o 29 de abril o seguiriam até Salto do Lontra, uma pacata cidade de pouco mais de 13 mil habitantes, segundo o Censo de 2010. Ele agora responde na Justiça sob a acusação de “denegrir a imagem” da Polícia Militar.

“Salto do Lontra é uma cidade pequena. Temos contato com os alunos não só no ambiente escolar, mas também no convívio social. Todo mundo conhece todo mundo. Nesse contexto, alguns alunos me interpelaram querendo saber o que havia acontecido”, contou Willian em entrevista por telefone à RBA.

AGÊNCIA PARANÁ

Professores tratados como bandidos

Em seus relatos, feitos principalmente a alunos, Willian criticou a atuação a polícia. “Quando há uma situação realmente grave, pelo menos aqui na região, a polícia militar é mal-armada, malpreparada, maltreinada”, declarou ele. Uma situação bem diferente do que se viu na tarde de 29 de abril, quando 1.661 policiais usaram 2.323 balas de aço revestidas por borracha, 1.094 granadas de “efeito moral” e 300 bombas de gás lacrimogêneo de longo alcance contra os manifestantes no decorrer de pouco mais de uma hora e meia de ataque, segundo dados do Ministério Público.

Namorada de um policial militar, uma das alunas que ouviu o relato questionou Willian com mais veemência depois de entender que a crítica dele à brutalidade com que a polícia reprimiu os servidores seria uma crítica generalizada à corporação, e não apenas àqueles que participaram dos atos de violência. Willian procurou explicar que sua crítica naquele momento dizia respeito à forma como os policiais se comportaram em 29 de abril. Mas foi insuficiente.

“Ela conversou com o namorado e acabou distorcendo o que eu disse”, relatou Willian. “Segundo ela, eu disse entre outras coisas que polícia é pior que bandido”, prosseguiu ele. “E eu não falei nada disso. Apenas expressei uma opinião, e a minha opinião eu tenho o direito de expressar.”

Já no dia seguinte três policiais, entre eles o namorado da jovem aluna, fizeram uma visita ao colégio Irmã Maria Margarida. Numa conversa exaltada com a diretora da escola, os policiais deram a entender que Willian havia quebrado uma espécie de pacto não escrito. “Eles alegaram que fazem vista grossa quando os professores dirigem sem cinto de segurança ou cometiam outras infrações de trânsito, que deveríamos ser parceiros e questionaram os motivos de eu ter, na visão deles, ofendido a corporação e falaram que iam me processar”, relatou Willian.

A promessa de processar o funcionário da escola foi cumprida, mas não exatamente pelos PMs. Willian foi denunciado pela menor de idade de “denegrir a imagem” da PM e terá de comparecer perante um juiz dentro de algumas semanas para explicar as declarações a ele atribuídas. A aluna também acusa o funcionário de a ter constrangido.

O episódio, ocorrido no fim de junho, não parou por aí. Por intermédio de um conhecido em comum, os policiais teriam passado um recado: “Avisa o seu amigo aí (Willian) que uma hora dessas nós vamos fazer uma abordagem, dizer que ele resistiu e vamos dar um pau nele”.

Eis que, alguns dias depois de terem ido à escola interpelar a diretora, os policiais armaram uma tocaia para Willian. Era uma segunda-feira e ele estava deixando o trabalho, pouco depois das 23h. Os policiais o aguardavam com as luzes apagadas em uma rua lateral perto da saída do colégio Irmã Maria Margarida normalmente usada por Willian para voltar para sua casa. Quando Willian dobrou a esquina os policiais acenderam as luzes e o abordaram.

“Quando eles me abordaram eu imediatamente lembrei do recado”, relatou Willian à RBA. Ele preferiu preservar a identidade do amigo que passou o recado.

A abordagem inicial foi ostensiva, mas rapidamente mudou de tom e a ameaça não foi integralmente cumprida. “Eu disse que ia atender uma chamada no celular e liguei imediatamente pra minha mãe”, contou. “Naquele momento, sabendo que tinha alguém ouvindo, eles mudaram o tom. De agressiva, a abordagem tornou-se cordial”, prosseguiu Willian.

Como o carro de Willian tem a suspensão rebaixada de maneira irregular, ele foi multado e seu veículo acabou guinchado e recolhido para um pátio. Na visão do funcionário da escola, apesar da irregularidade em seu veículo, nada disso teria acontecido em outras circunstâncias.

Ao longo dos dias seguintes, viaturas de ronda escolar passaram a circular perto do colégio. Segundo Willian, antes do episódio em questão, raramente a ronda policial passava perto da escola. Por precaução, Willian, que até recentemente trabalhava no período noturno, trocou inclusive de turno e passou a trabalhar de manhã.

A situação acalmou-se somente depois de alguns dias, quando Willian entrou em contato com a APP Sindicato, que representa os professores e funcionários de escola do Paraná. Segundo ele, o assédio policial parou depois que o sindicato passou a intermediar a questão.

“A Polícia Militar é preparada apenas para lidar com o cidadão que desrespeita a lei. Com o cidadão comum os PMs têm muita dificuldade no que diz respeito à abordagem e ao diálogo. Isso é uma característica do próprio treinamento deles. É uma força coercitiva”, acredita.

RBA teve extrema dificuldade em obter informações mais detalhadas sobre o processo contra o Willian. A reportagem entrou em contato por telefone com o batalhão da PM e com a delegacia de polícia de Salto do Lontra em busca de mais detalhes e outras versões do caso. Enquanto a PM limitou-se a confirmar a existência de uma queixa da adolescente contra Willian, na Polícia Civil a pessoa que atendeu à ligação informou que o delegado local encontra-se em férias e ninguém mais no distrito estaria autorizado a discutir detalhes do caso. No Fórum da cidade, uma funcionária disse não estar autorizada a fornecer informações por telefone. Pela internet, enquanto isso, não é possível pesquisar os processos ajuizados na vara criminal da comarca de Salto do Lontra. Um pedido de acesso digital foi enviado por e-mail, mas não foi atendido até o fechamento desta reportagem.

A direção da APP Sindicato, por sua vez, informa ter pedido ao comando da PM paranaense uma investigação sobre a atuação dos policiais envolvidos na abordagem a Willian. A RBA tentou contato com o setor de comunicação social da PM tanto pelo telefone quanto pelo e-mail informados na página oficial da corporação na internet, mas também não obteve sucesso.

A situação ocorrida em Salto do Lontra vem à tona em meio a denúncias por parte da oposição e de professores de que o governo paranaense estaria perseguindo e praticando patrulhamento ideológico contra os educadores depois das duas paralisações realizadas no primeiro semestre.

As greves acabaram, mas as retaliações do governo persistiram. O tucano Beto Richa chegou a expor em junho supostos “super-salários” de professores, mas foi obrigado a recuar após uma decisão judicial contra sua atitude. Ao mesmo tempo, a Secretaria de Educação do Paraná passou a orientar pais e mães a denunciarem o que qualificava como “doutrinação política dentro da sala de aula”. Nos dias seguintes circularam notícias de pais que levaram adiante queixas contra professores, principalmente de história, por terem levantado em sala de aula temas como o Massacre do Centro Cívico.

Na avaliação do professor Hermes Leão, presidente da APP Sindicato, o governo Richa “jogou servidor contra servidor” ao usar a PM como instrumento de repressão aos diversos setores do funcionalismo que realizaram greves contra a perda de direitos ao longo do primeiro semestre deste ano.

Beto Richa, por sua vez, tem aparecido raramente em público. E quando há notícias de eventos públicos com a presença do governador, professores mobilizam-se para protestar contra suas arbitrariedades. O último caso de que se tem conhecimento ocorreu na semana passada, em Ponta Grossa. Richa passou pela cidade para inaugurar uma obra ainda inacabada de coleta de esgoto e um trecho recém-duplicado de uma rodovia pedagiada. Foi recebido por um protesto de professores, estudantes e outros integrantes da comunidade local. Segundo relatos, apesar do aparato de segurança montado para isolar o governador, o motorista que o conduzia fugiu dos manifestantes em alta velocidade. E pela contramão.

Da Rede Brasil Atual

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