Nem Direito, nem Psicologia: quando o nada deixa de conduzir a lugar nenhum
O artigo do desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Jorge Luiz Souto Maior, a seguir reproduzido, polemiza com o texto “Confronto entre TST e STF: uma análise psicológica do Direito”, de Ives Gandra Martins Filho, ministro decano do Tribunal Superior do Trabalho, publicado na Revista Consultor Jurídico, em 21 de outubro.
Por Jorge Luiz Souto Maior*
Durante muito tempo, os argumentos despidos de lógica inteligível ou ainda aqueles baseados em “achismos” e preconceitos — já que construídos em premissas que não encontram qualquer semelhança com a realidade — eram simplesmente ignorados, sob a consideração de que, não conduzindo a lugar nenhum, estariam fadados ao esquecimento. Ainda hoje, a grande maioria de falas absurdas não gera qualquer repercussão. Porém, tal desprezo cobra um paradoxalmente caro preço: por serem bobagens, são ignoradas; por serem ignoradas, as falácias e as mentiras não são contestadas e ficam por isso mesmo, eternizando-se por meio do velho artifício segundo o qual “a mentira dita mil vezes se torna uma verdade”. Assim, muitos desses desvios da razão começaram a integrar o patrimônio “cultural” da humanidade
Acreditando-se no império da razão, da ciência e do conhecimento, principalmente no campo acadêmico, não se teve a devida apreensão do desenvolvimento desse processo de desconstrução da racionalidade.
Não se atentou, inclusive, para a forma como essas falas foram se integrando e até se organizando, impulsionadas por motivações de caráter financeiro ou de ordem pessoal, na busca de lucratividade ou de algum tipo de projeção.
Deixaram, pois, de ser produto de algum ser alucinado ou meras distrações, para serem carregadas de intencionalidade e se difundir de modo mais articulado e com fórmulas de expressão cada vez mais sofisticadas, a tal ponto de o absurdo se apresentar como se fosse ponderação racional e lógica.
E na medida em que ganham espaço, passam a ser agressivas a tudo que possa revelar sua fragilidade científica. O discurso de ódio é uma forma de desviar o olhar da origem do pensamento descomprometido com os fatos, com a racionalidade e com a ciência.
Do ponto de vista da disputa política, o desprezo à razão, ainda que baseado em argumentos que se pretendam apresentar como lógicos e racionais, busca destruir as certezas que são fruto das experiências históricas, para abafar sonhos e projeções. Anula a história e conta a sua própria estória.
O efeito grave da difusão, sem contestação, das intervenções descompromissadas com o conhecimento é o de que a percepção da verdade fica cada vez mais difícil.
Então, urge que sejam rebatidas.
A dificuldade é que como essas ideias são desapegadas dos fatos e dos dados históricos, constituindo, portanto, crenças, quem nelas acredita não se importa muito com evidências.
Embora pareça simples, porque baseado em inúmeros estudos e esteja sedimentado no conhecimento humano produzido há séculos, não é nada fácil convencer um terraplanista de que a Terra é redonda.
Assim, qualquer tipo de distorção proposital da realidade, mesmo em forma de escracho, pode ser dita até com ares de autoridade intelectual.
É apenas desse modo que se devem visualizar tanto a recente publicação de um texto que diz promover uma análise psicológica do Direito, mas que não fala nem do Direito, nem da Psicologia, partindo do nada para chegar a lugar nenhum, quanto à árdua tarefa de o rebater.
Além de muito difícil, a tarefa pode ter efeito muito reduzido, porque quem se expressou a favor do texto, mesmo sendo impossível extrair de seu conteúdo algum tipo de compreensão, não terá, por certo, ouvidos para uma contraposição. E quem já não deu muita bola para aquilo não carece de maiores convicções para tanto.
De todo modo, a omissão neste momento histórico é o pior a fazer.
Como dito, o texto não tem começo, meio e fim. Não traz problematização sobre um fato. Não possui premissa. Não delineia objetivos. Do ponto de vista acadêmico, revela-se um texto inepto.
De todo modo, enfrentando o desafio de escrever a respeito, identificamos como ponto de partida do texto a narrativa de que o TST promoveu 38 mudanças em sua jurisprudência em favor dos trabalhadores nos anos de 2003 e 2012, e que isso desagradou a empresários. Esse descontentamento dos empresários teria feito com que o legislador promovesse, em 2017, a reforma trabalhista, na qual 34 daqueles 38 entendimentos jurisprudenciais foram revertidos (neste ponto, o texto ao menos tem o mérito de reconhecer o que os reformistas sempre negaram: que a “reforma” trabalhista reduziu direitos dos trabalhadores e trabalhadoras).
A conclusão do texto é a de que caso essa jurisprudência “generosa” com os trabalhadores, baseada em ativismo judicial, mantenha-se, corre-se o risco da extinção da Justiça do Trabalho, cabendo, pois, aos órgãos de cúpula do Judiciário trabalhista “corrigir” o rumo da prosa, naquilo que tem havido de excessos, e cumprir da melhor forma possível a nobilíssima missão de pacificar os conflitos sociais, na esteira do dístico de nossa bandeira do TST, calcada no profeta Isaías: “Opus justitiae pax” (a obra da Justiça é a paz).
Esse desfile narrativo, no entanto, se passa sem qualquer explicação. Toma-se a jurisprudência pacífica do TST produzida até 2002 como o padrão do que seria o “correto”, sem avaliar, por exemplo, se essa jurisprudência estava em conformidade com a Constituição Federal de 1988. Aliás, a Constituição Federal só aparece para ser invocada como fundamento da “flexibilização” de direitos, logo ela que, bem ao contrário, alçou os direitos trabalhistas ao patamar de direitos fundamentais, acobertados, inclusive, por cláusula pétrea.
Faz-se uma crítica à forma de concepção das novas súmulas, sem mencionar como as anteriores foram constituídas (vide, por exemplo, a Súmula 331) e pressupõe-se que as súmulas anteriores eram perfeitas e as que se produziram depois, que beneficiaram os trabalhadores, foram erradas porque deixaram os empregadores desnorteados e os trabalhadores em situação de falsas expectativas, isto porque, segundo o texto, todas essas decisões com interpretações favoráveis aos trabalhadores “serão reformadas futuramente”.
Não há nada no texto, no entanto, que fale sobre os efeitos produzidos na realidade social — na economia e no mundo do trabalho — nos dois períodos mencionados. Se houvesse ao menos um pouco da preocupação de falar sobre a realidade, teria de se reconhecer: primeiro, que a Constituição Federal de 1988 ampliou sobremaneira o rol de direitos dos trabalhadores e alterou a posição jurídica desses direitos, sobrepondo-os aos interesses econômicos individuais; segundo, que a jurisprudência da década de 90 foi extremamente reducionista quanto ao alcance desses direitos, bastando lembrar, por exemplo, do que se fez com o inciso I do artigo 7º e o artigo 9º; terceiro, que a reação da jurisprudência em 2003 se deu em razão do reconhecimento do estágio elevado de sofrimento a que foi conduzida a classe trabalhadora em razão dos entendimentos dominantes da década de 90; quarto, que a economia brasileira, nos períodos em que a jurisprudência do TST e do STF serviu como o aparato de proteção dos interesses do capital, afundou completamente; e quinto, que a reconstrução bastante tímida do projeto constitucional em direção ao Estado social baseado na primazia da valorização do trabalho humano fez com que, de 2003 a 2013, o Brasil experimentasse uma recomposição de sua economia e mínima inserção social.
Aliás, se os fatos fossem considerados, teria que reconhecer que de 2014 em diante e, notadamente, depois da “reforma” trabalhista, o sofrimento no trabalho aumentou e a saúde econômica do país só piorou.
O texto refere ao sofrimento das empresas, mas não relata, em momento algum, quais foram os lucros obtidos por essas empresas em todo esse percurso histórico. Esse espaço é curto para isso, daí porque remetemos o leitor aos balanços publicados pelas grandes empresas e bancos nos anos referidos, que demonstram como, no geral, as políticas de restrição de direitos aumentaram a concentração da renda produzida.
Para falar de Direito do Trabalho, o dado histórico relevante é o sofrimento da classe trabalhadora. Como o texto despreza o Direito, embora diga que faz uma análise psicológica do Direito, nada se fala sobre os trabalhadores e trabalhadoras. Ocorre que o conteúdo do Direito do Trabalho são as normas de limitação da exploração econômica sobre a força de trabalho. O artigo 7º da Constituição Federal é expresso no sentido de que o que se elenca são “os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais” e não os direitos dos empregadores. O direito dos empregadores, dentro da lógica capitalista abarcada pela Constituição, é o de explorar a força de trabalho alheia no contexto de seu empreendimento, desde que respeitados os “direitos dos trabalhadores”. O Direito do Trabalho é o limite dos interesses do capital. E não há nenhum sentido lógico e histórico em conceber um Direito do Trabalho que seja o direito do empregador de obter fórmulas ilimitadas de extração de valor do trabalho humano.
O texto, por isso, despreza a própria história do Brasil, marcada pelo sofrimento da classe que vive do trabalho, pela opressão, pelos baixos salários, pelos elevados índices de acidentes do trabalho etc.
Não cabe em nenhum relato histórico sério e comprometido com a realidade falar, no Brasil, em empregadores como vítimas de direitos excessivos dos trabalhadores, ainda mais provenientes de um ativismo da magistratura trabalhista.
De fato, nunca houve uma jurisprudência excessivamente protetiva dos direitos dos trabalhadores no Brasil. Muito pelo contrário.
Vejamos os exemplos trazidos no próprio referido texto.
Segundo se sustentou, o novo teor da Súmula 277 se deu em contrariedade à lei (Lei 10.192/01), sendo exemplo de ativismo judicial em favor dos trabalhadores. Só se esqueceu de dizer que a negativa da ultratividade representa afronta ao §2º do artigo 114 da CF, cuja redação, com a alteração promovida em 2004, no bojo da reforma do Judiciário, deixa clara a intenção da consagração desse direito, senão vejamos:
No texto originário:
“Artigo 114, §2º — Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”.
Redação atual:
“Artigo 114, § 2º, CF — Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.
Ainda que assim não tenha reconhecido o ministro Gilmar Mendes, na ADPF 323, em decisão monocrática proferida em 14/10/2016, o que se tem, no caso, é mais um exemplo de que como a jurisprudência não garantiu aos trabalhadores um direito constitucionalmente consagrado do que de um ativismo judicial ampliativo de Direito.
São atacadas as decisões judiciais que acolhem responsabilidade do Estado na terceirização, negam validade à terceirização e garantem igualdade de salários entre trabalhadores efetivos e terceirizados.
Primeiro, não há nenhuma relação de causa e efeito com relação a essas decisões que merecesse algum comentário.
Segundo, novamente o que se tem são exemplos que provam exatamente o contrário.
De fato, como se toma a Constituição Federal como referência jurídica e não o que se resulta do desejo de alguém isoladamente, o reconhecimento necessário nesta temática é que a jurisprudência trabalhista, desde 1993, reduziu consideravelmente a rede de proteção jurídica trabalhista.
Com efeito, não há nenhuma norma constitucional que autorize a terceirização no serviço público, conforme já manifestava o ministro Ayres Britto. Então, reconhecer a responsabilidade subsidiária do Estado não é ampliação de direitos e, sim, minimização dos efeitos da indevida redução de direitos.
Terceiro, a terceirização, anteriormente vedada pela Súmula 256, foi reconhecida como válida, em 1993, pela Súmula 331, significando, pois, uma redução do patamar de proteção jurídica dos trabalhadores. Além disso, a Constituição Federal, que inibe a prevalência dos interesses econômicos sobre a condição humana, não concebe a validação de qualquer forma jurídica em que o trabalhador seja comercializado. O caput do artigo 7º da CF deixa claro que os direitos dos trabalhadores servem à melhoria de sua condição social e não à sua transformação em objeto de comércio. A marchandage é coibida desde o Tratado de Versalhes.
E, quarto, a igualdade salarial para o trabalho de igual valor é um preceito fundamental do Direito do Trabalho, consagrado, inclusive, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 23), que a tática empresarial da terceirização não tem como superar.
Por fim, o texto traz uma crítica à resistência em se assumir a prevalência do negociado sobre o legislado, preconizando a não intervenção do Estado nas relações coletivas de trabalho.
O argumento supostamente jurídico para essa defesa são os incisos VI, XIII, XIV e XXVI do artigo 7º da CF, que fazem referência ao reconhecimento dos acordos e convenções coletivas (XXVI) e autorizam a regulação negocial de direitos por essa via.
Não se tem em tais dispositivos, no entanto, uma autorização para que o poder econômico imponha redução de direitos aos trabalhadores, até porque esses incisos estão inseridos no rol do artigo 7º, que trata dos direitos dos trabalhadores e não dos direitos dos empregadores e que estabelece tais direitos como instrumentos de melhoria da condição social dos trabalhadores, não podendo, por conseguinte, ser vistos como mecanismos a serviço de iniciativas empresariais voltadas ao aprimoramento dos negócios e à obtenção de vantagens na concorrência econômica.
Além disso, a eficácia desses dispositivos está atrelada à consagração de outros três direitos: a garantia contra a dispensa arbitrária (inciso I do artigo 7º), a vedação da interferência do poder público na organização sindical (inciso I do artigo 8º) e o amplo direito de greve (artigo 9º). De forma sintomática, o texto que propõe ampliação da negociação coletiva, e não intervenção do Estado nas relações de trabalho, nada fala da negação aos trabalhadores desses direitos, que são essenciais à livre negociação.
Novamente, portanto, o que se demonstra é um rebaixamento jurisprudencial dos direitos constitucionais. Aliás, esses e tantos outros direitos não foram assegurados até hoje aos trabalhadores, destacando-se o preceito que garante a progressividade da condição social aos trabalhadores e que coíbe, por consequência, o retrocesso social.
Esse rebaixamento, ademais, que se viu mitigado no período de 2003 a 2013, foi retomado pelo STF a partir de 2014 e se aprofundou pelas mãos do legislador em 2017, chegando ao fundo do poço em 2020, com a produção dos efeitos danosos que estão à nossa volta: precarização, informalidade, desemprego e desalento.
Muito mais poderia ser dito para demonstrar como o que se tem em mãos é um artigo que, escondendo o fato de que o legislador da “reforma” confunde-se, em certa medida, com o próprio autor do texto, não reflete minimamente a experiência jurídica nacional se considerados, como deve ser, os parâmetros jurídicos traçados pela Constituição Federal, a razão de ser do Direito do Trabalho e a história do mundo do trabalho no Brasil.
Mas o espaço concedido para essa abordagem (cerca de 15 mil caracteres) não é suficiente para ir adiante com mais fatos e argumentos, que, no fundo, apenas se repetiriam na explicitação de como todos os exemplos citados no texto em questão constituem prova do contrário do que tenta demonstrar.
Uma utilidade, de todo modo, não se lhe pode negar: o de revelar como ainda será longo e difícil o caminho a ser percorrido para que consigamos superar a fase colonial e as bases escravistas, atreladas, no Brasil, a crenças religiosas e a dogmas neoliberais.
O maior problema é saber se teremos tempo para atingir esse objetivo tão necessário e urgente, isto porque, diante da proliferação cada vez mais intensa do desprezo ao conhecimento baseado em fatos, evidências, raciocínios lógicos, pesquisas e estudos comprometidos com a constituição e a elevação da condição humana, o que se vislumbra mais próximo no horizonte é o colapso da humanidade.
*Jorge Luiz Souto Maior é desembargador do TRT-15 e livre-docente em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP).
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico, 27 de outubro de 2020