O ataque à Previdência no Brasil já começou

“Na medida em que se propõe retirar da Constituição a cláusula da reposição obrigatória da inflação nas aposentadorias, os idosos vão passar fome? Cria-se uma situação social muito grave”, diz a professora Neusa Pivatto, ex-coordenadora de Direitos da Pessoa Idosa do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, em entrevista a Carta Maior sobre a proposta de reforma da Previdência

Na mesma semana em que o governo cubano reafirmou o Estado como a principal garantia dos direitos previdenciários dos idosos, os aposentados e pensionistas, e apesar da situação difícil que aquele país enfrenta este ano, aqui no Brasil a perversidade do governo atual continua não conhecendo limites no seu comportamento sádico e anuncia uma medida que vem atingir em cheio milhões dos cidadãos e cidadãs mais velhos com o anúncio do atendimento exclusivo digital ou telefônico do INSS, a partir do próximo dia primeiro de julho.

A assistência aos aposentados não será mais realizada nas unidades físicas das agências (que talvez acabem sendo fechadas!) do Instituto Nacional do Seguro Social, o INSS, espalhadas pelo país.

A internet e o telefone serão as únicas formas com que aposentados e pensionistas poderão contar para solicitar um dos 96 serviços do Instituto.

A medida faz parte, segundo o comunicado, “do projeto de transformação digital do INSS”, e chega no mesmo momento em que esquenta a campanha mentirosa, ao custo de 37 milhões de reais, pró reforma da Previdência.

Mas como denuncia a cientista social Neusa Pivatto*, ex-coordenadora de Direitos da Pessoa Idosa do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos durante o governo do Partido dos Trabalhadores e uma das mais combativas e competentes especialistas em políticas públicas para os mais velhos, “pelo menos cinco milhões de pessoas, no Brasil, com 60 anos ou mais e que não são alfabetizadas serão atingidas de forma cruel ”com esse tipo de atendimento.

“Trata-se de mais uma manobra para dificultar a busca dos direitos previdenciários dos idosos e aposentados e distanciar ainda mais aqueles que necessitam de maior suporte.”

“Como se vê”, Pivatto diz, ”já foi iniciado o ataque à Previdência”.

A conversa de Carta Maior com a professora Neuza Pivatto, no Rio de Janeiro, versou em especial sobre a situação precária – e até impossível para uma sobrevivência no mínimo digna – na qual será jogado o segmento dos aposentados e pensionistas atuais, em especial mulheres, negros, indivíduos de baixa renda e as populações rurais, caso sejam aprovados os descalabros do projeto da reforma da Previdência prestes a ser votado em Brasília.

A nova ordem previdenciária que se está tentando implantar vem num projeto com dados reais escamoteados, até agora prometidos ao público, mas não publicados, com mentiras e com enganosas informações distribuídas à população na milionária e despudorada campanha de convencimento aos ingênuos, aos desinformados e aos manipulados pela velha mídia corporativa cujos interesses caminham par a par com a conveniência dos bancos – os principais beneficiários da reforma.

A professora Pivatto insiste no alerta que vem lançando, desde o começo da desleal campanha: ela é machista, perversa e racista. Seu peso incide, prioritàriamente, sobre os ombros dos mais frágeis, dos mais pobres, das mulheres e das populações rurais que até recentemente não gozavam de qualquer proteção social do Estado.

Nossa entrevista tem início com a análise da situação previdenciária em países de extremos econômicos contrários: Cuba e Japão.

Carta Maior  Na contramão do que se pretende fazer no Brasil, Cuba está alocando mais de seis bilhões de pesos para a PrevidênciaSocial, apesar do bloqueio econômico reavivado por Trump. Esta é a informação recente de Haydeé Franco Leal, diretora geral adjunta do Instituto Nacional de Previdência Social do país onde  segurança e proteção são prioridades para a população de mais idade porque ela estáaumentando.

Neusa Pivatto – Como a jornalista Yenia Silva Correa, do Granma, relembra, na sua matéria no Granma sobre a nova medida, uma das características do sistema cubano é garantir proteção ás pessoas desde o nascimento até a velhice, com cobertura universal. O regime geral protege o trabalhador em caso de doença, acidente, invalidez, velhice, maternidade e protege a família do trabalhador em caso de morte. O regime especial foi projetado para proteger quem exerce atividades que por sua natureza exigem que os benefícios da Previdência Social sejam adaptados às suas condições. A assistência social protege todas as pessoas sem recursos ou aqueles que não podem trabalhar e não têm familiares em condições de dar ajuda; bem como as famílias que apresentam insuficiência de renda e necessitam da ajuda do Estado para satisfazer as necessidades mais urgentes.

CM  E o que acontece no Japão de hoje, país ultra capitalista, onde a longevidade e a vida dos idosos são celebradas como exemplares?

NP  O que se tem dos idosos no Japão é uma visão no mínimo equivocada. É uma grande mentira a de que eles são prioridade. A sociedade de lá trabalha incessantemente. As pessoas não sabem o que fazer durante as férias e foram criadas, no pós guerra, num sistema de muito trabalho e pouco lazer. Uma sociedade com tantas exigências no campo material certamente não tem prioridade para a população que não é considerada produtiva.

CM – Mas a propaganda não diz isto.

NP – Ela mostra, por exemplo, uma médica que trabalha até os cem anos e a história faz isto girar o mundo inteiro: “… ela ainda faz cirurgia aos cem anos de idade”. A propaganda faz passar a idéia de que é positivo trabalhar até morrer.

CM  E por que no Japão de hoje  tantos idosos que cometem pequenos delitos?

NP – São homens, mais homens que mulheres, que cometem pequenos delitos para serem encarcerados e assim garantirem comida e moradia. Depois que são liberados do cumprimento da pena eles retornam aos mercados para roubar pequenos gêneros alimentícios ou bicicletas estacionadas na rua e assim voltam para a prisão onde têm a garantia de saúde, moradia e também de interação.

CM  Por que interação?

NP – Porque na prisão eles encontram e convivem com muitos outros velhos. Isto significa que não podemos ter a velhice japonesa como modelo nem a política de experiência social do Chile onde as pessoas de mais idade se matam porque o governo de lá optou, durante a ditadura, pelo sistema de capitalização, o que não leva ninguém a ter uma aposentadoria decente a não ser que você conte com recursos e uma alta renda mensal. Mas se você depende de um pequeno salário para guardá-lo para o seu futuro, essa quantia é resultado de uma contribuição que só vai depender de você. Onde estão a contribuição do empresário, do empregador, e a contribuição do governo, do estado? Atualmente, nós temos a contribuição do governo – do sistema -, a contribuição empresarial e a do trabalhador/a. O sistema oferece essa garantia mínima de subsistência. Mas na proposta da reforma esse sistema não estará garantido.

CM  Em quais outros aspectos a reforma atingirá também os aposentados?

NP – Também na retirada da reposição de valores relativos à inflação de períodos passados, como se faz atualmente, que são incluídos nos benefícios. Na medida em que se propõe retirar da Constituição essa reposição obrigatória, os idosos vão passar fome? Cria-se uma situação social muito grave.

CM  E qual é a perversidade desse projeto de reforma relativo à população rural?

NP – A Constituição de 88 reconheceu o esquecimento dos governos, até então, dessa população e fez a correção. Houve então, a partir daí, uma diminuição expressiva do êxodo rural a partir da concessão da aposentadoria dos que trabalham no campo. A trabalhadora rural se aposenta hoje com 55 anos e o homem com 60. A proposta apresentada – eu insisto desde o começo que a reforma é machista, racista e perversa – atinge a mulher que passaria de 55 para 60. Para o homem será mantida a idade de 60 anos, portanto, novamente há uma perda para a mulherQuem perde? No meio rural (são 10 milhões de pessoas). O homem sai para a roça em determinado horário, e a mulher também. Os homens chegam, almoçam, tiram uma soneca porque o início da tarde é muito quente. Enquanto isto, as mulheres lavam a louça, limpam a casa e lavam a roupa. Em seguida, voltam à roça. Ao final tira-se o leite, e em geral é a mulher quem faz isto – e os homens tratam os animais. A mulher prepara o jantar e segue na jornada nos afazeres domésticos, resultando, em média, 22 horas semanais de trabalho a mais que o homem. 

CM  E quais foram os cálculos realizados de tempo trabalhado?

NP  Sabe-se que a mulher urbana trabalha mais do que o homem, mas os autores da reforma nem se deram ao trabalho de fazer o cálculo do tempo trabalhado pelas mulheres rurais que é muito maior do que o tempo trabalhado dos homens ou seja três horas a mais, diárias.

CM  Os argumentos são os de que as mulheres querem igualdade com os homens. Então…

NP – Diz-se: não querem ser iguais aos homens? Trabalhem igual. Só que a mulher ganha menos e não tem a mesma carga horária de trabalho dos homens; está sempre sobrecarregada. Então, é uma reforma perversa com as mulheres.

CM  E por que racista?

NP – Racista porque atinge em cheio os trabalhadores e as trabalhadoras que ganham até quatro salários mínimos. É a massa de 60/70% de trabalhadores e trabalhadoras onde a maioria é negra e a sobrecarga é feminina. Em média, 21 horas semanais a mais que o homem.

CM  E por que machista?

NP  Porque outro segmento dos mais atingidos é o das professoras cujos salários são baixos. Mais de 80% de mulheres trabalham no ensino médio. Hoje, com 25 anos de sala de aula você se aposenta, com 54/ 58 anos de idade tendo contribuído durante cerca de 30 anos. A reforma propõe um acréscimo de mais cinco anos de trabalho para as mulheres. Ora, o homem se aposenta em torno dos 60 anos com 35 anos de contribuição. Nessa proposta de reforma se acrescenta mais sete anos para a mulher – sua idade para aposentadoria será de 62 anos. O homem pula de 60 para 65. É uma reforma de quem odeia as mulheres, como é o caso do Bolsonaro.

CM  O Haddad diz que ele odeia as mulheres…

NP  Odeia principalmente aquelas que estudam muito. E hoje, nos cursos de pós graduação, na maioria dos mestrados e doutorados, a maioria são as mulheres…

CM  E a situação da massa de cidadãos que recebem o BPC, o Benefício de Prestação Continuada, caso a reforma venha a ser aprovada?

NP  São cerca de cinco milhões de pessoas idosas que recebem o BPC. Pessoas que a família de baixa renda não pode sustentar. A partir dos 65 anos elas ganham um salário mínimo. O que se propõe, escandalosamente, é que a partir dos 60 anos recebam uma renda fixa de 400 reais. É uma afronta, um ataque a uma parcela da população que, em decorrência da ausência do estado, não tiveram acesso a condições mínimas de educação, saúde e moradia.

CM  Os grandes salários talvez pudessem ser taxados…

NP  Os grandes salários estão nas forças armadas, na justiça,

mas… não entram na reforma como se sabe. Deveriam ser

sobretaxados. Assim, eles poderiam ajudar a garantir o bem

social desses da população idosa. Eu, particularmente sou

favorável à taxação de grandes fortunas. Os trabalhadores e

trabalhadoras já são sobretaxados o bastante.

CM  Outro aspecto do prejuízo que a reforma pode ocasionar diz respeito à saúde da vida econômica dos pequenos municípios brasileiros.

NP  Mil e oitocentas cidades têm a economia de pé por causa dos aposentados e dos que recebem benefícios porque eles consomem na própria localidade e fazem girar a economia do lugar. Eles salvam a vida econômica dessas cidadezinhas. Pequenos agricultores e pequenos municípios muitas vezes estão sustentando as vítimas da crise. E vamos lembrar que temos hoje treze milhões de desempregados que são ajudados por pais e avós pagando suas despesas de alimentação e em geral as contas dos filhos e dos netos.

CM  Então os que  estão aposentados serão atingidos também.

NP – Dizer que a reforma não vai atingir quem já está aposentado é uma grande mentira. E outro sério impacto da reforma na vida dos aposentados é que à medida que os indivíduos vão optando pelo sistema de capitalização o sistema geral vai se enfraquecendo e atinge também os filhos hoje mais velhos e que vão se aposentar em breve; e seus pais estarão muito idosos para ajudar e não é atribuição deles sustentar os mais jovens. Compete ao governo criar políticas que garantam dignidade a todos.

CM  O Brasil tem quantos idosos e quantos aposentados atualmente?

NP  Quarenta e dois milhões de aposentados e 30,2 milhões de pessoas idosas. Temos mais ou menos 10 milhões de pessoas aposentadas antes de chegar aos 60. Então, proceder a uma reforma tendo em vista a questão da idade me parece que até há um consenso. Mas não no formato da atual proposta na qual é acrescentado mais dez anos de trabalho para os trabalhadores/trabalhadoras. As pessoas vão morrer trabalhando. E não temos um sistema de pleno emprego. Vamos ficar vários períodos sem trabalho e esses períodos vão afetar a sua idade e sua contribuição.

CM  Pode-se dizer que o sistema vigente protege o rapaz ou a jovem que precisa começar a trabalhar antes dos 18 anos?

NP  Sim, ele protege quem precisa começar a trabalhar mais cedo vindo de família pobre. Os pais não podem sustentar por mais tempo esses filhos quando eles têm 15/16 anos e apenas estudam. Os filhos adolescentes têm que trabalhar cedo. A reforma é perversa porque penaliza este menino, esta menina. 

CM – Há alguns estudos apontando para a possibilidade de mudar a idade mínima.

NP – A maioria dos países tem aposentadorias entre 60/65 anos, mas a França, a Itália e outros países estão reduzindo a idade mínima. Portugal atualmente é uma referência na assistência aos idosos. Nós, não. Nós estamos caminhando na direção contrária. Estamos contrários ao bem estar social e favoráveis à penalização extrema dos que ganham menos, contrários aos benefícios continuados e às mulheres de modo muito particular.

CM – Anuncia-se que a reforma vem para salvar a vida econômica do país…

NP – É outra grande mentira. Se for preciso enxugar, é mexer nos grandes salários que estão nas forças armadas, na justiça e  não entram nareforma. Eles deveriam ser sobretaxados para garantir o bem social. Hoje, nós temos 2/3% de pessoas – contando com o BPC e com aposentadorias que reduzem o êxodo rural – abaixo da linha da pobreza. Se essa reforma for efetivada no formato em que ela está sendo apresentada, nós teremos 50% por cento de pessoas com graves problemas de subsistência.

CM – E com a crescente precarização do trabalho o quadro vai piorar.

NP – A reforma trabalhista já vem mostrando os prejuízos da precarização do trabalho, da informalidade e da supressão das garantias que existiam. A informalidade do trabalho é crescente e, portanto, os salários são menores porque na informalidade se ganha pouco. E quando você ganha pouco você não paga previdência porque a sua prioridade é morar, comer e comprar (de alguma maneira) remédios.

CM – Voltando ao sistema cubano: lá, como são oferecidos os diversos tipos de benefícios e por que a ampliação das leis de assistência aos idosos?

NP – O jornal Granma informa: esse investimento foi crescendo, nos últimos anos, como reflexo da dinâmica demográfica apresentada pela população cubana caracterizada por uma contração da fecundidade e um aumento da expectativa de vida ao nascer. Ele garante proteção desde o nascimento até a velhice, com cobertura universal. Os benefícios são monetários, pensões por idade, por invalidez (total ou parcial) e para a maternidade (econômica e social). Assistência médica e odontológica e, em espécie, medicamentos além de alimentos gratuitos e próteses e medicamentos para mulheres grávidas.

A pergunta que está suspensa no ar nestes sombrios dias de tentativas de sérias mudanças na legislação previdenciária brasileira, sem transparência, sem debates com a população e na contra corrente dos países avançados preocupados, esses sim, com o bem estar de seus idosos e idosas visto a longevidade humana cada vez mais prolongada: uma pessoa de 65 anos… se ela vai morrer trabalhando, para quem então ela contribui? Para os bancos?

*Presidiu a Comissão Interministerial do Compromisso Nacional para o Envelhecimento Ativo e foi membro do Grupo de Especialistas da OEA responsável pela elaboração da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas. A professora Pivatto organizou e coordenou a publicação de quatro livros: Dez anos do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso – repertórios e implicações de um processo democrático. Estatuto do idoso – Dignidade humana como foco. Manual de enfrentamento à violência contra a Pessoa Idosa e o Mapa das políticas, programas e projetos do governo federal para a população idosa.

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