O ataque de Gilmar Mendes às entidades sindicais

E quem disse que o Brasil funciona apenas após o Carnaval? Quando convém – e ultimamente convém muito o desmonte dos direitos sociais – as instituições públicas funcionam. No último dia 24, na qual as escolas de Samba do grupo especial de São Paulo já desfilavam no Anhembi, o ministro Gilmar Mendes decidiu reconhecer a repercussão geral da contribuição assistencial sindical.

Como definido pelo próprio STF, a repercussão geral é o mecanismo que permite ao Tribunal selecionar os recursos extraordinários que serão analisados, de acordo com os critérios de relevância jurídicapolíticasocial ou econômica. Esse “filtro recursal resulta numa diminuição do número de processos encaminhados ao STF”, pois uma vez que o STF constata a existência de uma das relevâncias acima, “a corte analisa o mérito da questão e a decisão proveniente dessa análise será aplicada posteriormente pelas instâncias inferiores, em casos idênticos”.

Em síntese, em mais um gesto feito às portas de um longo feriado nacional, Gilmar decidiu reconhecer a inconstitucionalidade da contribuição assistencial imposta aos não filiados do sindicato por acordo, convenção coletiva ou sentença, ao ementar a seguinte repercussão geral: “935 – Inconstitucionalidade da contribuição assistencial imposta aos empregados não filiados ao sindicato, por acordo, convenção coletiva de trabalho ou sentença”.

A ementa do Plenário Virtual é a seguinte: “Agravo contra decisão pela qual inadmitido recurso extraordinário em que se discute, com base nos arts. 5º, incs. II, XXXVI e LV, 7º, inc. XXVI, e 93, inc. IX, da Constituição da República a inconstitucionalidade da instituição, por acordo, convenção coletiva ou sentença normativa, de contribuições que se imponham compulsoriamente a empregados da categoria não sindicalizados”.

O julgado, embora esteja sob as vestes da livre associação, é objetivamente um ataque às entidades sindicais que, até então, poderiam valer-se das contribuições assistenciais de todos os empregados e preservar a ao mesmo tempo preservar a livre associação e sindicalização com a cláusula de exclusão. Ou seja, podia-se fixar como regra a contribuição e, caso o empregado não desejasse contribuir com a estrutura sindical, poderia solicitar o cancelamento/devolução dos valores.

Ao fixar que as contribuições não podem ser fixadas por instrumentos coletivos – cujas validades e integridades também possuem assento constitucional, art. 7º, XXVI, da Constituição – pretende-se, no imo do enfraquecimento dos direitos sociais e das instituições que o estruturam, enfraquecer a arrecadação sindical e dificultar a mobilização e conscientização dos trabalhadores. Em síntese, trata-se de um ataque à própria atividade sindical.

Afinal, ao contrário do que apregoam determinados setores econômicos da sociedade, a estrutura sindical é fundamental para a mobilização política, jurídica, econômica e social dos trabalhadores. É a força do conjunto de trabalhadores e de sindicatos que permite o enfrentamento de empresas e associações empresariais. Prescindir de um sindicalismo sustentável é o mesmo que prescindir da organização dos trabalhadores e coloca-los à mercê de quaisquer vontades do poder econômico. Prescindir de um sindicalismo com recursos mínimos para efetivar suas atividades sindicais é o mesmo que prescindir da autônoma organização dos trabalhadores, deixando-os à mercê de quaisquer vontades do poder econômico.

Em um cenário de gravíssima crise institucional e agravamento da crise econômica, a estrutura sindical é imprescindível para catalisar os anseios e os movimentos sociais, direcionar e promover inúmeras agendas para o debate político, social, jurídico e econômico. E, numa sociedade de massa, com categorias de trabalhadores cada dia mais fragmentadas por instrumentos como a terceirização, trabalho parcial e novas formas de trabalho, advindas do uso de aplicativos, é indispensável que o justo e adequado financiamento dos sindicatos, federações, confederações e centrais.

Afora os óbvios benefícios para todos os trabalhadores da categoria (v.g., as convenções e acordos negociados pelo Sindicato aplicam-se a todos os empregados, independentemente da filiação sindical, assim como os benefícios decorrentes da infraestrutura sindical), é inegável que muitas conquistas ultrapassam os limites conceituais da categoria e são espraiados no Direito Social, passando a integrar um patamar civilizatório mínimo.

A origem do Direito do Trabalho e do Direito Previdenciário é prova inequívoca deste fato, pois direitos originalmente demandados por um grupo de trabalhadores, converteram-se em direitos universais (limite de jornada de trabalho, salário mínimo, aposentadoria, seguro contra acidentes de trabalho, proteção à maternidade, dentre tantos).

Daí o grave desacerto do STF em determinar mudanças em todos os níveis jurisdicionais e administrativos (eficácia erga omnes da decisão, ou seja, aplicável em face de todos os demais poderes e instâncias) sem ouvir previamente os atores sociais e aprofundar o debate jurídico, econômico, social ou econômico.

Enfim, o Supremo reconhece o relevante impacto em todos esses níveis, mas recusa-se a ouvir quem os representa e sente-se à vontade para, na pena de um ministro, resolver questões fundamentais para o aperfeiçoamento da democracia e dos direitos fundamentais sociais.

Mas, mais grave ainda, o faz premeditadamente quando as atenções da população estão voltadas para grandes eventos nacionais e sabidamente o espaço para a correta divulgação dos fatos, consequências e eventuais insurgências serão mitigados ou até mesmo ignorados.

Lamentavelmente, eis mais um passo rumo à crepúsculo dos direitos sociais e de sua estrutura de proteção e mais um passo rumo à apoteose do Pacto Antirrepublicano firmado entre os poderes; como diria um certo líder do governo no Congresso Nacional um grande acordo, “com o Supremo, com tudo”.

Angelo Antonio Cabral, advogado, sócio de Crivelli Advogados, Mestre em Direito (USP); pós-graduado em Direitos Fundamentais (IGC-COIMBRA). Autos de Teoria da Constituição e Direito Ambiental do Trabalho na Sociedade do Risco, ambos pela Juruá.

Da Carta Capital

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