Quanto mais cedo, melhor? O debate sobre a idade certa, os métodos e a avaliação na alfabetização de crianças

Quando assessorava a Secretaria de Educação da prefeitura de São Paulo, em 2019, a especialista Silvia Colello costumava escutar as angústias dos pais sobre o processo de alfabetização de seus filhos, matriculados na rede municipal. “Existem muitas dúvidas quanto a se há uma idade certa para se alfabetizar, assim como há no sistema privado”, diz Colello, que é professora da pós-graduação da Faculdade de Educação da USP.

“Também há muita dúvida quanto ao modo como se alfabetiza, porque, do século passado para cá, mudou o referencial técnico e tudo o que sabíamos sobre alfabetização. E os pais ficam angustiados ao ver os filhos serem alfabetizados de um jeito diferente do deles.”

A alfabetização é um dos temas que mais mobilizam educadores e geram discussões no âmbito de políticas públicas. Há, no Brasil, diferentes documentos oficiais sem consenso entre si quanto à série em que se espera que a criança esteja alfabetizada, além de divergências quanto a métodos e como medir os avanços das crianças nessa etapa.

A alfabetização é, também, um dos calcanhares de Aquiles da educação brasileira: os dados mais recentes, de 2016, mostravam que apenas 45,3% das crianças do terceiro ano do ensino fundamental tinham aprendizado adequado em leitura e 66,1% em escrita.

O problema, aparentemente, persiste até a vida adulta: os analfabetos funcionais (pessoas com limitação para ler, interpretar textos, identificar ironia e fazer operações matemáticas em situações da vida cotidiana) eram praticamente 30% da população entre 15 e 64 anos, segundo o Indicador de Analfabetismo Funcional de 2018.

Esses debates ganharam um novo capítulo com o lançamento, em fevereiro, pelo Ministério da Educação (MEC), do programa Tempo de Aprender, que prevê ações de incentivo à alfabetização para as redes estaduais e municipais que aderirem. O MEC afirma que 3.231 municípios e Estados aderiram ao programa.

Em meio à pandemia do novo coronavírus, segundo a assessoria de imprensa do MEC, a plataforma gratuita online de práticas de alfabetização do Tempo de Aprender voltada para pais e professores contabilizava 1 milhão de acessos até 30 de abril.

A proposta do programa em geral, diz o MEC, é fazer um trabalho de “aperfeiçoamento, o apoio e a valorização a professores e gestores escolares do último ano da pré-escola e do 1º e 2º ano do ensino fundamental (período em que a alfabetização se dá na escola)”, para melhorar os índices de alfabetização do país.

No entanto, o programa é questionado por parte dos especialistas em educação particularmente pela intenção de avaliar a fluência em leitura oral das crianças do 2º ano do ensino fundamental, por volta dos 7 ou 8 anos de idade.

Na prática, em vez de apenas aplicar uma prova escrita às crianças, a avaliação proposta pelo MEC contratará um aplicativo para gravar a leitura das crianças e medir sua fluência, informa a assessoria do ministério.

‘Ler é mais do que codificar o que está no papel’

“Acho muito ruim medir a fluência em leitura — o erro disso é achar que a leitura é apenas decodificar o que está escrito no papel”, opina Silvia Colello à BBC News Brasil.

“O que queremos é uma leitura reflexiva, de ler e se relacionar aos personagens, de consolidar o que está no texto. Ler um número X de palavras em um período não mede seu processamento mental do que foi lido. Às vezes as crianças leem e, quando você pergunta o que elas entenderam do texto, elas respondem: ‘não sei, eu só estava lendo’.”

O risco, opina ela, é que esse tipo de mensuração crie nas crianças resistência ou inibição à leitura, intenção oposta à desejada. “Porque tão importante quanto saber ler é gostar de ler e escrever.”

Segundo Francisca Pereira Maciel, diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da UFMG, a avaliação da fluência de leitura tem gerado preocupação entre parte dos gestores de educação nos municípios. “Acho um atraso se preocupar com a fluência”, opina. “Já temos experiências passadas disso, que foram traumáticas, da época em que um supervisor escolar fazia testes de leitura oral com os alunos. Isso mede simplesmente a oralização, mas mais importante do que quantas palavras você lê por minuto é compreender o texto e fazer uso dele.”

Já João Batista Araujo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, acha que, embora ainda não estejam claras quais serão as referências a serem usadas pelo MEC, “avaliar no fim do segundo ano dá uma ideia de se a escola está de fato alfabetizando”.

Ele acha infundadas as críticas relacionadas à fluência. “Ler não é só isso (fluência), mas isso tem de ser feito. A fluência de leitura é uma habilidade importante, e há muita literatura (acadêmica) provando isso, com evidências sólidas em muitos países desenvolvidos. A compreensão do texto é outra dimensão, e a fluência no texto é condição necessária para ela”, diz ele.

Segundo o MEC, o intuito do exame é “oferecer às redes estaduais, municipais e distrital um indicador objetivo de desempenho em alfabetização e de fácil verificação da aprendizagem da leitura”.

Em Sobral, cidade cearense que é considerada um dos principais casos de sucesso do Brasil em alfabetização e ensino fundamental, já é feito um exame oral da leitura das crianças do 1º e 2º anos do ensino fundamental, e as gravações são ouvidas por profissionais para avaliar a fluência dos alunos.

Mas, durante o teste, o examinador também faz perguntas às crianças a respeito do texto lido e seus personagens, para avaliar se elas de fato compreenderam o que leram, explica à BBC News Brasil Herbert Lima, secretário de Educação de Sobral. Além disso, a cidade realiza testes escritos semestrais, em português e matemática, para todos os alunos de todos os anos do ensino fundamental.

A questão da idade

Para além das discussões sobre avaliação, existe uma insegurança, entre parte dos pais e educadores, a respeito da expectativa de quando uma criança brasileira deve estar alfabetizada, explica Maria Alice Junqueira, coordenadora de projetos de alfabetização do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária). Isso porque diferentes documentos trazem diferentes diretrizes.

O Plano Nacional de Educação (PNE, aprovado em lei em 2014 após três anos de debate no Congresso) tem como meta “alfabetizar todas as crianças, no máximo até o 3º ano do fundamental, até 2024”.

E a Política Nacional de Alfabetização, criada pelo governo Jair Bolsonaro, menciona a meta do PNE, mas cita também a “priorização da alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental”.

Enquanto isso, o projeto Tempo de Aprender prevê a avaliação para medir os resultados da alfabetização na 2ª série.

“É possível alfabetizar no segundo ano? Sim, em tese. Boas escolas alfabetizam nessa idade. Mas de que realidade do Brasil estamos falando? Temos que lembrar que ainda não conseguimos alfabetizar direito nem no terceiro ano”, diz Junqueira, citando os dados de 2016, da Avaliação Nacional de Alfabetização.

“Temos 1 milhão de crianças que não alcançaram o nível suficiente em leitura. Ainda não conseguimos chegar nem na meta de alfabetizar no terceiro ano, que dirá no segundo ou no primeiro. Isso pode gerar uma frustração imensa.”

E quanto à angústia comum de pais, se existe uma idade certa para seu filho estar alfabetizado? É ruim se ele demorar mais ou menos para se alfabetizar?

Para Araujo e Oliveira, do Instituto Alfa e Beto, um ano é “mais do que suficiente para alfabetizar uma criança”. Ele opina que, ao final do primeiro ano do fundamental, se a criança não tiver uma noção “razoável de ortografia e fluência, os pais devem cobrar a escola”.

Já as demais estudiosas de alfabetização consultadas pela BBC News Brasil opinam que não existe uma idade única tida como ideal — e que a alfabetização deve ser vista como um processo de erros e acertos, com estratégias que podem começar na educação infantil e que devem se estender até os 8 anos de idade (3º ano do fundamental), em que as crianças podem ter ritmos distintos entre si.

Formalmente, o processo de alfabetização começa na 1ª série do fundamental, por volta dos 6 anos. Na educação infantil, para crianças de 2 a 5 anos, os especialistas recomendam expor as crianças a situações que envolvam o letramento: professores lendo diariamente livros diferentes com as crianças, mostrando às crianças com qual letra seus nomes começam (e perguntando, por exemplo, “e que outras palavras será que começam com essa mesma letra?”) ou aproveitando passeios de classe para observar placas ou avisos.

“São formas de dar uso social à leitura e à escrita”, afirma Maciel, do Ceale.

Além disso, “a leitura mediada (por um adulto), com livros de bons autores e bons ilustradores, também é uma imersão nas práticas letradas”, diz Junqueira, do Cenpec. “E é importante que esse adulto converse com a criança sobre o livro, estimulando-a a entender o enredo, a responder sobre os personagens e a conhecer diferentes tipos de texto (poesia, prosa etc).”

O perigo, porém, é forçar esse processo cedo demais na educação infantil, afirmam alguns. “Tem acontecido muito na educação pública de se antecipar a prática (de alfabetização), algo que massacra as crianças”, opina Maria Alice Junqueira.

De volta a Sobral (CE), a cidade inicia práticas de alfabetização no último ano da educação infantil, por meio de brincadeiras e atividades de identificação de letras e sílabas, explica o secretário Herbert Lima. “Até somos criticados por alguns teóricos que acreditam que estamos antecipando (o processo), mas na rede privada várias crianças já leem e escrevem algumas palavras por volta dos cinco anos, então achamos importante (desenvolver essas práticas).”

E os pais?

Em casa, principalmente no atual momento de confinamento, ler juntos à noite e conversar sobre o que foi lido é uma forma de criar crianças interessadas na leitura, dizem os especialistas.

Jogos e brinquedos com letras também servem para despertar a curiosidade das crianças mesmo antes de elas aprenderem a ler e a escrever, já que permitem que as crianças associem às letras a seus próprios nomes ou aos de pessoas próximas.

“As crianças hoje já nascem em meios letradas — a leitura de histórias, a ida ao mercado ou a receita de bolo já são vivências fundamentais”, diz Silvia Colello. “Meus filhos aprenderam o alfabeto com ímãs de geladeira com letras, com os quais eles brincavam enquanto eu estava na cozinha. Sem ser nada forçado. Em larga escala, se todas as crianças tiverem essas experiências de leitura e escrita, elas verão sentido (na alfabetização).”

E quanto a sinais de alerta a quais pais devem ficar atentos na alfabetização?

Para Maria Alice Junqueira, do Cenpec, é bom prestar atenção se as crianças até os 6 ou 7 anos não estão interessadas nas letras ou na forma como os nomes são escritos, por exemplo.

“Ela presta atenção nas histórias lidas, nas placas na rua? Se não estiver, é bom começar a trazer essas práticas e convidá-las a discutir livros ou a escrever juntos uma mensagem para um parente no WhatsApp, por exemplo.”

Dito isso, alguns especialistas afirmam que erros devem ser visto com naturalidade.

“Do século passado para cá, mudou muito o referencial teórico e o que sabemos sobre alfabetização”, afirma Silvia Colello. “As novas práticas estimulam o aluno a se arriscar na escrita, mesmo que cometa erros. E se o professor corrigir tudo, acaba inibindo o aluno nesse processo. (Mas) os pais ficam angustiados ao verem seus filhos serem alfabetizados de um jeito diferente do que eles mesmo foram.”

Sendo assim, diz ela, é aceitável que um texto rudimentar de alunos no início da alfabetização volte para a casa sem ter tido seus erros ortográficos corrigidos pelo professor. A ideia, diz ela, é não tornar o processo opressivo para os alunos, de modo a não desestimulá-los da leitura e da escrita.

“No Brasil, até pouco tempo atrás, aprender a ler e escrever era conseguir escrever o próprio nome. Mas vimos que só o domínio do sistema não dá conta. Acho mais importante que ela se arrisque a escrever uma cartinha para o papai noel, mesmo sem saber ainda escrever direito”, prossegue Colello.

“Já vi crianças com a letra maravilhosa, mas que não sabiam direito o que estavam copiando na lousa. É por isso que temos um analfabetismo funcional tão grande: são pessoas que passaram pela escola, mas não se tornaram usuárias da língua escrita.”

A disputa dos métodos

E quanto aos métodos de alfabetização? Essa é outra discussão que ganhou corpo com a atual gestão do MEC, ante defesas do método fônico, centrado na relação entre as letras e os sons da fala (em outras palavras, da relação entre grafemas — os símbolos gráficos que usamos na escrita — e os fonemas, que são os sons produzidos na fala desses símbolos).

A Política Nacional de Alfabetização do governo cita a consciência fonêmica como um dos seis componentes essenciais à alfabetização que serão fomentados ao longo da execução do plano.

O Instituto Alfa e Beto também utiliza esse método em seus projetos. “Geralmente, eles (métodos fônicos) beneficiam todos os tipos de alunos, mas são particularmente mais eficazes com alunos com dificuldades de aprendizagem de leitura e escrita”, explica o site da organização. “Cada vez mais os métodos fônicos mostram sua eficácia na alfabetização e ganham destaque com o respaldo da ciência.”

Mas a ênfase do MEC nesse modelo tem levantado críticas.

Para Silvia Colello, ao focar no entendimento dos fonemas, “o método fônico é um jeito mais rápido de mostrar resultados e reduzir o analfabetismo, mas gera um uso mecânico da língua, que não é o que queremos”.

Francisca Maciel acredita que os atrasos brasileiros na alfabetização vão além da metodologia usada em sala. Para ela, é preciso equacionar outros problemas que dificultam o processo de aprendizagem dos alunos nos primeiros anos do ciclo fundamental: a rotatividade de professores, a descontinuidade de projetos nas redes municipais, as deficiências na formação docente e o acesso inconstante a bons livros de literatura nas bibliotecas escolares.

“Não é um problema de métodos, como o governo propôs. Se fosse, não teríamos analfabetos no mundo, porque bastaria aplicar um método ou outro. O tempo todo, em sala de aula, professores usam princípios de diferentes métodos. O que não dá é para achar que um método vai ser a chave”, opina.

Voltando ao exemplo de Sobral — que tem 95% de seus alunos do 5º ano com conhecimento adequado em português, contra 56% da média brasileira, segundo a Prova Brasil 2017 —, a cidade não adota formalmente nenhum método de ensino, relata Herbert Lima, mas sim extrai práticas de diferentes métodos que os educadores considerem adequados para prática e para cada faixa etária.

BBC

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