Quatro décadas de um tesouro escondido: a educação na América Latina

Este artigo pretende refletir brevemente sobre as últimas quatro décadas de desenvolvimento educativo no continente. Indica problemas estruturais na América Latina e defende um enfoque crítico e transformador intrínseco às ações dos trabalhadores da educação.

Por Fernando Rodal*

1. Introdução

Sem conhecer a situação de seu desempenho, é impossível entender como se sente ou atua um/a trabalhador/a. Por isso, para compreender os fatos contemporâneos, devemos ter a perspectiva dos acontecimentos básicos em que se desenvolveram os sistemas educativos da América Latina durante os últimos quarenta anos.

Hoje também estamos passando por uma pandemia, devido ao Covid-19, que impactou profundamente todas as situações da vida, transformando, total ou parcialmente, as relações de trabalho e nos colocando diante de desafios que nunca imaginamos de uma forma tão dramática.

2. Os oitenta

Esta fase é caracterizada pelo Produto Interno Bruto (PIB) negativo (-1%), a transição de ditaduras civis-militares para a recuperação de regimes democráticos (fenômeno que, apesar dos enormes avanços alcançados, continua a ser tema pendente e fonte de desestabilização de governos eleitos pelo voto popular) e a aceleração do crescimento populacional, que começou há algumas décadas, que aumenta quase 45%, de 350 milhões para mais de 500 milhões, com exacerbação da densidade urbana.

No início da década, havia cerca de 2 milhões de professores de educação básica na região; em 1990 já eram 3 milhões. Essas quantidades mudam de país para país: em alguns, o número sobe 50%; em outros, por sua vez, o crescimento é menor ou quase nulo.

O trabalho docente é desenvolvido isoladamente, por níveis e modalidades, com grandes diferenças entre áreas urbanas e rurais. Escolas incompletas e em áreas urbanas marginais representam um grande desafio, devido ao seu histórico isolamento e necessária diversificação das respostas pedagógicas.

Foi muito limitada a participação dos trabalhadores do setor na definição das políticas educacionais: no final da década, alguns países realizaram processos de consulta nacional que envolveram, marginalmente, professores. Da mesma forma, a busca da consolidação democrática e o crescente fortalecimento das organizações sociais foram acompanhados pela presença cada vez mais ativa de sindicatos da categoria.

Os noventa

As reformas educacionais colocam novas demandas: adaptação aos novos currículos, uso de métodos de ensino pretensamente construtivistas e elaboração de projetos educacionais, entre outros.

No entanto, a maior complexidade das tarefas atribuídas não corresponde à melhoria das condições para desenvolvê-las. Em alguns casos, predomina a improvisação, devido à urgência de avançar rapidamente na consolidação de reformas. Os salários ainda são muito baixos na região, o que obriga (continua a acontecer) muitos professores a trabalhar em mais de um lugar, assumindo tarefas não relacionados com a educação.

Duas novas formas contratuais também são observadas: salário vinculado a desempenho (semelhante à produtividade empresarial) e contratação por municípios e conselhos escolares ou comunitários. Ao mesmo tempo, a jornada de trabalho não inclui horas suficientes para trabalho em grupo, preparação de aula ou treinamento e atualização do educador.

Absenteísmo, estresse e adoecimento (especialmente doenças de ordem psicológica, ligada à insatisfação e frustração) dão uma explicação clara do que alguns chamam de “síndrome de burnout”: uma estratégia para “estar sem estar”. Nesse quadro, o êxodo de educadores para outras profissões ou empregos não é estranho. A questão do ensino chega a um ponto crítico: o grande fosso entre a educação necessária e as condições em que o trabalho docente é realizado. Essa situação se reflete nas mobilizações e longos conflitos entre alguns governos e educadores organizados.

Destaca-se a presença de sindicatos que fortalecem sua capacidade de diálogo por meio da realização de congressos pedagógicos nacionais e fóruns regionais, além de estabelecer institutos de pesquisa, programas de treinamento e publicações. Isso permite que eles disseminem entre seus pares e a sociedade os traços comuns a todas as reformas da década, fato fundamental na avaliação final do referido processo.

Com a implementação de reformas educacionais, a formação de professores torna-se uma arma estratégia de todos os programas adotados. Os países investem recursos humanos e financeiros consideráveis nas atividades treinamento; no entanto, nos centros educacionais e nas salas de aula estas não conseguem transformar substancialmente o prática educativa.

Os programas de formação são alvo de fortes críticas de diferentes setores e visões educacionais: os professores argumentam que os programas não consideram suas necessidades, estão desvinculados da prática e dedicam pouco tempo à formação. No entanto, surgem algumas formas inovadoras de formação, embora quase sempre de tipo localizado.

Outra questão fundamental é a articulação entre a educação e o mundo do trabalho por meio de programas de ensino técnico e/ou profissionalizante de nível médio; em poucos casos, assume-se o trabalho como o eixo do sistema educacional em suas modalidades formal e informal.

No caso da formação profissional, muitas instituições desenvolvem programas sem serem articulados ou coordenados entre si, e surgem os institutos nacionais de formação profissional e os consórcios empresariais, entre outros, cada vez mais questionados por seus modelos de gestão e escassos resultados.

Todas as alternativas citadas acontecem durante o auge das políticas voltadas para a visão de mercado, sem ação de caráter integral e integradora suficiente e necessária. Assim, programas que aliam ações de capacitação com produção ou inserção ocupacional ganham espaços, mas sem atingir o sucesso anunciado, porque carecem de uma estratégia global e são reducionistas em termos de gestão curricular e educacional.

Esta forte tendência busca generalizar a abordagem do mercado para o relacionamento necessário entre a educação e o mundo do trabalho, o que deixa de lado a questão da promoção e criação de programas que partam da integração dos trabalhos produtivos e organizem currículos abrangentes.

A participação dos professores tem uma presença maior. Em muitos países, ela intervém através de processos de consulta, considerados insuficientes. A maioria das consultas são para a validação formal de um processo altamente centralizado, ao contrário do que é oficialmente proclamado.

Neste quadro, o desenvolvimento de projetos educacionais de escola, a criação de conselhos escolares e a responsabilidade pelos resultados são apresentados como áreas de autonomia e participação.

No entanto, os docentes mantêm a percepção de que os espaços de participação são predeterminados “de cima”, inibindo sua influência real sobre as políticas educacionais. Este fato, com poucas exceções, reflete-se na enorme quantidade de conflitos gerados a partir da implementação e modalidade das reformas educacionais.

Outro aspecto notório é o fortalecimento do processo, iniciado na década de 1970, de transferência para o ensino superior da formação de professores de educação básica: na maioria dos países latino-americanos e caribenhos, a carreira de ensino está em nível superior ou em processo de assim tornar-se.

É importante ressaltar que as organizações de trabalhadores na América Latina e Caribe realizam essas tarefas vitais em meio a uma forte reorganização a nível internacional, processo que continua até hoje, provocado, originalmente, pela explosão-implosão do chamado campo do socialismo real e suas áreas de influência, representado pela ex-União Soviética.

Esse fenômeno, pouco estudado e analisado, tem gerado inércia e confusão na busca de uma nova “unidade mundial”, que tem como contrapartida importante para destacar a presença de forte conteúdo neocolonial e eurocêntrico, visível nessas novas formas organizacionais e que têm sido objeto de fortes críticas por sua tentativa de hegemonizar a liderança. Isso tem dificultado claramente o desenvolvimento de uma unidade nova e necessária mundo (CEA, 2019) com base no respeito à diversidade legítima das organizações regionais e continentais pré-existentes.

Os dois mil e contando

A luta do ensino tem procurado impedir que os professores sejam vistos apenas como um recurso para a melhoria da qualidade do ensino (leia-se, implementação do reformas) e passem a ser protagonistas da mudança socioeducativa.

Nos últimos quarenta anos, a educação se converteu, para a América Latina e o Caribe, numa das questões mais importantes nas agendas governamentais e sociais. Basta observar a Cúpula Extraordinária das Américas (Monterrey, 2004), onde os chefes de Estado e de governo declararam: “que o bem-estar de nossos povos requer a realização de três objetivos intimamente relacionados e interdependentes: crescimento econômico com equidade para reduzir a pobreza, desenvolvimento social e governabilidade democrática”.

A educação é fator decisivo para o desenvolvimento humano, influenciando a vida política, social, cultural, econômica e democrática de nossas sociedades. As crescentes taxas de analfabetismo em muitos países de nosso hemisfério são um assunto que requer nossa ação imediata. Estamos comprometidos em continuar promovendo o acesso a uma educação básica de qualidade para todos, baseada nos princípios de participação, equidade, relevância e eficácia, e que gere as capacidades e habilidades necessárias para impulsionar o processo de desenvolvimento de nossos povos, sem qualquer discriminação ou exclusão e, portanto, responder aos desafios do século 21.

Neste contexto, o conceito de qualidade da educação evolui ao longo do tempo, passando de uma visão ancorada na gestão para uma mais próxima da aprendizagem dos alunos, levando em consideração seus reais ambientes sociais e econômicos.

Na década de 1990, isso fez com que a maioria dos países da região implementassem sistemas nacionais de avaliação da qualidade da educação. Foram mostrados claramente os problemas dos alunos nas chamadas áreas instrumentais, considerada a força das reformas, e uma fragmentação clara do pensamento que dificultava o desenvolvimento de processos mentais – algo que sem dúvida afetou e afeta a compreensão da realidade como fenômeno com presente, passado e futuro.

A importância dada à educação básica não tem sido acompanhada de uma reflexão essencial: como passar de uma estrutura educacional para outra, evitando a “primarização” da educação?

Aqui, é central o conceito de educação para todos e todas ao largo de toda a vida. Só assim será possível evitar que a educação seja submetida a visões restritivas, derivadas, em muitos casos, de leituras que negam a necessidade imperiosa de realizar a transformação das estruturas sociais, políticas e econômicas.

Embora na Cúpula Extraordinária das Américas tenha sido acordado aumentar os recursos alocados para educação a 7% do PIB, a média da região ficou em torno de 4%. Tem havido uma tendência de melhorar o investimento em educação de uma forma gradativa, quase sempre ligado ao crescimento econômico nacional e por meio de um compromisso de investimento que se aproximaria de 6% do PIB em alguns países. Certamente, também aqui existem diferentes formas de medir: alguns assumem o investimento total público-privado e outros apenas o investimento público.

O maior desafio é aumentar o investimento de forma sustentada nos diferentes orçamentos, para evitar o que até agora tem sido uma constante: respostas conjunturais às necessidades estruturais básicas.

Este processo foi interrompido ou barrado pelo retorno ao poder político de vários governos neoconservadores na região nos últimos anos: o que confirma claramente que o investimento econômico, crescente e sustentado no sistema educacional é, primeiro, uma decisão política, que precede a uma resposta econômica.

A pretexto de balanço e perspectiva

Nos últimos quarenta anos, a educação para a América Latina e Caribe foi uma das questões mais importantes nas agendas governamentais e sociais. No entanto, a implementação de uma política de forte desenvolvimento social com uma visão de integração regional tem sido um desafio fragmentado e inconcluso, com resultados insatisfatórios em termos de avaliações (mesmo aceitando, em muitos casos, as deficiências de apreciação e medição). Este tempo se passou em meio a crises políticas e econômicas, o que têm impedido a implementação de diretrizes consensuais e de longo prazo.

Como podemos ver, há muitas pendências nessas quatro décadas em questões como o papel da educação na distribuição igualitária do conhecimento, seu papel como instrumento de desenvolvimento produtivo e sua contribuição à promoção da paz e à consolidação da democracia.

Mirando o futuro e pensando nos compromissos repetidamente assumidos desde Jomtien (1990) a Dakar (2000) e na atualidade, à medida que passamos por uma pandemia desencadeada pela Covid-19 e observando o cumprimento do ponto 4 (referido a uma “Educação de Qualidade”) dos 17 que compõem os “Objetivos de uma desenvolvimento sustentável: 2030” (ONU, 2019), é hora de cumprir um roteiro claramente delineado, mas pouco percorrido.

Basta revisar os dados das Nações Unidas, do final de setembro de 2020, para entender que devemos dar uma guinada radical sobre como o dinheiro público é investido em nossas sociedades, se realmente queremos cumprir os objetivos de uma educação de qualidade a serviço de nossos povos e nações.

Vamos ver alguns dos dados:

– 71 milhões de pessoas voltaram à pobreza em 2020, fato que não ocorria nos registros oficiais desde 1998.

– 1,6 bilhão de pessoas subempregadas e desempregadas: é metade da força de trabalho do planeta que não recebe assistência suficiente ou necessária por parte dos governos.

– 1 bilhão de seres humanos em bairros marginalizados, com as mazelas decorrentes na atenção à habitação e saúde.

– 90% das escolas afetadas por fechamentos, prejudicando seriamente mais de 1 bilhão e 750 milhões de alunos em seu aprendizado e desenvolvimento. A isso, acrescente-se mais de 370 milhões de meninas, meninos e adolescentes que ficaram sem receber alimentação diária e serviços de saúde que prestavam atendimento médico e vacinação. Vale ressaltar que a educação remota ou à distância dificulta a situação, porque a conectividade e acesso estão longe de ser universal e, portanto, igualitária e democrática.

– 57 milhões de jovens estão fora do sistema educacional e 90% deles pertencem aos chamados países em desenvolvimento.

A isso devemos adicionar a deterioração nas condições dos trabalhadores e trabalhadoras em educação em sua privacidade pessoal e familiar, as cargas horárias extras, licenças e salários, criando uma situação de alto estresse para o pessoal docente, administrativo e de serviço que integram o sistema. Hoje também são necessárias garantias para um retorno seguro ao espaço educacional, preservando a vida de alunos, trabalhadores e suas famílias.

Podemos dizer, sem medo de errar: já tivemos cúpulas suficientes para definir direções e, assim, evitar uma novo fracasso que nos obrigue a chamar outra nova cúpula para o ano 2050.

Precisamos sair da retórica estéril e dar o salto para a realidade concreta, o que implica assumir que, com o aumento da concentração de riqueza em cada vez menos mãos, será impossível abordar com sucesso esta questão fundamental e sempre adiada.

Atualmente, estamos enfrentando séria inação dos principais governos em todo o mundo, governos que não levam a sério e com empenho este problema central. O problema está sendo, até agora, gerenciado e administrado sistematicamente fora de toda lógica humana, que implica atender às necessidades básicas e de sobrevivência.

A humanidade hoje desempenha seu destino neste planeta mediante a urgente e necessária justiça social, que se integra à dimensão do desenvolvimento econômico e político. Dessa forma, poderá fazer da educação esse tesouro que todos nós ansiamos para este planeta, seu fruto profundamente transformador e que transborda sua influência para além da sala de aula e da escola, colocando-se na razão e no coração de nossas sociedades.

Referências

CEA, 2019. Disponível em: https://ceasubsedeuruguay-com.webnode.com.uy/cultura/

ONU, 2019. Disponível em: https://www.un.org/sustainabledevelopment/es/objetivos-de-desarrollo-sostenible/

*Por Fernando Rodal é presidente da Confederação de Educadores da América (CEA), docente da Universidade do Trabalho do Uruguai U.T.U.

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