Reprovou no psicotécnico, investigou desafeto e atacou procurador: a trajetória do novo presidente da Funai

O delegado da Polícia Federal (PF) Marcelo Augusto Xavier da Silva foi escolhido por Jair Bolsonaro para presidir a Fundação Nacional do Índio (Funai). Xavier é próximo de deputados da chamada bancada ruralista do Congresso, mas não é só isso que caracteriza a trajetória dele.

Quando delegado, sua atuação foi investigada em duas apurações internas da PF, e ele chegou a ser afastado de uma operação em terra indígena. Xavier também foi rejeitado numa primeira avaliação psicológica para o cargo de delegado da PF, embora tenha passado em outra, depois.

O primeiro presidente da Funai na gestão do presidente Jair Bolsonaro (PSL) foi o general da reserva do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas. Ele foi removido do cargo em meados de junho. De ascendência indígena, Freitas disse em seu discurso de despedida que Bolsonaro estava mal assessorado sobre política indigenista, e atacou o pecuarista Luiz Antônio Nabhan Garcia, atual secretário de política fundiária do Ministério da Agricultura (Mapa) e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR).

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“Quem assessora o senhor presidente não tem conhecimento de como funciona o arcabouço jurídico que envolve a Funai (…). E quem assessora o senhor presidente é o senhor Nabhan. Que, quando fala sobre indígena, saliva ódio aos indígenas”, disse o general da reserva.

A presidência da Funai estava vaga desde a saída de Ribeiro de Freitas. Agora, será ocupada por uma pessoa relacionada a Nabhan.

Em janeiro deste ano, Marcelo Augusto Xavier chegou a ser nomeado para trabalhar como assessor do pecuarista Nabhan no ministério – mas, como não foi cedido a tempo pela Polícia Federal, teve a sua nomeação anulada em abril, segundo contou o próprio Nabhan à BBC News Brasil.

Xavier foi nomeado para o cargo na última sexta-feira (19) e tomou posse nesta quarta (24).

No governo de Michel Temer (MDB), Marcelo Augusto Xavier foi ouvidor da Funai por alguns meses e, depois disso, assessor do ministro Carlos Marun (Secretaria de Governo) para assuntos ligados à questão agrária. Antes ainda, em 2016, trabalhou na CPI da Funai e do Incra a convite de deputados da bancada ruralista – o relatório final da CPI pediu o indiciamento de antropólogos, indígenas, servidores públicos da Funai e de integrantes de ONGs.

Indígenas brigam para serem ouvidos sobre obra prometida por Bolsonaro

A retórica de Bolsonaro contra as demarcações de terras indígenas vem de antes da campanha eleitoral. “Se eu chegar lá (na Presidência da República), não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, disse ele em abril de 2017, numa palestra no Clube Hebraica do Rio de Janeiro.

Para entidades ligadas aos indígenas, a nomeação de Xavier é parte da estratégia do governo para evitar novas demarcações de terras e embaraçar os trabalhos da Funai.

Ao mesmo tempo, o ex-deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT), que trabalhou com Xavier na CPI da Funai e do Incra da Câmara dos Deputados, diz que o delegado sempre teve um bom relacionamento com os indígenas – exceto aqueles ligados às ONGs. Xavier detém conhecimento profundo sobre a temática indígena, segundo Nilson Leitão. Outro ex-chefe de Xavier também elogia o seu trabalho. “Foi um bom assessor. Conhece a questão indígena”, disse o ex-ministro Carlos Marun à BBC News Brasil. “Tem visão crítica quanto ao trabalho de algumas ONGs no assunto”, acrescenta.

A reportagem da BBC News Brasil tentou contato com Marcelo Augusto Xavier por meio da assessoria de imprensa da Funai ao longo desta semana, mas não obteve resposta. A assessoria de imprensa da fundação diz que, como ele acaba de tomar posse, ainda não teve como tratar do assunto. A reportagem também procurou o delegado em seu e-mail institucional da Polícia Federal, mas não obteve resposta. Este texto será atualizado caso as respostas sejam enviadas.

Prestes a completar 43 anos, Xavier é técnico em Agropecuária e bacharel em Direito por uma universidade privada de São Paulo. Concluiu também uma pós-graduação em ciências criminais na Universidade Anhanguera Uniderp (MS).

Em nota oficial da Funai, ele disse que sua gestão na Funai terá por objetivo melhorar as “condições de vida” dos indígenas e “dar autonomia aos seus povos para decidirem”.

“O modelo até então desempenhado (na Funai) não vinha sendo efetivo. Logo, serão bem-vindas sugestões que possam contribuir com as comunidades, e o quadro de servidores do órgão é imprescindível para isso. Seguindo a legalidade, precisamos focar em garantias de dignidade aos povos indígenas e na melhor aplicação dos recursos públicos”, disse ele em nota oficial da fundação.

Reprovação no psicotécnico e punições disciplinares

Antes de vir para Brasília, Marcelo Augusto Xavier teve uma vida atribulada na Polícia Federal.

Ele foi alvo de duas investigações internas da corporação – chamadas, no jargão do serviço público, de PADs (Processo Administrativo Disciplinar). Uma delas foi por ter aberto uma investigação contra o ex-marido de sua mulher. A outra, por supostamente ter desacatado um procurador do Ministério Público Federal (MPF). Além disso, Xavier foi reprovado em uma avaliação psicológica para o cargo de delegado – embora tenha passado em outra.

Todas as informações constantes desta reportagem foram extraídas de documentos públicos.

Xavier foi aprovado em dois concursos para o cargo de delegado de Polícia Federal no ano de 2004: um de âmbito regional, e outro de concorrência nacional. Em um deles, Xavier foi considerado “não recomendado” para o cargo de delegado – embora tenha sido aprovado na avaliação psicológica do outro concurso. As duas avaliações deveriam, em tese, ter o mesmo conteúdo.

O fato de ter sido reprovado na avaliação não significa que o novo presidente da Funai sofra de enfermidades psicológicas ou psiquiátricas: significa, apenas, que seus avaliadores à época não consideraram sua personalidade compatível com o cargo de delegado da PF.

“Um policial, por exemplo, não pode ser agressivo nem impulsivo em demasia, mas deve ter um mínimo de agressividade”, disse em 2017 o delegado da Polícia Civil gaúcha Luís Henrique Gasparetto, ao jornal Zero Hora, em uma reportagem sobre o tema.

De qualquer forma, a maioria dos candidatos acaba passando nesse tipo de avaliação psicológica. No concurso de Xavier, 260 pessoas foram aprovadas na avaliação médica no Estado de Mato Grosso. Dessas, 237 passaram no teste psicológico. Só 23 foram consideradas não aptas.

Depois de recorrer à Justiça, Xavier tomou posse no cargo de delegado da PF em janeiro de 2008.

Pouco depois veio a primeira investigação interna (PAD) contra ele. O PAD é o instrumento usado na administração pública para investigar e eventualmente punir os servidores.

Xavier instaurou uma investigação contra um homem chamado Adalto Amaral do Carmo. Adalto é “ex-marido de Jucilene Maria Rodrigues, atual companheira do autor”, de acordo com uma decisão judicial sobre o assunto.

“Em razão da suposta proximidade entre o autor (Xavier) e o investigado (Adalto) foi lhe aplicada a pena de advertência no processo administrativo n. 006/2010-SR/DPF/MT, sob o fundamento de que a investigação policial se deu por motivações pessoais”, diz outro trecho da decisão assinada pelo juiz federal Cesar Augusto Bearsi, de Mato Grosso, em 2013. Xavier também omitiu dos procuradores do MPF que trabalharam no caso que o investigado, Adalto, era “ex-marido de sua companheira”, segundo a sentença.

Neste processo, Xavier se justificou dizendo que “apenas praticou ato de ofício que lhe competia” ao investigar Adalto – os fatos teriam se desenrolado quando Xavier trabalhava na cidade de Sinop (MT). Depois, Xavier acabou processado pelo crime de denunciação caluniosa, isto é, de acusar de crime alguém sabidamente inocente. O delegado foi absolvido.

A outra investigação interna contra Xavier está relacionada a uma desavença entre ele e um procurador da República. O processo administrativo recebeu o número 010/2011-SR/DPF/MT.

A suposta infração disciplinar de Xavier, nesse caso, aconteceu porque ele “teria apresentado manifestação depreciativa a membro do Ministério Público Federal no bojo do inquérito policial”. Ao fazer isso Xavier teria quebrado um dispositivo legal que obriga os servidores públicos a “tratar com urbanidade as pessoas” e outro que determina ser transgressão disciplinar dos policiais “referir-se de modo depreciativo às autoridades em atos da administração pública, qualquer que seja o meio empregado para esse fim”.

‘O delegado estava do lado dos invasores’

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que todos os não índios deveriam sair da terra indígena Marãiwatsédé – um território de 1.652 km² (pouco maior que o município de São Paulo) na região nordeste de Mato Grosso. Marãiwatsédé é também hoje uma das terras indígenas mais devastadas do país – em 2015, um único incêndio atingiu 47% do território.

Localizado a 650 km de Cuiabá, o local foi considerado propriedade da etnia Xavante depois de uma batalha judicial que durou quase 20 anos – a homologação ocorreu em 1998, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Entre 2012 e 2014, foram várias as ocasiões nas quais não índios voltaram a entrar no território.

Nesta época, Marcelo Augusto Xavier comandava a delegacia da Polícia Federal em Barra do Garças (MT), e atuou na retirada dos moradores não-índios – chamada, no jargão, de “desintrusão”. Mas, pelo menos para um procurador da República que trabalhou naquele caso, Xavier atuou ao lado dos invasores, contra o cumprimento da ordem judicial.

Wilson Rocha Fernandes Assis é procurador da República (do MPF). Ele trabalhou com Xavier em 2013 e 2014 na desintrusão da Marãiwatsédé, e diz não ter boas lembranças da atuação dele, na época.

“A gente propôs que fosse feita uma operação policial, com interceptação telefônica, para que a gente entendesse quem estava por trás da constante re-invasão dessa área”, disse ele à BBC News Brasil.

“Tinha na época mais de cem homens da Força Nacional (de Segurança Pública) lá, mas havia um movimento muito forte do sindicato rural, que enfrentava as forças do Estado, que reviravam viaturas, e eu suspeitava que existisse uma articulação de caráter criminoso por trás dessas constantes re-invasões”, diz.

“Pedi a interceptação telefônica, e ele (Xavier) não queria, inicialmente, que se fizesse a operação, mas o próprio MPF fez o pedido direto na Justiça, e aí chegou os ofícios lá (da Justiça), e ele teve que cumprir”, conta.

“E no curso das investigações, os investigados, os fazendeiros da região que invadiam Marãiwatsédé, faziam referências a ele (Xavier) o tempo inteiro durante o áudio, dizendo, por exemplo, que o delegado estava do lado dos invasores. Isso foi dito nos áudios da interceptação telefônica”, diz o procurador Assis.

Por fim, no primeiro semestre de 2014, uma reclamação do MPF para o superintendente da Polícia Federal em Mato Grosso acabou afastando Xavier das operações relacionadas à Marãiwatsédé.

Alguns anos mais tarde, a CPI da Funai e do Incra – na qual Xavier trabalhou – acusou o procurador Assis de ter adotado condutas “antijurídicas” enquanto trabalhou em Mato Grosso.

Ida de Xavier é para aparelhar Funai, diz ONG; deputado rebate

Mas qual é exatamente o objetivo da gestão de Jair Bolsonaro ao colocar o delegado da PF Marcelo Augusto Xavier da Silva na presidência da Funai?

Para o representante de uma ONG indigenista, trata-se de controlar as atividades da fundação e desarticular a proteção aos direitos dos índios.

Mas, para o ex-deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), Xavier tem o conhecimento necessário para cuidar da política indigenista, e as reclamações se resumem a ONGS que terão seus interesses financeiros afetados na nova gestão. A FPA é o órgão de articulação da bancada ruralista em Brasília.

Leitão foi o relator da CPI da Funai e do Incra, e um dos responsáveis por chamar Xavier para trabalhar na Câmara durante o funcionamento da Comissão.

À BBC News Brasil, Leitão explica que o trabalho do delegado era coordenar os trabalhos de campo da CPI – realizando os depoimentos de pessoas envolvidas, por exemplo.

“Ele tem uma relação boa com os índios. Então, isso ajudou muito. Na época, tinha aquela argumentação forçada de que a CPI era contra o índio, e não era. Era contra quem usava o indígena para usufruir, para ganhar dinheiro. Comprovamos que várias ONGs usavam desse dinheiro em benefício próprio, enquanto a situação dos indígenas piorava”, diz ele. Leitão acrescenta que não tem relação com a nomeação de Xavier para a Funai.

“Os índios que não gostam dele são os que recebem algum benefício de alguma ONG, os que têm interesses (pessoais) envolvidos. Mas os líderes indígenas da vida real, com quem a gente conviveu, esses não querem mais ser tutelados por ONGs”, diz o ex-deputado.

Logo depois de assumir a Presidência da República, Bolsonaro editou uma medida provisória (a de número 870) para extinguir alguns ministérios e reorganizar os demais. Pelo texto da MP, a Funai sairia do guarda-chuva do Ministério da Justiça e iria para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob o comando de Damares Alves. E também perdia a atribuição relativa à demarcação de terras indígenas, que passaria a ser do Ministério da Agricultura.

Mas o Congresso rejeitou essas mudanças. No texto final da MP, aprovado no fim de maio, a Funai continuou no MJ, e responsável pelos estudos que embasam as demarcações.

Para Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a nomeação de Xavier faz parte de uma mudança de estratégia do governo. Como não foi possível retirar a atribuição sobre demarcações de terra da Funai, então é preciso colocar no comando da fundação uma pessoa ligada aos interesses do agronegócio, diz ele.

“Desde o primeiro dia, o governo Bolsonaro demonstrou que faria uma gestão contra os indígenas. A MP 870 já mostrava que ele buscaria cumprir essas promessas feitas durante a campanha, contra a demarcação de terras”, diz.

“O Marcelo (Augusto Xavier) tem esse histórico de vinculação com a bancada ruralista, um histórico de trabalhar contra os indígenas de Mato Grosso”, diz ele.

“Inviabilizado o primeiro caminho (de levar a atribuição das demarcações para o Ministério da Agricultura), eles fizeram esse movimento tático de buscar o controle político e a instrumentalização do órgão indigenista. A estratégia foi derrubar o então presidente, um general (Franklimberg), e colocar esse delegado, que foi assessor dos ruralistas (na CPI do Incra e da Funai). É uma pessoa indicada por eles. É a raposa para tomar conta do galinheiro”, diz Buzatto.

A Funai foi criada em dezembro de 1967. Dentro do processo de demarcação de terras indígenas, é a responsável por criar um grupo de trabalho que faz a identificação da área reivindicada pelos índios. Esses estudos resultam num Relatório Circunstanciado, que precisa ser aprovado pelo presidente da Funai antes de ser aberto à contestação pública.

Depois disso, o processo de homologação das terras precisa passar ainda pelo ministro da Justiça antes de ser assinado (homologado) pelo presidente da República.

BBC

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