‘Trote universitário não é tradição, é relação de poder’, diz especialista

Apesar de as instituições de ensino superior incentivarem ações de entretenimento, humanitárias ou pedagógicas para receber novos alunos, caso de trotes abusivos carregados de preconceito ou violência continuam sendo registrados em todo o país nesta época do ano. Muitas práticas se repetem sob alegação de que são tradicionais e fazem parte da história de determinadas faculdades. Estudiosos do trote universitário ouvidos pelo G1 afirmam que é preciso acabar com esta prática.

“Não tem nada a ver com tradição, a questão do trote é relação de poder. Um grupo político disputa o controle da situação. O menino que vai para a rua pedir dinheiro [nas brincadeiras de pedágio] é o soldado raso em uma hierarquia que tem general”, afirma Antônio Ribeiro de Almeida Júnior, professor do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura (Esalq). O especialista é autor de três livros e estuda o tema desde 2001. “Ao longo do ano vejo o aumento da violência, e não da consciência.”

Vários episódios de violência física ou psicológica foram registrados nas últimas semanas. Em Minas Gerais, uma caloura foi fotografada pintada de preto com as mãos acorrentadas e uma placa de identificação com o nome “Chica da Silva.” No Rio Grande do Sul, os “bixos” tiveram de segurar uma cabeça de porco e tomaram um banho com líquido que continha vísceras de peixe.

As atléticas e centro acadêmicos das universidades costumam rebater as críticas dizendo que as atividades são ações isoladas, ocorrem independentemente das instituições e a participação dos estudantes é voluntária. Muitas instituições até disponibilizam telefones que funcionam como ‘disque trote’ para denunciar casos de coação e constrangimento.

O último livro de Almeida Júnior sobre o tema foi, na verdade, sua tese de livre docência chamada de “Anatomia do Trote Universitário”. Para o trabalho, ele ouviu relatos de mais de 400 alunos e teve acesso a mais de 2 mil questionários. O especialista diz que o trote não é um ritual de integração, pois reúne no máximo 20% dos alunos, por isso o receio que os novos estudantes têm de que ficarão excluídos, caso não participem das atividades, é uma bobagem.

“Quando você conhece alguém novo, não precisa pintá-lo para receber na sua casa. A ideia de alegria do trote é falsa, é um processo de exclusão. É um teste, por isso precisa ser violento”, diz o professor.

O especialista vê como problemática até mesmo a prática do corte do cabelo dos meninos, que é aceita pela maioria dos alunos. “Conheço relatos de casos de agressão que ocorrem durante o corte. 80% dos alunos que participam do trote dizem que passaram por pelo menos alguma coisa de que não gostaram ou se ofenderam.”

Almeida Júnior é formado em engenharia agronômica pela Esalq e diz que ele cortou o próprio cabelo quando passou no vestibular. “O trote é processo progressivo, ninguém espanta o outro num primeiro contato. Ocorre um processo crescente, primeiro a pessoa corta seu cabelo, depois manda você se ajoelhar e no final se não obedecê-la, te bate.”

Bullying na universidade

“Se discute muito o bullying no ensino médio, mas o trote é o fenômeno que sustenta o bullying na universidade. Quando um brinca e outro se sente mal, não é mais brincadeira. O sistema é enraizado como rito de passagem, mas não é porque os alunos nunca se igualam, são reprimidos pelos que estão um ano na frente”, afirma a socióloga e professora de saúde coletiva da Faculdade de Medicina do ABC, Silmara Conchão.

Ao lado dos professores Marco Akerman, Roberta Cristina Boaretto e um grupo de 13 alunos, Silmara lançou o livro “Bulindo com a universidade: um estudo sobre o trote na Medicina”, em novembro do ano passado. A publicação traz depoimentos de alunos do 2º ao 5º ano da Faculdade de Medicina do ABC que sofreram com trotes.

“O livro descortina uma realidade muito velada. Hoje a recepção [na Faculdade de Medicina do ABC] tem caráter de acolhimento. Mas ainda vai levar anos para desorganizar esta cultura do trote, pois há pressão e discriminação com aquele que não participa.”

‘Inibição total’

O presidente da comissão contra o trote violento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Fábio Romeu Canton Filho, afirma que a fundamentação de que o trote é uma tradição ou rito de passagem é muito frágil. “Uma única morte em uma universidade é suficiente para justificar a inibição total. A preservação da vida humana tem de ser o mote.”

Canton Filho se refere a Edison Tsung-Chi Hsueh, aprovado no curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1999, que morreu afogado em uma piscina durante o trote. Ele tinha 22 anos. Desde então os novos alunos da medicina da USP são recebidos com palestras, tour pelo campus e ações educativas que também envolvem os pais.

“É muito mais saudável fazer uma festa com os diretórios acadêmicos que sabem realizar recepções e integrações. O pensamento de ‘vamos manter a tradição’ está atrasado”, afirma o advogado. Segundo ele, muitos casos de trotes podem ser alvo de ações de natureza civil e até criminal, previstos pela legislação brasileira.

Trote solidário

Nem mesmo os trotes solidários são consenso entre os especialistas. Canton admite ações que preveem trabalho voluntário, arrecadação de alimentação e tenham outros fins sociais, desde que tenham aceitação do estudante. Almeida Júnior afirma que se a atividade tiver a denominação “trote” é problemática, até mesmo as que se propõem fazer atividades solidárias. “É preciso desconectar as ações das palavras ‘trote’, ‘calouro’ e ‘veterano’. O papel social da universidade não é a distribuição de cesta básica, é produzir pesquisa, conhecimento e estender isso para que a comunidade receba o produto do investimento.”

O fim dos trotes depende de ações mais enérgicas das universidades, segundo o professor. Almeida Júnior, no entanto, não vê vontade das instituições. “As universidades não estão interessadas em resolver a questão e disfarçam propondo trotes solidários e culturais. Existe muita maquiagem. Se a universidade quiser, tem poder e instrumentos para acabar com o trote.”

Por Vanessa Fajardo, do G1

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