7 teses sobre o presente e o futuro da educação brasileira

Ilustração produzida para o dossiê “O CoronaChoque e a educação brasileira: um ano e meio depois”. Crédito: Ingrid Neves. Reprodução: The Tricontinental

Com a pandemia, ocorreram rápidas mudanças que desafiam o nosso entendimento dos processos em curso. Especialmente na educação, todos nós estamos tentando entender o que vem se passando. Vimos o fechamento temporário e inédito de escolas e universidades, realização de atividades de ensino por meio de plataformas digitais, professores em trabalho remoto, cortes de verbas, militarização de escolas, evasão de estudantes, discussão sobre ensino domiciliar, reabertura desordenada, etc. É evidente que as dimensões deste processo são múltiplas, perpassando o papel do Estado como financiador e organizador da rede pública, o papel das instituições privadas, a dinâmica do trabalho dos profissionais em educação, o lugar da tecnologia nas atividades de ensino, o fazer didático-pedagógico, bem como as expectativas da sociedade em relação à educação como caminho para melhorar suas condições de vida.

Através da pesquisa CoronaChoque e Financeirização da Educação Brasileira, desenvolvida pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e pelo Front Instituto de Estudos Contemporâneos ao longo de 2021, temos acompanhado o desenvolvimento da conjuntura educacional. Um primeiro resultado foi apresentado no Dossiê Internacional O CoronaChoque e a Educação Brasileira: um ano e meio depois, em que, a partir de entrevistas com militantes e especialistas sobre o tema, conseguimos fazer um mapeamento dos diferentes fatores que impactaram o setor educacional no Brasil durante a pandemia.

Somando-se a este esforço, o presente texto busca fazer um diagnóstico sobre a natureza e a profundidade das mudanças que estão ocorrendo no âmbito da educação. Ele tem caráter ensaístico e busca apresentar de forma simples e direta sete ideias-chave. Nossa proposta é trazer ideias para o debate sem qualquer pretensão de esgotar as questões envolvidas. São, na verdade, ideias muito gerais, que apontam processos estruturais de fundo que estão em andamento. Mas o fato de ressaltarmos as mudanças não significa que tudo seja novo. Pelo contrário, a maior parte das constatações feitas aqui podem ser entendidas como o aprofundamento de tendências pré-existentes. O leitor notará que estes não são sete processos independentes, e sim sete momentos de uma mesma totalidade articulada. Trata-se, em sintonia com a perspectiva dialética, de um longo acúmulo de mudanças de quantidade que agora estão produzindo mudanças qualitativas no universo educacional.

Partimos de dois pressupostos básicos. O primeiro é o de que a revolução tecnológica está jogando um papel central na acelerada conversão da educação em mercadoria. Grande parte das mudanças diagnosticadas tem como plano de fundo este processo. É perceptível que estamos frente a um novo desdobramento da forma de produção capitalista aplicada à economia de serviços. Enfatizamos a dimensão tecnológica porque nos últimos anos está ocorrendo nos países centrais uma mudança estrutural na forma de produção de mercadorias. Alguns a chamam de Indústria 4.0, que é fruto da aplicação das tecnologias da informação e comunicação a diferentes setores e atividades econômicas. Dentre os fatores que sintetizam essa nova revolução, podemos citar a plataformização do setor de serviços, a disseminação do uso de inteligência artificial (machine learning), a internet das coisas e a flexibilização das relações de trabalho, relacionada à uberização. Neste sentido, entende-se que o dossiê Big Techs e os desafios atuais para a luta de classes, lançado recentemente pelo Instituto Tricontinental, está em sintonia com a perspectiva aqui apresentada e é um ponto de partida fundamental para compreendermos o papel da tecnologia na educação.

O segundo pressuposto é o de que em países de capitalismo periférico, como é o caso do Brasil, a introdução de inovações técnicas acaba aprofundando o caráter subdesenvolvido e dependente que domina a nossa formação social. Ou seja, aqui no sul global, as novas tecnologias não contribuem para o avanço da sociedade a patamares civilizacionais superiores. Pelo contrário, funcionam como agravadoras das contradições pré-existentes e dos traços anti-civilizatórios do sistema. Quer dizer, essas inovações não somente chegam aqui atrasadas e incompletas, como adquirem também um acentuado caráter predatório, agravando o subdesenvolvimento, a superexploração do trabalho, e as mais variadas formas de dependência. Longe de ser um processo natural, as tendências da educação no Brasil obedecem à lógica dominante no nosso tipo de sociedade. Prova disso pode ser encontrada no contraste da nossa experiência nacional com a recente tentativa chinesa de limitar e controlar a atuação das grandes corporações na atividade educacional do país.

É a partir desse duplo determinante que a educação brasileira está sendo transformada no momento atual. Neste quadro, a pandemia da Covid-19 funcionou como uma espécie de catalisador, criando um cenário novo e até então inimaginável, em que as condições e oportunidades de aceleração das mudanças foram excepcionais. Foi uma daquelas situações comumente caracterizadas como uma “tempestade perfeita” para o avanço do capital na educação. Daí se entende porque temos essa sensação de incerteza em relação ao futuro.

Além dos pressupostos apresentados acima, daremos especial atenção a dois agentes que tiveram atuação privilegiada nesse processo. O primeiro deles é o Estado, com suas diretrizes e políticas para a área educacional, regulamentando ou desregulamentado, tomando decisões ou deixando de tomá-las. O segundo são os grupos corporativos privados, grandes beneficiados da destruição do sistema público, que se apropriam de uma parcela cada vez maior de atividades relacionadas à educação.

Vamos às nossas sete teses.

1. Desestruturação do sistema educacional

Não é de hoje que se fala em crise do sistema educacional brasileiro. No entanto, desde a Constituição de 1988 e a formulação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) não ocorria algo da magnitude que está em curso neste momento. Nossa primeira tese é que a atuação do Estado durante o governo Bolsonaro tem o inegável sentido de desestruturação do sistema educacional. A coerência da ação do governo neste sentido é muito evidente, não sendo possível sustentar que o problema seja apenas o descaso ou a incompetência dos agentes públicos que assumiram o comando do aparato estatal. Essa desestruturação vem ocorrendo a partir de três eixos centrais.

O primeiro eixo é a notória desqualificação dos quadros indicados para assumir postos estratégicos no setor. De partida, o fato de que em menos de três anos foram nomeados três ministros da educação é um evidente descaso com a construção de um programa de médio ou longo prazo. Ao mesmo tempo, foram nomeadas pessoas despreparadas para ocuparem cargos importantes no MEC e no INEP, especialmente militares e gestores do setor privado, a exemplo do ex-ministro Abraham Weintraub, sem qualquer experiência na área. Algo similar ocorreu nas instituições federais de ensino, em que reitores foram nomeados autoritariamente apenas por sua lealdade ao governo.

O segundo eixo de desmonte é a drástica redução do financiamento público. Entre 2019 e 2021, o orçamento do MEC diminuiu progressivamente e mesmo verbas que estavam previstas e liberadas não foram utilizadas em 2020. Recentemente, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação sistematizou o tamanho do corte orçamentário implementado nos últimos cinco anos, que passou de algo em torno de R$114 bilhões em 2015 para R$74 bilhões em 2020. O quadro de desmonte é claro e não deixa margem a dúvidas. O mesmo ocorreu com o orçamento da Capes, que passou de mais de R$13 bilhões em 2015 para R$3,6 bilhões este ano.

Pior: se levarmos em conta o quadro da pandemia iniciada em 2020, verificamos que quando a população mais precisava da ciência, as universidades federais, principais centros de pesquisa do país, sofreram cortes que quase inviabilizaram sua manutenção básica. Também não houve qualquer preparação da infraestrutura tecnológica e logística do sistema educacional para enfrentar o início da pandemia em 2020, assim como não houve qualquer preparação e coordenação nacional para a reabertura das escolas. Em todos os casos, a mensagem foi sempre a mesma: governadores e prefeitos, virem-se!

Ou seja, há um deliberado esforço de fragmentação do sistema educacional público, com a terceirização das atribuições da União para estados e municípios. Emblemática foi a tentativa sistemática do governo de atrasar a aprovação e a regulamentação do novo Fundeb em 2020, num momento crítico do financiamento da educação básica. Além disso, enquanto estudantes e professores necessitavam urgentemente de infraestrutura digital, o governo sabotou o programa Educação Conectada e trabalhou para adiar ao máximo a aprovação do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) no Congresso, que previa a universalização da internet de banda larga nas instituições escolares.

O terceiro eixo de desmonte é o fim da universalização do acesso ao ensino. Este processo vem ocorrendo através de diferentes iniciativas lideradas pelo governo federal. Sob o discurso de modernização de uma educação defasada para as necessidades do século XXI, o chamado “novo ensino médio” é, na verdade, uma desregulamentação que permite que cada estado federado tenha seu próprio sistema educacional, reforçando os traços anárquicos do sistema. Assim, por detrás da pregação das vantagens da flexibilização curricular baseada no desenvolvimento de competências, o Estado aprofunda a desuniversalização do ensino ao retirar o mínimo lastro intelectual e cultural comum que o sistema escolar deveria garantir independente da região, do município, do tipo de escola e da classe social. Enquanto isso, sem qualquer proposta pedagógica a não ser a ênfase na autoridade militar, o governo federal, em associação com seus aliados nos estados, vem convertendo escolas públicas em escolas cívico-militares, que funcionam como um novo feudo de poder e cabide de empregos para militares da reserva.

No âmbito do Inep e da Capes, o processo segue o mesmo sentido. A preocupação do governo parece ser prioritariamente ideológica. Nos últimos dois anos, foram realizadas diversas tentativas de destituir o Inep de certas prerrogativas, como a de atualizar o Ideb e gerir o banco de questões do Enem. Também é notável o esforço de desmonte do Enem, produzindo desinformação, reduzindo as isenções de taxa de inscrição, deixando estudantes sem lugar no dia da prova e fazendo às pressas um exame digital sem a preparação adequada. Algo parecido vem ocorrendo com a Capes, que, além do apagão de dados da plataforma Lattes, também teve destituído seu conselho técnico-científico.

Por fim, o sinal de que está em curso um processo de desmonte do sistema educacional brasileiro é o completo abandono do Plano Nacional de Educação (PNE) como política de Estado. O PNE, que deveria ser o eixo estratégico, deixou de ser mencionado e de ter qualquer papel nas ações do governo. Como consequência, os relatórios de monitoramento de implementação do PNE publicados pelo Inep mostram que a perspectiva é que menos de 15% das metas sejam cumpridas até 2024.

Ou seja, sobram indícios de que o que está ocorrendo no Brasil hoje é uma sistemática desestruturação do sistema educacional. Este processo perpassa diversas dimensões, como a redução do financiamento público, a terceirização de atribuições da União para estados e municípios e para o setor privado e a desestruturação dos órgãos formuladores de políticas para a educação.

2. Multiplicação de mercadorias e nichos de mercado

A contrapartida da desestruturação do sistema educacional é que as grandes corporações vão ocupando os espaços abertos pela desregulamentação e desmonte do setor público. Nossa segunda tese é a de que a abertura desses espaços ao setor privado vem potencializando o surgimento de novas mercadorias e nichos de mercado. Este movimento não se constrói no vazio, está ligado ao fortalecimento do setor privado nos últimos 20 anos. Uma etapa importante deste processo foi a consolidação de dualidade ensino presencial / EaD no nível superior, que permitiu às empresas educacionais trabalharem com nichos distintos, ou seja, um mercado de massas que oferece mercadorias de baixo custo (cursos EaD) e um mercado mais elitizado (cursos presenciais). A novidade é que o contexto da pandemia abriu novas possibilidades de negócios.

É verdade que as grandes corporações da educação sofreram com dificuldades e restrições durante a pandemia. Os grandes grupos de capital aberto (Cogna, Yduqs, Ânima, Ser, Bahema, Cruzeiro do Sul, Vasta, Afya e Arco) foram afetados pela inadimplência, pela evasão de estudantes, pelas dificuldades financeiras e outros problemas. Mas estas restrições também permitiram que eles avançassem em certas mudanças estruturais. A principal delas parece ser a própria multiplicação de mercadorias educacionais e o surgimento de novos nichos.

Em primeiro lugar, o ensino remoto e as modalidades de ensino híbrido que cresceram neste período aparecem como complementares ao ensino presencial, ao contrário do que ocorria anteriormente com a dicotomia ensino presencial / EaD. No entanto, longe de representar uma redução da diversidade de nichos de mercado, se passa o oposto: a hibridização não representa uma homogeneização das mercadorias e sim o aumento de suas modalidades. Surgiram novas camadas na hierarquia de produtos educacionais. Além do mercado massivo dos cursos 100% EaD, há um conjunto de modalidades híbridas, assim como surgiu um novo setor “Premium” com cursos de alto valor de mercado, mais horas de atividades presenciais e uso de tecnologias mais avançadas, especialmente na área de saúde.

Em segundo lugar, o movimento das mercadorias educacionais durante a pandemia aponta para um maior grau de integração de atividades que antes eram produtos independentes. No caso dos materiais didáticos isso é muito claro. Se nos anos 1990 os livros eram o carro chefe desse nicho, agora eles estão sendo suplantados pela venda de pacotes educacionais completos, que incluem formação docente, oferta de conteúdos, metodologias de ensino, processos avaliativos e plataformas digitais, e todas essas partes estão integradas. Guardadas as devidas proporções e especificidades, é possível traçar um paralelo entre o que está se passando atualmente na educação e o que ocorreu no setor agrário brasileiro décadas atrás, quando foram introduzidos no campo os pacotes tecnológicos, que abarcavam desde a oferta de insumos agrícolas até a venda de maquinário. No caso da educação, as mercadorias produzidas pelas empresas deixaram de ser produtos discretos (um livro, um jogo didático, um método de ensino, etc) e passaram a ser pacotes voltados para públicos específicos.

Mas, também neste caso, esta integração produtiva não leva a uma redução do número de mercadorias. Ao contrário, ela potencializa sua multiplicação, porque a educação é cada vez mais uma atividade instrumental exigida pelas distintas atividades sociais e profissionais. E como o nível de fragmentação dessas demandas aumentou, o número de mercadorias educacionais também cresceu. Soma-se a isto o fato de que o setor privado alimenta o desenvolvimento do fetichismo da mercadoria. Por consequência, percebe-se uma crescente importância da estética e da identidade das marcas, do uso do marketing e do apelo ao uso da tecnologia na educação para induzir novas pulsões de consumo.

Como exemplo, podemos tomar alguns mercados e serviços explorados hoje pelas maiores corporações educacionais do país. Seguem dois casos de como isto está ocorrendo. A Cogna controla duas editoras (Ática e Scipione), uma plataforma com cursos on-line para escolas associadas (Plurall), uma metodologia de ensino de idiomas (Red Balloon), um programa de desenvolvimento de “competências sócio-emocionais” (Líder em mim), e diversas metodologias e marcas de ensino para escolas associadas do nível básico (Anglo, PH, Maxi, Ético). Outra grande corporação que tem desenvolvido marcas e produtos específicos para determinados mercados é a Ânima. Além dos mercados massivos de ensino superior, esta corporação investe também em marcas voltadas para nichos muito específicos, como a Ebradi, no ensino superior de Direito, a Le Cordon Bleu São Paulo, na área de Gastronomia e a HSM, direcionada para a educação corporativa.

Como se vê, além dos produtos, o mercado consumidor também se diversificou, incluindo indivíduos de diferentes idades (crianças, adolescentes e adultos), empresas, escolas públicas que assinam convênios com grupos corporativos e escolas privadas que compram plataformas, pacotes e metodologias de ensino, etc. O emprego do termo “ecossistema” no discurso dessas empresas, para além da naturalização sugerida, revela que sua área de atuação abarca uma ampla variedade de empresas subsidiárias, de nichos de mercado e de mercadorias.

3. Parasitismo corporativo

Como mostramos acima, a desestruturação do sistema educacional teve como contrapartida a abertura de novos nichos de mercado para a iniciativa privada, levando a uma multiplicação de mercadorias educacionais. Neste caso, como já argumentamos, o Estado cumpriu sobretudo um papel negativo, de desmonte do sistema educacional, o que potencializou a criação de novos espaços para o setor privado. Porém, este processo tem outra faceta. Nossa terceira tese é a de que, ao contrário do que propaga o ideário neoliberal, que vê o Estado como problema, as grandes corporações educacionais parasitam organicamente o Estado, beneficiando-se de sua estrutura, de suas políticas e recursos. Ou seja, o setor privado não cresce apenas onde o Estado está ausente, mas também onde ele está presente. Neste sentido, os investimentos estatais não competem com os investimentos privados, pelo contrário, os sustentam. Isso demonstra que o Estado brasileiro funciona também como organizador dos interesses empresariais na educação. Neste tipo de relação, o público e o privado se confundem, pois não se trata de um processo de privatização das instituições, no sentido jurídico e formal do termo, uma vez que as instituições permanecem sendo públicas, ainda que passem a ser colonizadas por interesses privados.

O parasitismo corporativo se dá através de diferentes modalidades. A forma mais conhecida e já bastante explorada pela literatura da área são as famosas Parcerias Público Privadas (PPPs), em que o Estado contrata serviços de entidades privadas para serem executados no setor público. Este processo vem ocorrendo progressivamente desde pelo menos os anos 1990 e envolve uma série de projetos e programas formulados por institutos privados, incluindo obras de infraestrutura, implantação de laboratórios, cursos de formação de docentes, propostas de aprendizagem, métodos de gestão, métodos avaliativos, oficinas temáticas para estudantes, formulação de indicadores de desempenhos estudantil, concessão de premiações, etc. Outra característica das PPPs é que elas ganharam uma enorme capilaridade no território nacional, abrangendo principalmente as redes públicas municipais e estaduais. Tradicionalmente a área mais antiga onde este tipo de operação ocorre é a educação infantil, em que o sistema de convênios entre prefeituras e pequenas empresas supostamente filantrópicas permite com que o poder público repasse verbas para as empresas ofertarem vagas em creches.

Nos anos 2000 o sistema de PPPs avançou para um arranjo de compra de vagas no setor privado por parte do Estado. Esta segunda modalidade de parasitismo tomou corpo no ensino superior através do Prouni, quando vultosos recursos públicos foram repassados para grandes corporações a fim de garantirem vagas para estudantes oriundos de escolas públicas, de baixa renda, negros e indígenas. Vale ressaltar que a face progressista deste esquema – que permitiu uma ampliação do acesso de jovens da classe trabalhadora ao ensino superior, e os investimentos na rede pública, especialmente através da multiplicação dos Institutos Federais -, acobertou temporariamente o caráter parasitário da relação entre o privado e o público. Mas, na conjuntura mais recente, agora de precarização do setor público, este parasitismo fica mais evidente. Prova disso é que, recentemente, figuras como o governador de São Paulo João Dória (PSDB) e o ministro Paulo Guedes passaram a defender o sistema de voucher concedido pelo Estado como forma de ampliar a oferta de vagas para estudantes de baixa renda na educação infantil, bem como no ensino superior, com o ministro dizendo ser favorável à substituição do FIES pelo sistema de voucher.

A partir deste quadro constata-se a existência de uma contradição entre a lógica de austeridade pregada pelos ideólogos neoliberais que estão no poder e parte dos interesses corporativos. Afinal, o parasitismo das corporações torna estratégica tanto a manutenção do fundo público, quanto a apropriação, que frequentemente os neoliberais lutam para fazer minguar. Observa-se um enorme interesse dos grupos privados no incremento do fundo público para a educação, como é o caso do Fundeb, pois é este fundo que financia a PPPs no âmbito do ensino básico. Com base nisso, entende-se porque durante a regulamentação no Novo Fundeb, em 2020, as corporações disputaram a possibilidade de receberem repasses diretos deste fundo. Mesmo que não tenham vencido esta batalha, o acesso indireto continua vigente nos níveis municipal e estadual, por meio das PPPs.

O contexto da pandemia também favoreceu o incremento de novas modalidades PPPs em todas as esferas do ensino. Um dos ramos onde este parasitismo mais cresceu foi na prestação de serviços de tecnologia digital, como o aluguel de plataformas e métodos para as modalidades de ensino remoto. Cada vez mais o interesse das grandes corporações passa pela captura das tecnologias da informação e comunicação que conectam as escolas públicas. Um levantamento recente realizado pelo Observatório Educação Vigiada mostra que as GAFAM (acrônimo de Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) controlam a maior parte dos serviços digitais em instituições públicas de ensino superior do Brasil. Nas redes estaduais e municipais não encontramos nenhum levantamento deste tipo, mas acreditamos que a situação não seja muito diferente. A evidência de que a rede pública de ensino básico tem um enorme potencial de mercado é o envolvimento direto da Fundação Lemann e do Instituto Escola Conectada no diagnóstico das condições de acesso à internet nas escolas, através de uma articulação que envolve o Estado e as corporações, denominada Grupo Interinstitucional de Conectividade na Educação (Gice).

4. Radicalização das desigualdades

Em uma realidade social tão desigual como a brasileira, desde pelo menos o período varguista o acesso à educação tem sido um dos poucos caminhos para os setores mais precarizados da classe trabalhadora alcançarem condições de vida mais decentes. Isso é o que chamamos de ascensão social, que neste caso não é uma mudança de classe, mas a ascensão de indivíduos oriundos de estratos mais baixos em direção a estratos mais elevados no interior da própria classe trabalhadora. Numa realidade social como essa, a desestruturação do sistema educacional, o aprofundamento da mercantilização e o parasitismo corporativo têm efeitos sociais trágicos. A nossa quarta tese é a de que a pandemia funcionou, também neste caso, como um catalisador que contribuiu para agravar as desigualdades pré-existentes. Diversas clivagens se acentuaram neste período.

Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que no Brasil as instituições escolares compõem o aparato de assistência social para os setores mais pobres. Não é novidade pra ninguém que muitas crianças e adolescentes têm acesso ao mínimo padrão alimentar graças à escola. Durante a pandemia, a fome no Brasil cresceu. Em 2020, mais da metade dos domicílios brasileiros sofreu algum grau de insegurança alimentar. Neste contexto, o fechamento das escolas, sem uma política pública adequada, contribuiu para agravar ainda mais o problema. Além da fome, especialistas em nutrição alertam para o aumento da obesidade infantil em virtude do consumo de produtos industrializados mais baratos do que os alimentos in natura.

Outra desigualdade que se intensificou foi o contraste entre escolas voltadas para a população mais pobre e aquelas dirigidas aos setores médios e à elite. Nota-se que parece ter havido uma polarização crescente entre a rede de educação básica pública, de acesso gratuito, e as escolas privadas de elite. No caso de São Paulo, enquanto os setores médios abandonaram as escolas particulares porque não tinham condições de continuar pagando as mensalidades, as escolas de elite não tiveram problemas de inadimplência no ano de 2020, apesar de cobrarem mensalidades que chegam a ultrapassar R$ 8.000.

Num momento em que o processo educacional está mais dependente do uso das tecnologias da informação e comunicação, a desigualdade no acesso a estes recursos vai se tornando um fator fundamental de exclusão de uma enorme parcela da população. Alguns exemplos são notáveis. No Enem de 2019, os estudantes sem computador e sem acesso à internet tiveram desempenho médio inferior aos demais. Em 2020, já no contexto da pandemia, cerca de 42% dos inscritos no Enem não tinham computador em casa, e em torno de 25% não tinham acesso à internet. A situação é mais preocupante se levarmos em conta a conversão massiva da educação em mercadoria por meio da expansão das modalidades de ensino à distância. Dados do IBGE mostram que o acesso à educação privada está fortemente condicionado às ferramentas digitais, como televisão, celular, computador, tablet e internet, enquanto a educação pública permite maior acessibilidade àqueles que não dispõem deste tipo de tecnologia.

Às dificuldades de acesso a tecnologias somam-se outras desigualdades históricas pré-existentes. Um dos processos em curso é o aumento das barreiras que impedem que jovens dos setores mais pobres consigam alcançar o ensino superior. Parte do problema deve-se à intensificação da evasão escolar. Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha aponta que em 2020 a evasão foi da ordem de 8,4%, sendo de 16% no ensino superior, 10% no ensino médio e 4% no fundamental. Como se vê, a pandemia agravou o problema, já que esses índices foram bem mais elevados do que os verificados em 2019. E a realidade pode ser pior do que dados indicam, pois com o cancelamento do censo populacional e sem ter ainda os dados consolidados do Censo Escolar de 2021, as estatísticas para 2020 e 2021 são imprecisas.

Para aqueles que, com dificuldades, conseguem finalizar o ensino médio, há um segundo ponto de corte. Neste caso, a desestruturação e desmoralização do Enem, os ataques às políticas de cotas e a redução dos recursos destinados ao Prouni e ao FIES estão revertendo o processo iniciado nas décadas anteriores que proporcionaram uma mínima condição de equidade para chegar à universidade. Dados do Censo do Ensino Superior indicam que, em 2019, 75% dos estudantes universitários estavam matriculados em instituições privadas e, desses, 90% pertenciam às classes C, D e E. Dois anos depois, em plena pandemia, os dados do Enem de 2021 indicavam que estava em curso um novo movimento de elitização do ensino superior, com a redução da inscrição no Exame de estudantes oriundos de escolas públicas e bolsistas de escolas particulares.

Para aqueles que iniciaram seus estudos, o cenário de pandemia tornou muito mais difícil conquistar o diploma. Em primeiro lugar, porque a crise econômica, o aumento do custo de vida e o desemprego impediram que muitos estudantes vinculados a instituições privadas continuassem pagando as mensalidades, o que fica evidente pela redução do número de matrículas e pelo aumento da inadimplência. E, finalmente, para 52% dos estudantes que acessaram o financiamento estudantil e conseguiram se formar, e agora estão desempregados ou com baixos salários, a dívida do FIES se torna um fardo impossível de carregar.

5. Trabalho e educação: a convergência perversa

O quadro pintado até aqui é extremamente trágico e desanimador. No entanto, não é possível deixar de notar que existem contradições nesta realidade. Uma delas já foi apontada: enquanto as corporações beneficiam-se da retirada do Estado e da desestruturação do sistema educacional, elas também precisam que o Estado continue mantendo os fundos públicos que alimentam seu parasitismo. Ainda assim, esta não é uma contradição insolúvel e não devemos sucumbir à visão simplificada de que a situação atual é obra exclusiva dos governantes e não representam interesses orgânicos do empresariado. Afinal, há uma coerência de fundo em todo este processo. Nossa quinta tese é a de que a situação da educação brasileira é radicalmente coerente com a realidade do mundo do trabalho nos dias atuais. E a base desta coerência é o sistemático rebaixamento do padrão civilizatório da classe trabalhadora brasileira. Mas como isto ocorre e qual é o papel da educação?

É importante compreender que entre educação e trabalho há uma dupla determinação. Por um lado, a atividade educacional contribui para a formação da força de trabalho. Esta contribuição é multidimensional, tendo ao mesmo tempo caráter técnico, político e ideológico. Em caminho inverso, porém, a própria atividade educacional é diretamente afetada pelas condições do trabalho, já que os educadores estão submetidos à dinâmica e à lógica do mercado, e isso afeta invariavelmente o tipo de ensino praticado.

Podemos, então, começar pela pergunta: de que sociedade e de que tipo de trabalho estamos falando? Em primeiro lugar, o Brasil é um país que não desenvolve tecnologia própria e se satisfaz em importar matrizes tecnológicas obsoletas e inadequadas para as nossas necessidades. Em segundo lugar, é uma sociedade que desde pelo menos os anos 1980 abandonou a pretensão de tornar-se uma potência industrial moderna, e vem se desindustrializando progressivamente. Porém, longe de estarmos transitando para uma sociedade de serviços desenvolvida, estamos recuando aceleradamente para um padrão de desenvolvimento extrativista e agroexportador, combinado a uma sociedade de serviços precários de baixo valor agregado. Por isso, há também uma coerência entre o modelo educacional e o desmonte da política de ciência e tecnologia em nosso país.

Ao contrário das nações desenvolvidas, que são capazes de manter um patamar mínimo de civilidade em seu padrão de exploração, mesmo em contextos de crise, as zonas de capitalismo periférico são pressionadas a rebaixar o custo da força de trabalho como forma de recompor suas taxas de lucro. Este é o caso brasileiro, onde o desmonte do sistema educacional, a expansão privada e a radicalização das desigualdades se adequam à tendência de redução do custo da força de trabalho, garantindo com isto a manutenção das taxas de lucro do capital. É isso o que chamam de uberização na periferia do capitalismo: temos hoje um país marcado pela superexploração, precariedade e informalidade, em que o custo da força de trabalho não é pago, levando a um recuo geral do padrão civilizatório de nossa formação social.

Este caminho não foi construído naturalmente. Como bem sabemos, a atuação do Estado foi decisiva, especialmente para a redução forçada do custo da força de trabalho. A reforma trabalhista, a reforma da previdência e a Emenda Constitucional 95, que limita o Teto de Gastos, foram os principais mecanismos criados para reduzir os gastos diretos do capital com o trabalho, por meio do congelamento real dos salários, da flexibilização da jornada, da legalização do trabalho temporário e da pejotização das relações trabalhistas. A superexploração se completa com a intensificação da inflação, que se por um lado tende a elevar o valor de reprodução da força de trabalho, por outro empurra para cima a taxa de lucro do capital. Neste cenário, entende-se porque o rebaixamento forçado dos salários cumpre uma função anticivilizatória, uma vez que se rebaixam as condições materiais em que os trabalhadores vivem a um patamar inferior ao das necessidades humanas básicas.

Mas o que a educação tem a ver com isso? Há uma primeira dimensão óbvia. De que serve formar físicos espaciais e engenheiros nucleares num país que não tem projeto espacial nem desenvolve tecnologia nuclear? Ou formar sociólogos num país que abandonou qualquer pretensão de planejamento social? Ou seja, de que vale formar mão de obra altamente qualificada num país cuja principal atividade produtiva são o extrativismo, a produção de commodities e o comércio de bens de baixo valor agregado? E na medida em que quadros deste tipo são formados, a tendência é a “fuga de cérebros” para o exterior, como vem ocorrendo nos últimos anos, já que aqui não há qualquer perspectiva de realização das expectativas desses profissionais. Neste sentido, um mercado de trabalho precário tende a reforçar uma educação precária.

O quadro no Brasil é tão frágil que a expectativa de que a qualificação profissional através do estudo vai garantir algum tipo de ascensão social perde força. Ao mesmo tempo, o imperativo da sobrevivência, que impõe a necessidade de ingressar o mais cedo possível no mercado, e que vem produzindo inclusive o aumento do trabalho infantil, faz com que o estudo se torne uma atividade concorrente ao trabalho e não preparatório e complementar a este. Ou seja, estudar passou a ser visto como “perda de tempo”.

Mas o vínculo entre educação e trabalho também se dá de forma inversa. Afinal, a redução geral dos salários, a flexibilização das relações trabalhistas e a retirada de direitos beneficiam diretamente o empresariado educacional. Os profissionais da educação hoje estão submetidos às mesmas condições de superexploração da classe trabalhadora em geral, pressionados pelo desemprego, pelo aumento da carga de trabalho em virtude da desregulamentação da jornada – potencializada pelo emprego das tecnologias digitais e pelo trabalho domiciliar – e por baixos salários. Com isso, uma educação já marcada pela precariedade tende a se reproduzir no tempo caso sobre ela não incida uma força política capaz de tirá-la da inércia. Ainda mais se considerarmos que os quadros docentes, que reproduzem os novos quadros, são formados por esta mesma estrutura. Neste quesito estamos mal: hoje, a maioria dos docentes brasileiros são formados por instituições privadas, em cursos de licenciatura EaD de baixa qualidade. Do ponto de vista das corporações educacionais, esse é um grande negócio, já que eles estão formando sua própria força de trabalho barata e precária. Portanto, seja como atividade formadora de trabalhadores, seja como produto do trabalho docente, a educação e o trabalho no Brasil vivem uma conjuntura de convergência perversa.

6. Desterritorialização, individualização e pedagogia do algoritmo

A nossa sexta tese é a de que a educação brasileira passa por um movimento geral de desterritorialização, individualização e submissão ao que podemos chamar de pedagogia do algoritmo. Estes três movimentos são complementares e vão no sentido de esvaziar o conteúdo comunitário do processo de ensino-aprendizagem e de reforçar suas tendências individualistas.

Ao longo desses quase dois anos de pandemia, o território escolar, se não deixou de existir, ficou sob suspensão. Enfraqueceram-se as relações dos educadores entre si, dos estudantes entre si, bem como a relação professor-aluno. Ou seja, a comunidade acadêmica se enfraqueceu enquanto tal. O mesmo vale para as funções diversas que as instituições de ensino desempenham nos territórios onde estão inseridas, como a sociabilidade, a alimentação saudável e regular, a prática de atividades desportivas, o combate a informações falsas, a prevenção de doenças e de violências, etc. De tal forma, no regime remoto a atividade educacional se resumiu à tentativa de ensino de determinados conteúdos, e mesmo assim de maneira muito precária.

Ao mesmo tempo, houve uma tendência de substituição do papel integrativo do território pelas tecnologias digitais. Enquanto as crianças e adolescentes permaneciam em casa, rompendo os laços de convívio propiciados pela escola e pela universidade, as plataformas digitais apresentavam-se como a única mediação viável para que as atividades de ensino-aprendizagem não fossem completamente interrompidas. Neste quadro, mesmo depois do retorno das aulas presenciais, não está claro em que medida a ruptura da territorialidade e o papel das tecnologias digitais vieram para ficar.

Uma outra dimensão desse processo é a intensificação do fetichismo da tecnologia. É curioso notar que, apesar de sermos meros operadores de sucatas tecnológicas importadas, passamos a acreditar que estamos integrados à revolução tecnológica global. Esta tendência não se impôs naturalmente. Parte dela se explica pelos interesses das grandes corporações de comunicação, as GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft), enormemente beneficiadas pelo seu papel estratégico como instrumentos de mediação social durante a pandemia. Evidentemente, as contradições subsistem, ainda mais se levarmos em conta a precariedade tecnológica brasileira, onde grande parte dos jovens não têm acesso a computador e à internet.

Mas o fetichismo da tecnologia também se explica pelo novo lugar que a tecnologia vem ocupando na prática didático-pedagógica. Neste contexto, o experimento realizado pelo grupo Laureate no início da pandemia, de introduzir um sistema de inteligência artificial para corrigir provas dissertativas, é apenas o caso mais emblemático e extremo da pedagogia do algoritmo. Pois, na verdade, da educação infantil ao ensino superior, o papel dos educadores está sendo progressivamente reduzido em todos os níveis. No seu lugar, a educação plataformizada dominada pelas grandes corporações impõe o uso de pacotes fechados que abarcam todas as etapas do ensino-aprendizagem, incluindo a formação de professores, as ementas das disciplinas, o método pedagógico, o material didático e o processo avaliativo, enquanto a interação humana da aprendizagem fica restrita à assessoria de um “tutor”. Isto não apenas incrementa o desemprego e a precarização do trabalho docente como também reduz drasticamente a qualidade do ensino. Trata-se de um processo de estandardização da mercadoria educacional que passa a ser produzida em série e em escala.

Neste contexto, as tecnologias digitais oferecem condições privilegiadas para a imposição autoritária de uma única visão de mundo através dos algoritmos. Isso mostra que o suposto aumento de autonomia do estudante que as tecnologias trazem não passa de propaganda enganosa. Ao mesmo tempo em que quebram o sentido comunitário, a desterritorialização e o novo papel da tecnologia contribuem para reforçar o liberalismo e o individualismo aparentemente fora de lugar da nossa formação social. Com isso, a educação deixa de ser vista como um direito humano, como um bem comum ou mesmo como condição de exercício da cidadania no âmbito do Estado-nacional, e passa a ser um investimento de caráter privado, individual ou, no máximo, de interesse familiar. Não é por acaso que as propostas de implantação do ensino domiciliar (homeschooling) florescem neste terreno.

É nesta realidade de uma formação social dependente e subdesenvolvida que passam a ser difundidas propostas pedagógicas alicerçadas na ideia de empreendedorismo, como se a livre-iniciativa pudesse possibilitar algum tipo de ascensão social. O mesmo sentido tem a proliferação da chamada educação financeira, controlada pelas instituições bancárias, cujo objetivo principal é legitimar a dominação do capital financeiro sobre a economia brasileira e propagar os fundamentos do liberalismo e do individualismo. No Brasil, os principais disseminadores desta perspectiva didático-pedagógica são os institutos “sociais” como Lemann, Unibanco, Ayrton Senna e Movimento Todos Pela Educação. Em contrapartida, enquanto predomina um espírito de “salve-se quem puder” no espaço escolar, deixa-se de discutir os grandes problemas nacionais e de se propor projetos coletivos alternativos de sociedade.

7. Um vazio de projeto educacional

Tomando o quadro geral apresentado até aqui, fica evidente o vazio de projetos educacionais no momento atual. Mais do que isso, nossa última tese é a de que este cenário representa uma mudança histórica de longa duração, que altera o parâmetro a partir do qual vinha sendo entendido o papel social da educação no Brasil ao longo do último século. Isto pode ser verificado se analisarmos as principais diretrizes que orientam a atual política educacional. Qual é a base teórica e político-pedagógica que orienta o governo nos temas educacionais? Refletindo sobre o grau de coerência das ações e medidas tomadas pelo Ministério da Educação só conseguimos encontrar uma: a doutrina de guerra cultural, que combina ideias da extrema direita estadunidense, da direita militar brasileira e do olavismo.

A guerra cultural no século XXI é basicamente uma doutrina de combate difuso na esfera dos valores, ideias e concepções de mundo através da manipulação massiva de informações com o uso de novas tecnologias digitais. Ela tem fundamento xenófobo, racista, sexista e fascista, pois apresenta um grupo como guardião de um mundo cristão-ocidental idealizado e ameaçado pelo pretenso avanço do anticristianismo, do comunismo, do ateísmo, da depravação sexual e de culturas estrangeiras alienígenas. Nesta perspectiva, as escolas e universidades são vistas como lugares privilegiados para a difusão e a infiltração dessas forças estranhas que ameaçam a tradição. Daí a desconfiança da liberdade de pensamento, da ciência, do intelectualismo e do pensamento crítico característicos do espaço educacional. É neste caldo reacionário que propostas como Escola Sem Partido, Future-se, escolas cívicos-militares e homeschooling se encontram e ganham coerência.

Mas ao contrário de fundamentar um projeto educacional, o lastro ideológico da guerra cultural apenas reforça as tendências destrutivas e desagregadoras apresentadas anteriormente. Com isso, entende-se porque a doutrina da guerra cultural adequa-se bem ao ideário neoliberal vigente. Afinal, nem um nem outro se apresenta como construtor do que quer que seja. Ambos partem de uma realidade ideal pré-existente que precisa ser defendida de forças nefastas: o neoliberalismo, defendendo um livre-mercado idealizado contra os ataques da regulamentação estatal; e a guerra cultural, defendendo os valores da família cristã-ocidental idealizada sob ataque das forças ameaçadoras do globalismo. Essas são as bases do vazio de projeto educacional em que nos encontramos.

É claro que é sempre possível argumentar que a ausência de projeto é o próprio projeto. Isso é verdade num sentido mais amplo, especialmente quando atentamos para os interesses das grandes corporações. Porém, insistimos que não há hoje qualquer coisa que se aproxime de um projeto educacional no sentido forte e positivo do termo. Pelo menos não se analisarmos em perspectiva histórica o desmonte que está em curso. Desde pelo menos o advento da educação prussiana no século XVIII, a atividade educacional tem sido pensada a partir de suas contribuições e funções específicas. Enquanto para os conservadores estas funções seriam o desenvolvimento da sociedade capitalista e a conformação ordenada do Estado-nacional; para os revolucionários, seriam criar as bases políticas, ideológicas e culturais para a superação dessa ordem e para a construção de um novo Estado. Foram essas matrizes que deram origem às reflexões sobre a contribuição da escola para a preparação e o disciplinamento para o mundo do trabalho, para o desenvolvimento econômico, para a formação política e ideológica dos cidadãos, para o avanço da ciência, para a elevação do nível cultural da sociedade, etc.

No contexto brasileiro, foi somente nos anos 1930 que este movimento tomou corpo, com os escolanovistas. Ao longo do último século, a ideia de que a educação era um pressuposto da integração econômica e política e deveria converter-se um direito de todos os cidadãos foi compartilhada por conservadores, liberais e revolucionários. A título de exemplo, recordemos que enquanto a educação popular de Paulo Freire visava construir as bases para a participação política das massas camponesas miseráveis do interior do país, a educação tecnicista da ditadura militar visava formar mão de obra qualificada para o desenvolvimento industrial. E, a despeito do abismo entre essas duas perspectivas, havia algo em comum: ambas se colocavam na arena dos projetos de desenvolvimento nacional em disputa, em que a educação teria um papel crucial a cumprir.

Durante os governos de Lula da Silva (2003 – 2010) e Dilma Rousseff (2011 – 2016) a atuação estatal em relação à educação também se sustentou num projeto educacional. Tratava-se, por um lado, de elevar o nível de cultura geral da população, ampliando principalmente o acesso das massas historicamente excluídas do sistema educacional por meio do fortalecimento da rede do ensino básico e do ensino superior; e, por outro lado, buscava-se potencializar o papel da educação como indutora de um processo de desenvolvimento nacional, articulado com o desenvolvimento das diferentes regiões do país, e buscando maiores níveis de autonomia relativa do Brasil no âmbito da economia global. Em todos os casos, as instituições públicas e privadas eram vistas como complementares e não concorrentes. A partir deste projeto mais amplo de “Pátria educadora” foi formulado um conjunto de políticas específicas, como Prouni, FIES, Pronatec, criação de Institutos Federais, destinação dos royalties da exploração do petróleo para financiar o sistema educacional, etc.

Agora, a situação é completamente diferente. A contribuição das instituições escolares para a sociedade é vista pelos agentes estatais sobretudo pelo seu aspecto negativo, como aquilo que deve ser tolhido, controlado ou destruído para não prejudicar o lastro cultural cristão-ocidental que se desenvolve em outros espaços da sociedade, principalmente nas igrejas. E a verdade é que não há no momento, por parte dos setores progressistas, nenhum projeto capaz de se colocar como alternativa a este não-projeto vigente. No momento em que finalizamos este texto, para além do triste diagnóstico realizado até aqui, essa ausência de projeto educacional é a nossa maior tragédia.

Tricontinental

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