A política da morte quer escolas abertas

Prejuízo causado pela ausência de aulas presenciais é real. Mas multiplicar contatos físicos agora, quando pandemia se alastra, é irresponsabilidade extrema. Quem assumirá o real risco à vida de professores e funcionários?

As catacumbas da cidade de Paris reúnem cerca de milhares de ossos, mais ou menos correspondentes a 6 milhões de cadáveres. Eles foram ali depositados, empilhados uns sobre outros, a partir do último quartil do século XVIII, em função da explosão de contaminação da população, decorrente da excessiva decomposição de matéria orgânica. Na entrada das catacumbas se lê: “Pare. É aqui o império da morte”.

O Brasil corre a passos largos para se afirmar como um império da morte. Após um ano de pandemia e inação governamental, é inacreditável que tenhamos gestores, educadores e pais implicando-se com o compromisso de volta às aulas presenciais. Quem já foi a um oftalmologista e teve de dilatar a pupila sabe do efeito: visão embaçada durante algumas horas. A sensação que tenho é que o brasileiro teve a pupila da razão dilatada por colírios de ignorância e de insanidade inconsequente. Do contrário, alguns dados bastariam para resistir a qualquer retorno às aulas.

Em 7 de janeiro de 2021, o Brasil registrou 200.498 mortes por Covid-19, ou seja, número estimado em quase um ano de pandemia. Mas em apenas 52 dias, desde então, praticamente 55 mil mortes foram registradas. Se mantivermos esse ritmo, em mais 5 meses teremos mais 200 mil mortes por Covid-19. É evidente a explosão significativa do império da morte entre nós. O gráfico abaixo, fornecido pelo Conselho Nacional de Secretaria de Saúde – CONAS, comprova isso:

O mesmo CONAS revela outros dados assustadores. A julgar pela última semana de fevereiro, estamos no auge da contaminação e na pior média móvel de mortes desde o início da pandemia. Ambas não indicam sinais de queda. Quer dizer, enquanto o planeta mitiga dados associados à contaminação e à morte por covid-19, o Brasil experimenta a explosão de seus índices, num exemplo de contramão horripilante. Acesse tudo aqui.

 

Além disso tudo, o Brasil continua sendo um dos piores países em testagem por milhão de habitante. Só na América Latina, o País está atrás de Argentina, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai e outros. Sem testagem os números de contaminados são mascarados e falsificados. Comprove aqui.

Sob efeitos do colírio da ignorância, apenas 3% da população foi vacinada. Ainda assim, há secretários estaduais de educação que tomam – reparem bem leitor/a – Israel, com vacinação maciça de sua população, como termo de comparação para justificar a volta às aulas de forma presencial. Confira aqui.

Os dados acerca do colapso dos hospitais estão escritos em letras garrafais. Minas Gerais, que insiste na retomada das aulas, suspendeu cirurgias eletivas justamente por conta disso, há cerca de 15 dias. Nem por isso assume postura contrária ao absurdo. Houve manifestação na cidade de São Paulo para o retorno das aulas, com direito a buzinaço, balões azuis e bandeira do Brasil – mas sem sair dos veículos, era a regra, claro, para se evitar contaminação! Mas a dilatação da pupila não permite enxergar o desastre em curso.

É certo que pais estão esgotados com toda a dinâmica de demanda de acompanhamento pedagógico para as quais não estão preparados. É certo que muitos lares sequer possuem infraestrutura física e tecnológica para aulas emergenciais remotas, como tem acontecido. É certo que gestores se veem pressionados e estes pressionando, como no infortúnio de Sísifo, o corpo docente vala abaixo. Entretanto, é mais do que certo que nada disso deveria estar acima da realidade. E se a realidade é de tempo de exceção, não são as regras casuais que devem reger nossa postura, porém, aquelas que correspondem à exceção.

Ora, qualquer retomada de aula presencial a essa altura é uma cumplicidade com o império da morte. E aqui, sequer menciono universidades que se enquadram no mesmo delírio volitivo das aulas presenciais. Nem se pode dizer que é argumento plausível o fato de escolas tomarem todo cuidado com espaço, higiene, uso de máscaras etc. As pessoas precisam se locomover; os alunos precisam tirar máscara para se alimentar nas escolas e idem os docentes; a nanoescala do vírus está além de tudo isso. O fato condutor deveria ser: sem imunização não há aula presencial. Como se sabe – se sabe? – basta um lapso, uma gotícula de contaminação, para talhar o otimismo dos cegos que estão guiando outros cegos.

As escolas se responsabilizarão por eventuais contaminações? Se privadas, arcarão com custos de tratamento, internação e, tomara que não, velórios? Obrigando professores a voltarem, quem é o agente responsável? Quem está assumindo o risco?

Ainda que nada disso seja considerado, uma coisa é fato. O torniquete do império da morte está prestes a dar outro giro no Brasil. As escolas estão prestes a se tornar matadouros, no lugar de instituições de ensino e de socialização dos valores da vida. Nesse caso, o Brasil também poderia se identificar com outro lema tanatológico. Na Capela dos Ossos, em Évora, Portugal, encontramos outro sentido que pode muito bem aqui calhar: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”.

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