Quando o interesse econômico prevalece sobre o direito à vida plena e à saúde coletiva

O Congresso Nacional acaba de esvaziar a garantia dada pela Lei Nº 14.151, transformando em exceção a proteção às gestantes durante a pandemia

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Dentre as escassas normas de proteção social contra a letal pandemia, aprovadas pelo Congresso Nacional, desponta-se a Lei Nº 14.151, de 12 maio de 2021, que encerra seu conteúdo em um único artigo – seu  Art. 2º, trata apenas de sua vigência –, garantindo, de forma incondicionada, que “Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do novo coronavírus, a empregada gestante deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração”; ficando à disposição do empregador para “para exercer as atividades em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância”.

Essa medida simples e eficaz representa, a um só tempo, a concretização dos valores sociais do trabalho, quarto fundamento da República (Art. 1º, IV, da Constituição Federal – CF); da valorização do trabalho humano, primeiro fundamento da ordem econômica (Art. 170, caput, da CF); do cumprimento da função social da propriedade (Art. 170, III, da CF); do primado do trabalho, tendo como objetivos o bem-estar e a justiça sociais (Art. 193, da CF; e da proteção à saúde e à maternidade, que são direitos fundamentais sociais (Art. 6º, da CF). Pena que não seja mais abrangente quanto ao número de trabalhadores/as agasalhados pelo seu manto.

Pois bem! Sem que cessasse a emergência de saúde pública de importância nacional, e em meio ao recrudescimento da pandemia da covid19, com crescimento exponencial do número de contaminação, internação e mortes diárias provocadas pela nova cepa do coronavírus, o Congresso Nacional, em mais uma inequívoca demonstração de legislar de costas para as reais prioridades nacionais, acaba de esvaziar a colossal garantia dada à luz pela robusta lei sob comentários, transformando em exceção condicionada o que nela é regra incondicional.

No texto do autógrafo de lei, encaminhado à Presidência da República para a sanção ou veto, o afastamento de atividades presenciais fica restrito ao período em que a gestante ainda não tenha completado sua imunização, como se colhe da literalidade do caput de seu Art. 2º, que altera o 1º, da Lei Nº 14.151/2021:

“Art. 1º Durante a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus SARS-CoV-2, a empregada gestante que ainda não tenha sido totalmente imunizada contra o referido agente infeccioso, de acordo com os critérios definidos pelo Ministério da Saúde e pelo Plano Nacional de Imunizações (PNI), deverá permanecer afastada das atividades de trabalho presencial”.

Retorno compulsório

Extrai-se do conteúdo dessa nova redação do Art. 1º da Lei Nº 14.151/2021 que, para o Congresso Nacional, sem qualquer base científica, a imunização contra o coronavírus se mostra bastante para justificar a determinação compulsória de retorno às atividades presenciais da trabalhadora gestante; como se ela, uma vez imunizada, não fosse suscetível de contaminação, de sua recidiva, nem vetor de transmissão do vírus, bem assim que estivesse livre de qualquer dano à sua saúde e à da nova vida que gesta.

Os cientistas afirmam, e a ciência comprova, que a imunização é o único meio seguro de salvar vidas da covid19; não se mostrando, todavia, capaz de evitar a contaminação e a disseminação do coronavírus. Isso, para o legislador, pouco representa; o que lhe move é a defesa cega do interesse econômico.

Como se não bastasse esse desserviço social, dolosamente, perpetrado pelo Congresso Nacional, a imunização sob destaque, para ele, não vai além de proteção individual, para quantos/as quiserem recebê-la; não possuindo qualquer relevância a proteção e os interesses coletivos, que, no Estado Democrático de Direito, são sempre prioritários e prevalecentes.

Mais apropriado seria dizer que, para o Congresso Nacional, o único bem a ser protegido é a segurança jurídica das empresas, que prefere o sagrado direito à vida e à saúde, dando-lhes passaporte incondicional de isenção de responsabilidade, seja objetiva ou subjetiva, em caso de contaminação e/ou morte da gestante, da vida que gesta, e dos/as demais trabalhadores/as, que dela devem, obrigatoriamente, receber proteção total à saúde e à incolumidade física e mental.

Essa assertiva estampa-se nos §§ 3º, 6º e 7º, do Art. 1º da Lei Nº 14.151/2021, com a nova redação, que, repita-se, pende de sanção presidencial.

Eis o que o determinam tais dispositivos:

 “Art. 1º

 [..]

 “§ 3º Salvo se o empregador optar por manter o exercício das suas atividades nos termos do § 1º deste artigo, a empregada gestante deverá retornar à atividade presencial nas seguintes hipóteses:

I – após o encerramento do estado de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus SARS-CoV-2;

II – após sua vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2, a partir do dia em que o Ministério da Saúde considerar completa a imunização;

III – mediante o exercício de legítima opção individual pela não vacinação contra o coronavírus SARS-CoV-2 que lhe tiver sido disponibilizada, conforme o calendário divulgado pela autoridade de saúde e mediante o termo de responsabilidade de que trata o § 6º deste artigo;

IV – com a interrupção da gestação, observado o disposto no art. 395 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, com o recebimento do salário-maternidade no período previsto no referido artigo.

 …

  • 6º Na hipótese de que trata o inciso III do § 3º deste artigo, a empregada gestante deverá assinar termo de responsabilidade e de livre consentimento para exercício do trabalho presencial, comprometendo-se a cumprir todas as medidas preventivas adotadas pelo empregador.
  • 7º O exercício da opção a que se refere o inciso III do § 3º deste artigo é uma expressão do direito fundamental da liberdade de autodeterminação individual, e não poderá ser imposta à gestante que fizer a escolha pela não vacinação qualquer restrição de direitos em razão dela”.
  • 2º Para o fim de compatibilizar as atividades desenvolvidas pela empregada gestante na forma do § 1º deste artigo, o empregador poderá, respeitadas as competências para o desempenho do trabalho e as condições pessoais da gestante para o seu exercício, alterar as funções por ela exercidas, sem prejuízo de sua remuneração integral e assegurada a retomada da função anteriormente exercida, quando retornar ao trabalho presencial.

Cabe, ainda, destacar que, no autógrafo de lei sob discussão, a critério do empregador, à gestante não imunizada totalmente poderá ser atribuída outra função, durante seu afastamento de atividades presenciais, independentemente da concordância dela, desde que possua competência para tanto.

E, por último, reforçando a proteção prevalecente dos interesses econômicos sobre os sociais, as responsabilidades da empresa com a gestante ainda pendente de imunização total, são transferidas à previdência social, como se constata pelos §§ 4º e 5º, do Art. 2º, do realçado autógrafo de lei, que assim estipulam:

“§ 4º Na hipótese de a natureza do trabalho ser incompatível com a sua realização em seu domicílio, por meio de teletrabalho, trabalho remoto ou outra forma de trabalho a distância, a empregada gestante de que trata o caput deste artigo terá sua situação considerada como gravidez de risco até completar a imunização e receberá, em substituição à sua remuneração, o salário-maternidade, nos termos da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, desde o início do afastamento até 120 (cento e vinte) dias após o parto ou por período maior, nos casos de S prorrogação na forma do inciso I do caput do art. 1º da Lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008.

  • 5º A empregada gestante de que trata o § 4º deverá retornar ao trabalho presencial nas hipóteses previstas no § 3º deste artigo, o que fará cessar o recebimento da extensão do salário maternidade”.

Sanção presidencial

Muito embora o presidente da República possa, constitucionalmente, vetar, no todo ou em parte os dispositivos do contestado autógrafo de lei, não é de se inferir que ele o faça, haja vista o conteúdo destes reforçar seus reiterados negacionismo, desprezo pela vida humana, em especial dos/as trabalhadores/as e primazia absoluta dos interesses econômicos sobre os sociais. Como é sabido, para ele, a vida e os direitos dos/as são desprezíveis e de nenhum valor.

Destarte, por tudo que se anotou nas linhas acima, não subsiste nenhuma dúvida quanto ao colossal retrocesso social que as alterações promovidas na Lei Nº 14.151/2021 encerram; merecendo, por isso, a mais veemente repulsa de todos/as quantos/as cultuam e respeitam os fundamentos do Estado Democrático de Direito, bem assim a adoção de todas as medidas cabíveis e necessárias aos seu afastamento do mundo jurídico, na quase certa hipótese de virem a ser sancionadas pelo presidente da República.

*Por José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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