Desigualdades raciais na educação básica brasileira após a lei 10.639/2003

O que mudou ao longo de quase 20 anos?

William Melo, Doutor em educação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), professor de escola pública em Maricá (RJ) e coordenador pedagógico de oficinas escolares no museu virtual Rio Memórias

Em 2003, a Lei 10.639/2003 trouxe a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Porém, após 20 anos, ainda há persistentes desigualdades raciais e há poucas mudanças nas diferenças de resultados de desempenho escolar. Importante ressaltar que a lei 10.639/2003 não foi, efetivamente, implementada no país como deveria. Com “implementação”, refiro-me à adoção de políticas públicas estruturadas, fundamentadas na lei, tais como iniciativas voltadas à capacitação de professores, gestores e famílias em relação às temáticas raciais. Isso envolveria a oferta efetiva de recursos formativos e de pessoal, como parte de uma política de Estado, especialmente em nível federal mas não somente, para auxiliar educadores no ensino dos princípios fundamentais da educação antirracista ou educação para equidade racial. Em resumo, é essencial o letramento racial. Temos profissionais, grupos independentes, empresas privadas e ONGs que, desde 2003 (e antes, até) fazem um trabalho interventivo nas escolas e redes, para apoiar profissionais e estudantes. Mas ainda precisamos avançar em políticas públicas, inclusive pensando em ações que não necessariamente estão diretamente abarcadas pela Lei 10.639/2003 mas que possuem alguma relação com ela. Me refiro a programas de contenção da evasão escolar de alunos negros na educação básica, programas de fortalecimento da autoestima e saúde mental com enfoque nas crianças e adolescentes negros e negras (sempre com olhar racializado), políticas intersetoriais que conectem assistência social, saúde pública e educação, dentre outras dezenas de possibilidades, incluindo avaliação de implementação e de impacto de cada programa ou política.
Embora se reconheça que a lei 10.639/2003 ainda não tenha sido implementada de forma adequada e que sejam necessárias ações que ultrapassem seu escopo, a promulgação dessa lei representou um marco legal crucial para a equidade racial na Educação Básica. Assim, esperava-se que, após quase duas décadas, fossem observados resultados significativos.Por isso, com dados do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), analisei o desempenho médio em língua portuguesa entre 2003 e 2021 para os estados do Rio de Janeiro e São Paulo; primeiro para os estados como um todo e, depois, para cada escola. A figura abaixo mostra que as diferenças entre alunos de diferentes raças persistem ao longo dos anos.

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Brancos e amarelos/asiáticos seguem no topo há anos. Mas a pergunta que fica é: o padrão de desigualdade se mantém, mas não há nenhuma redução, mínima que seja? Para verificar isso, calculei a diferença de médias nas notas de brancos e amarelos versus negros e indígenas para interpretar, numericamente, o quanto as desigualdades de desempenho em língua portuguesa reduziram ou não entre 2003 e 2021. Veja a imagem abaixo.image.png

Interessante também observar essas mudanças utilizando mapas que são coloridos de acordo com essas diferenças de brancos e amarelos para negros e indígenas:

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Há algo atípico em 2003 e em 2005, que é a baixa quantidade de dados disponíveis. A partir de 2007 conseguimos ter uma tendência mais confiável. Mantive todos os anos apenas porque o ano de referência é 2003, quando a lei 10.639/2003 foi promulgada.

A desigualdade racial no desempenho médio em língua portuguesa é praticamente inalterada entre 2007 e 2021, com uma diferença em todos os anos que não foge ao intervalo de 10 a 15 pontos de diferença média entre os grupos raciais, em favor dos alunos brancos e amarelos/asiáticos. É fundamental mencionar que usei dados do Saeb de 2021 mesmo sabendo de potenciais problemas na coleta desses dados, considerando o contexto de pandemia de Covid-19. Tomei essa decisão apenas para verificar se era possível captar alguma mudança brusca nos padrões após a pandemia, mas foi possível detectar apenas uma manutenção do padrão de antes.

Analisei, também, a desigualdade nas escolas via geolocalização, mostrando as diferenças entre alunos de diferentes raças em cada escola. Os dados de 2019 para o Rio e São Paulo ilustram essa situação.

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Como essa análise é mais refinada e precisa, mostrando cada escola como um ponto no mapa, o ano de 2019 foi escolhido para evitar problemas ocasionados no Saeb de 2021. O mapeamento das escolas indica que, mesmo anos após a promulgação da lei 10.639/2003 ainda vemos um “mapa avermelhado”, ou seja, poucas escolas apresentam menor vantagem de alunos brancos/amarelos em relação a alunos negros/indígenas no que se refere à nota no Saeb em língua portuguesa.

Todos esses dados conduzem a uma argumentação que vai no sentido da necessidade de mais ações no campo das políticas públicas de distribuição de oportunidades, com olhar focado nas relações étnico-raciais em educação. Embora a lei 10.639/2003, por si só, não seja suficiente para eliminar completamente as desigualdades raciais de desempenho e embora outros avanços possam ter ocorrido (como o aumento gradual da inserção da temática nas escolas), esperava-se maior progresso ao longo de quase duas décadas. É imprescindível o desenvolvimento de mais políticas públicas direcionadas à educação básica, dada a natureza sistêmica e estrutural do problema.

O cerne da questão reside no fato de que a busca por equidade racial na educação transcende o âmbito educacional, adentrando também o terreno político, então se trata de constante disputa de narrativas e de prioridades. Os resultados de avaliações educacionais, embora sejam indicadores pontuais, desempenham um papel crucial no monitoramento de leis e ações ao evidenciar desigualdades no desempenho escolar ao longo do tempo. Tais desigualdades devem ser atenuadas, considerando que a Educação representa um dos principais caminhos para o acesso a oportunidades mais favoráveis no mercado de trabalho e, por consequência, à obtenção de uma renda maior e melhores condições de vida.

A lei 10.639/2003 estabeleceu o início dessa jornada, avançamos um pouco, mas a estrada ainda é longa. O debate é mais amplo se considerarmos os perversos efeitos da pandemia em vários resultados educacionais, e se eu adicionasse informações que venho coletando sobre desconhecimento ou sentimento de despreparo (de professores e gestores escolares) com relação à aplicação da Lei nas escolas, o que reforça a urgência de ações de letramento racial para a sua implementação efetiva.

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O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por William Melo foi “Narrativa”, de sua própria coautoria (o nome artístico do autor é W-Black), em parceria com os artistas 4-Ó e Claus.

Da Folha de S. Paulo

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