Guerra cultural e privatização: o avanço conservador sobre a educação em meio à pandemia

Série de reportagens do Sul21 aborda o avanço conservador na educação

Em 8 de dezembro passado, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou um projeto que autoriza pais a educarem seus filhos em casa em vez de matricularem em uma escola da rede municipal. Três dias depois, a comunidade da escola Visconde do Rio Grande, localizada no bairro Cavalhada, se tornou a primeira da rede estadual na Capital a aprovar a adesão ao programa de escolas cívico-militares. Em todo o Brasil, há pelo menos 34 projetos em andamento que proíbem o uso da chamada linguagem neutra nas escolas e na administração pública.

Apesar de gozarem de menos notoriedade do que no período em que o movimento Escola Sem Partido tomou de assalto Câmaras e Assembleias pelo Brasil, as pautas conservadoras têm avançado rapidamente em meio à pandemia de covid-19. Para tentar explicar o porquê disso e como pautas a princípio distintas se interconectam, o Sul21 preparou uma série de três reportagens a respeito do avanço conservador na educação.

Iana Lima, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faced-UFRGS), pesquisa desde 2017 o avanço de movimentos conservadores na educação básica e atualmente participa do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado em Educação. Em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ela atua no projeto “A Aliança Conservadora, o Estado e as Políticas Educacionais no Brasil: um mapeamento de atores e ações conservadores”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Ela pontua que, entre 2017 e 2019, o grupo de pesquisa estudou a articulação entre quatro pautas que eram promovidas de forma prioritária pelos movimentos conservadores: a discussão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a militarização da educação, a educação domiciliar e a Escola Sem Partido.

No mapeamento [ver as imagens abaixo] de quem são os principais responsáveis pela difusão dessas pautas, o presidente Jair Bolsonaro e a sua família aparecem como eixos importantes de propagação das ideias de militarização da educação, do homeschooling e da Escola Sem Partido, mas também atuantes na questão do BNCC. Além deles, aparecem diversas personalidades políticas que se elegeram pela primeira vez em 2018, como os parlamentares Caroline de Toni, Carlos Jordy, Bia Kicis, Carla Zambelli, Kim Kataguiri, entre outros. Da mesma forma, aparecem figuras que ganharam notoriedade nacional ao assumirem cargos no governo, como a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e o ex-ministros da Educação Abraham Weintraub e Ricardo Vélez Rodriguez.

“Quem é a escola sem partido? Quem vai advogar nacionalmente? A gente vê políticos nas casas legislativas, veículos midiáticos e pessoas vinculadas à mídia. Não só à mídia tradicional, jornal e televisão. A gente tem muitos youtubers fazendo esse papel na disseminação das pautas”, diz Iana Lima.

Além das figuras midiáticas, sejam ela das novas ou velhas mídias, a professora pontua que há uma ação importante de organizações não governamentais e think tanks, que são espaços voltados para a disseminação de ideias, e de movimentos políticos que advogam as pautas conservadoras com instituições e atores de outros países. “A gente vê relações fortes com think tanks e movimentos políticos dos EUA. Só para te dar um exemplo, o Students for Liberty, que é um movimento estadunidense, financia o MBL no Brasil e a disseminação das pautas conservadoras. Então, não é uma agenda que é só brasileira, é global”, afirma.

image.png
Rede de atores que defendem a educação domiciliar no Brasil. Foto: Reprodução/Gabriel Dias dos Santos
image.png
Rede de atores que defendem o Escola sem Partido no Brasil. Foto: Reprodução/Jaqueline Garske Ferreira
image.png
Rede de atores que defendem a militarização da educação no Brasil. Foto: Reprodução/Arthur Grigolo dos Santos

Integrante do mesmo grupo de pesquisa, Paula Valim de Lima também buscou identificar, em sua dissertação de mestrado apresentada em 2020, quem são os sujeitos envolvidos no projeto educativo da nova direita brasileira e quais são as suas pautas e propostas para a Educação no Brasil.

A partir da análise de atuação nas redes sociais nos anos de 2019 e 2020, Paula Valim dividiu esses sujeitos em seis grupos: 1) Governo Federal; 2) partidos políticos, parlamentares e frentes parlamentares; 3) think tanks de atuação nacional com articulações em nível global; 4) movimentos políticos de agitação e propaganda; 5) entidades da sociedade civil que organizam determinados grupos de interesse; e 6) portais de comunicação e formadores de opinião.

Paula Valim identificou duas grandes pautas que sintetizam as aspirações e projetos educativos dos sujeitos da nova direita: a) a guerra cultural, no sentido da disputa sobre os valores que atravessam o espaço escolar e a sociedade, definindo os que devem estar presentes e, sobretudo, os que devem ser impedidos; e b) a privatização, na perspectiva da definição dos conteúdos pelo setor privado, seja ele mercantil ou neoconservador, ou da transferência de responsabilidade sobre a educação do público para o privado. Essas duas correntes produziram diversas propostas, mas Valim identifica três como principais: o programa Escola sem Partido, o Homeschooling e as Escolas Cívico-Militares.

Valim identificou, por exemplo, que, entre 2010 e a conclusão da pesquisa, em 2020, foram apresentados na Câmara dos Deputados oito projetos que delimitam regras e diretrizes para a educação domiciliar. O primeiro deles em 2012, de autoria do deputado Lincoln Portela. Em 2015, o filho 03 do presidente, Eduardo Bolsonaro, apresentou um projeto propondo a autorização da educação domiciliar no Brasil. Contudo, apenas nos dois primeiros anos de presidência de Bolsonaro, cinco projetos foram apresentados, um deles pelo Poder Executivo. Dos outros quatro, apresentados por parlamentares do PSL, Patriota, DEM e PT, apenas o último, de autoria de Natália Bonavides (PT), propunha que a educação domiciliar não poderia substituir a frequência escolar.

Uma das conclusões que ela chega é de que grupos neoconservadores e neoliberais têm atuação cruzada, atuando em diversos momentos na defesa das mesmas pautas, especialmente quando o tema é educação. Grupos que atuam na promoção de ideias liberais (ou ultraliberais), como o MBL, atuam em paralelo com grupos bolsonaristas na defesa de pautas como o homeschooling, a Escola Sem Partido, a militarização das escolas, a gestão privada e as parcerias público-privadas na educação, a compra de vagas para alunos da escola pública na rede privada (sistema de vouchers), entre outras.

O movimento Escola Sem Partido, que é promovido por essa união, pode ser considerado uma proposta difusa, sem coordenação central, mas possuía páginas identificadas como oficiais em redes sociais. Elas eram administradas pelo advogado Miguel Nagib, conhecido por ser um dos fundadores do movimento. Em 2018, essas páginas manifestaram apoio à campanha de Jair Bolsonaro à presidência.

Contudo, em agosto de 2020, após o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a inconstitucionalidade lei estadual de Alagoas que implementava a Escola Sem Partido naquele estado, as páginas deixaram de ser atualizadas e uma das razões atribuídas por Nagib seria o fato de que o governo Bolsonaro não teria se empenhado na defesa das legislações defendidas pelo movimento.

Iana Lima afirma que há um entendimento, no grupo de pesquisa, de que a Escola Sem Partido não origina a atuação de movimentos conservadores na educação, mas teve uma grande importância para o surgimento de diferentes agendas. Ela diz que a Escola Sem Partido, como movimento, não tem mais a força de antes, mas também pelo fato de que não é mais necessário como força aglutinadora de pautas, porque muitas delas já estão enraizadas em setores da sociedade.

“Esse movimento teve uma centralidade em dizer ‘olha, a gente tem que se preocupar com a doutrinação nas escolas’. Esse ataque a escola pública, aos professores, foi central para que outras pautas ganhassem espaço”, diz.

Efeitos da pandemia

A professora Iana Lima avalia que estes movimentos conservadores na educação seguem ganhando força, mas pontua que a pandemia escancarou desigualdades de classes que já existiam em termos educacionais, o que acabou impactando esses processos. “Eu acho que algumas dessas pautas perderam força em alguns segmentos de classes sociais. Por exemplo, as classes mais populares viram a dificuldade que é ter seus filhos e filhas em casa”, diz.

Ela pondera, por exemplo, que uma criança em idade de alfabetização não teve a capacidade de acessar plataformas digitais sem auxílio dos pais, portanto precisou de apoio da família para acessar e realizar as atividades, o que não é a realidade das famílias brasileiras em que os pais trabalharam fora de casa durante a pandemia e/ou não dispunham dos equipamentos eletrônicos necessários para acessar as plataformas digitais.

“As famílias mais atingidas pela pandemia, que são as pessoas pobres, sofrem mais com isso. Nessas famílias, talvez essa ideia de uma educação domiciliar, perdeu força. Mas, entre famílias mais abastadas economicamente, isso ganhou força, porque elas já estão fazendo isso em casa. Tanto é que a PL da educação domiciliar no RS foi votado durante o processo da pandemia”, diz.

A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou em junho de 2021 o projeto de lei que autorizava o homeschooling, mas ele foi vetado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) e os parlamentares mantiveram o veto em agosto, enterrando, ao menos temporariamente, o projeto no Estado. O argumento do governador é de que a matéria não pode ser legislada pelos estados, apenas por lei federal. Em novembro, o governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (sem partido), sancionou a lei que institui o ensino domiciliar no estado, mas o Tribunal de Justiça local suspendeu a legislação em dezembro, mais uma vez usando o argumento de que o assunto não pode ser regulado por lei estadual. O projeto aprovado em Porto Alegre ainda não foi encaminhado pela Câmara para sanção ou veto do prefeito Sebastião Melo (MDB).

A professora Vera Maria Vidal Peroni, coordenadora do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado em Educação, avalia que o avanço das chamadas pautas conservadoras está inserido no processo de “privatização do público” e que, neste sentido, a pandemia abriu mais ainda as portas para a entrada de empresas privadas na rede pública por meio de compra de materiais e de plataformas digitais voltadas para o ensino remoto, o que, segundo ela, também vem acompanhado de conteúdos que se enquadram dentro de determinados limites. “O conteúdo do privado entra junto, porque eles não disponibilizam só a plataforma, o conteúdo da escola, o que vai ser ensinado entra junto”, diz, ressaltando que esta nova fase de avanço do privado sobre o público é “avassaladora”.

Ela destaca que, ao comprar conteúdo pronto, o poder público abre mão de fazer política educacional e repassa a tarefa para o privado, que tem a sua ideologia própria. “Não tem dinheiro para pagar os professores, para formação, mas tem dinheiro para gastar milhões porque esses sistemas são pagos. Então, há uma disputa pelo público. E o professor, que deveria ser bem pago para dar uma boa aula, nem precisa saber nada, porque o material já vem pronto e ele só segue o que o grupo privado quer. Isso também tem uma ausência de democracia  que fortalece as pautas neoconservadoras, porque tu vai minando a democratização por dentro da escola”, diz.

A escola permanece pública, com os professores e a estrutura pagos pelo Estado, mas cada vez mais a gestão do conteúdo ocorre por parte do setor privado sob a benção de políticos conservadores e liberais. Vera Peroni destaca que esse movimento é influenciado pela ideia de que o público não tem a qualidade do privado, por isso é preciso recorrer ao segundo para gerir o primeiro.

“Quando o neoliberalismo tem o diagnóstico de que o culpado da crise é o Estado, desde a década de 90, começa um movimento de retirada do estado e das instituições públicas do protagonismo, da direção e da autonomia de tu construir políticas públicas. Mesmo permanecendo como propriedade do Estado, acaba tendo o privado um projeto societário do capital e que vai definindo as políticas”, diz.

Vera Peroni afirma que houve uma grande ampliação de direitos na Educação a partir da Constituição, mas que eles não vieram acompanhados das condições de financiamento e de formação para a efetivação na prática com a qualidade necessária.

A falta de financiamento adequado, segundo ela, foi a brecha encontrada pelo setor privado para entrar no setor. Contudo, ela destaca que esse movimento, muitas vezes, ocorre pelas beiradas. Um exemplo disso seria o movimento de municípios pequenos abdicarem da elaboração de diretrizes educacionais e comprarem “sistemas prontos” de grandes grupos educacionais. É junto com o “know-how” de administração das escolas que viria a pauta de costumes conservadores.

“A gente percebeu que para além desse sujeito neoliberal, com a sua pauta do empreendedorismo e um projeto de gestão gerencialista, que acabava com a questão da gestão democrática nas escolas, a gente começou a perceber cada vez mais a presença de sujeitos vinculados à pauta neoconservadora.”

Uma das pautas neoconservadoras que ganha força é a proibição do uso da linguagem neutra, isto é, o uso do gênero neutro em vez do masculino ou feminino. Tramitam na Assembleia Legislativa do Rio Grande Sul e na Câmara Municipal de Porto Alegre projetos que buscam garantir a proibição em âmbito escolar.

“Sob o pretexto de evitar a discriminação de indivíduos não-binários, isto é, pessoas que não se identificam com os gêneros masculino e feminino, verifica-se um movimento, sobretudo nas redes sociais, que defende o uso da linguagem neutra (ou linguagem não-binária). Neste sistema, propõe-se, por exemplo, a substituição de palavras terminadas em ‘a’ e ‘o’ por palavras terminadas em ‘e’, ‘@’ ou ‘x’. Nessa lógica, as palavras ‘menina’ e ‘menino’, por exemplo, seriam substituídas pelas ‘formas neutras’ ‘menine’, ‘menin@’ ou ‘meninx’. (…) Diante desse cenário, é evidente a necessidade de se impedir o avanço destas ideias, sobretudo para que seja garantido a todos os estudantes gaúchos o direito a uma educação de qualidade e ao ensino adequado da norma culta da língua portuguesa, em observância ao disposto na Constituição Federal e na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul”, diz o texto do projeto assinado pelo deputado estadual Ruy Irigaray.

Ambos os projetos seguem em tramitação. Em outros estados, contudo, a proposta já está se tornando lei. Em 30 de dezembro de 2021, o governador do Mato Grosso do Sul, Ricardo Azambuja (PSDB), emitiu um decreto proibindo o uso de linguagem neutra nas instituições de ensino, documentos oficiais e confecções de materiais didáticos no estado.

Embate que vem de longe

Professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG), Carlos Cury diz que os movimentos conservadores, ou reacionários, já atuavam na Educação muito antes do advento da Escola Sem Partido, a partir da oposição a conquistas sociais da Constituição de 1988, que incluiu no ordenamento jurídico nacional a defesa da promoção da igualdade e da diversidade.

“Todo mundo sabe que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, mas há outro elemento que concorre com esse, que é assegurar o bem de todos sem preconceitos de qualquer natureza. Sem preconceitos de qualquer natureza se liga a outro que também está na Constituição, que é eliminar a pobreza e a marginalização. Esse segundo princípio constitucional da diversidade foi ganhando com o tempo uma visibilidade para determinados campos que fugiram dos campos mais visíveis na nossa realidade. Quais são esses visíveis? A educação indígena, ou as comunidades indígenas, a comunidade de afro-descendentes, as pessoas em situação de deficiência, além de outros que se impuserem, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso”.

Cury pontua que é na esteira da promoção da diversidade que surgem por um lado, por exemplo, as cotas sociais e raciais. Por outro, como reação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a discussão sobre a redução da maioridade penal.

“Essas dimensões estavam esperando um momento de aglutinação e, de certa forma, de um conceito que pudesse abrangê-las. E aí, sobretudo durante o governo Dilma, essa chamada pauta de costumes entrou com grandes força, com grande visibilidade, acusando determinados locais, entre os quais a educação, como sendo um lugar pernicioso com relação a uma interpretação crítica da história oficial. A coisa pegou de vez quando houve a discussão sobre a educação sexual. Isso se enucleou em torno do conceito de escola sem partido ou de outras pautas relativas a costumes”, diz.

Iana Lima também enxerga o avanço conservadora como uma reação à ampliação de direitos sociais que ocorreu, especialmente, a partir dos anos 2000, mas que já vinha desde a redemocratização do País. Ela pontua que movimentos que atuam na tentativa de barrar avanços sociais já operam desde o período final da ditadura militar.

“A gente tem milhares de coisas que foram aprovadas no Brasil que são fruto de muita luta de movimentos sociais, de negros, de LGBTQIA+, feministas, que tiveram uma centralidade para a gente chegar onde chegamos. Lá no anos 2000, especialmente nos governos Lula e Dilma, legislou-se sobre muitas questões que são lutas desses movimentos: políticas de cotas, programa Brasil Sem Homofobia, que depois foi vetado, a lei das empregadas domésticas, uma série de avanços que depois sofrem uma reação para a manutenção do status quo. É um ataque à diversidade e à democracia, ao fim e ao cabo, o que a gente vê desses movimentos conservadores. E é um ataque especialmente às escolas públicas, porque mais de 80% da população brasileira que estuda está matriculada ali”, afirma.

Cury destaca que essa disputa entre forças [progressistas e conservadoras] esteve muito presente, por exemplo, na discussão do Plano Nacional de Educação, sancionado pela presidenta Dilma em junho de 2014 e que gerou a necessidade de Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores aprovarem planos estaduais e municipais de educação, respectivamente.

“Ali já tinha uma discussão sobre a diversidade sexual e determinados grupos de interesse, de pressão, queriam que a noção de diversidade tivesse uma visibilidade específica. Por exemplo, fala-se claramente num respeito às orientações de gênero. Naquela época, essa pauta conservadora, que eu prefiro chamar de reacionária, retira a expressão orientação de gênero e coloca ideologia de gênero, o que é, pelo menos do ponto de vista da Filosofia, um oxímoro, uma coisa esdrúxula. Mas, de alguma forma, circulou essa dinâmica da ideologia de gênero significando duas coisas: uma aceleração antecipada da vida sexual, seja ela hétero ou de outra orientação, mas, sobretudo, como se a escola estivesse, de alguma maneira, estimulando orientações sexuais sobrepostas a uma orientação considerada normal, considerada ortodoxa”.

Cury aponta que, a partir dessa discussão, crescem no Brasil os movimentos de defesa da separação entre ensino e educação, ideia que defende que a escola é responsável por ensinar conteúdos, enquanto a família é responsável por educar em valores.

“Daí decorreu, também, uma dinâmica de crítica à escola propondo o retorno da educação doméstica, como se a casa fosse uma espécie de redoma em que a criança, de qualquer sexo, de qualquer orientação, estivesse sob a guarda de uma proteção familiar e que ali também poder-se-ia haver um processo de ensino e aprendizagem, o que é contra todas as estatísticas que evidenciam, por exemplo, como determinados aspectos da violência se dá, muitas vezes, dentro do espaço familiar. Isso que eu chamo de uma visão utópica passadista, como se houvesse uma família no passado em que essas coisas estavam de tal modo resolvidas que estas coisas sempre foram dentro de uma linha ortodoxa”, afirma Cury.

O professor afirma ainda que é dentro dessa lógica de retorno a um passado utópico que se insere a pauta das escolas cívico-militares, uma vez que elas seriam, pretensamente, um lugar da ordem e da disciplina que teria sido perdido após o fim da ditadura militar.

“Então, ali, você tem uma escola rígida, preparando não futuros cidadãos, mas quiçá futuros soldados. Bom, esses três elementos aos quais eu me referi, a escola cívico-militar, o homeschooling e a questão da chamada ‘ideologia de gênero’, foram, de alguma maneira, referendos por um movimento que vinha no Brasil já de algum tempo, que é um movimento religioso fundamentalista que certamente é muito evidente nas chamadas religiões evangélicas, fundamentalistas, mas existe também em denominações clássicas, seja na área dos reformados, seja na área dos católicos. Isso ganhou uma grande visibilidade e é uma grande força porque esse grupo tem, teve e tem uma força eleitoral considerável”.

Vera Peroni destaca que a chamada onda conservadora se trata de um movimento internacional e afirma que estudos indicam que a mistura entre pautas neoconservadoras e a gestão privada começou a ganhar força na Inglaterra a partir de meados da década passada. “Por volta de 2014 e 15, autores já falavam que, quando o privado assumia a gestão da escola pública, já estava levando pautas neoconservadoras. Já levava a discussão do criacionismo, ou seja, acabava com a pauta laica dentro das escolas. Mas era pouco estudado, porque acontecia de forma muito sorrateira. Acontecia numa escola, noutra não, então era invisível nacionalmente”, diz.

Ela diz que, em 2015, essa ainda não era uma questão central no Brasil, mas acabou se tornando logo em seguida, especialmente a partir do movimento Escola Sem Partido, que aglutinou diversas pautas caras aos neoconservadores e impôs debates “com muita violência”.

“Alguns pesquisadores têm dito que o neoconservadorismo, vinculado com essa violência, fica mais no limite do neofascismo do que do neoconservadorismo, porque o fascismo trabalha mais a questão de massa, de falar diretamente com as massas, de ir por fora das instituições tradicionais. Apesar de que, tanto no fascismo tradicional, quanto agora, ele está dentro do judiciário, apesar de querer acabar com o judiciário, está dentro de todo o processo legislativo, apesar de também querer acabar com o legislativo. Então, essa também é uma característica do fascismo e do neofascismo”.

Peroni afirma ainda que a entrada de modelos privados na escola pública está ligada aos processos de censura e cerceamento da autonomia de professores por serem movimentos que, justamente, entregam modelos prontos para serem seguidos. “O que eles falam para as pessoas é que tem o caos e eles vão botar ordem na casa. E as pessoas não conseguem fazer a leitura de que quem provocou esse casos foi o próprio capital. E aí eles querem que bote ordem na casa, porque o que eles veem é o caso, mas não conseguem fazer a leitura de que tem o caos social porque a sociedade está completamente desestruturada por políticas neoliberais. E isso entra na escola”.

Nos próximos dias, o Sul21 publicará mais duas reportagens sobre o avanço do conservadorismo na educação, destacando como o ataque à linguagem neutra se tornou uma trincheira nacional dos movimentos conservadores e como o projeto de Escola Cívico-Militar tem avançado a partir da defesa de parlamentares.

Sul 21

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo