‘Luta contra big techs está vinculada a um projeto econômico alternativo’, diz Evgeny Morozov

Morozov lança o podcast para contar história da "internet socialista" de Salvador Allende, no Chile

José Eduardo Bernardes

Não deveríamos rejeitar a tecnologia digital e sim aquela que é propriedade do capitalismo global
Uma rede de computadores capaz de transferir informações de diversas empresas chilenas para uma central de gerenciamento. Esse era o objetivo do projeto Cybersyn, desenvolvido pelo governo de Salvador Allende, no começo de seu mandato presidencial, no começo dos anos 1970.

Com a estatização de empresas nacionais e estrangeiras, faltavam técnicos especializados que pudessem gerenciar os processos. A solução do governo Allende foi conectá-las, a partir do conhecimento de engenheiros chilenos e um guru excêntrico inglês, chamado Stafford Beer.

A experiência, que aconteceu paralelamente ao surgimento da internet como a conhecemos – por acadêmicos das universidades da Califórnia e de Stanford, nos Estados Unidos, em 1969 – ficou conhecida como a internet socialista de Allende e tem seus detalhes revelados agora, em um podcast criado pelo engenheiro bielorrusso, Evgeny Morozov, chamado Santiago Boys, em alusão ao grupo de economistas liberais chilenos do governo [Augusto] Pinochet, os “Chicago Boys”.

“Foi um esforço para mostrar que é possível ter toda a eficiência, inovação, participação de uma economia nas mãos do povo”, explica Morozov, convidado desta semana no programa BDF Entrevista.

“Normalmente, a versão que ouvimos falar é que, quando o Estado começa a administrar empresas, elas se tornam ruins, sem graça, ineficientes, não inovam. No caso do Allende, foi um esforço para aproveitar o potencial da tecnologia, o poder da democracia e comunicação em tempo real para construir um sistema que pudesse ser muito mais eficiente que a economia de mercado. E acredito que isso representava um grande medo e um grande risco aos EUA. É por isso que estavam tão irritados com o Allende”, completa o bielorrusso.

De fato, pouco mais de dois anos após o desenvolvimento do projeto Cybersyn, o governo dos Estados Unidos patrocinou um golpe de estado que derrubou Salvador Allende e levou ao poder o sanguinário general do Exército Augusto Pinochet. Sua uma ditadura durou 17 anos e deixou mais de 3 mil mortos, um grande número de desaparecidos e mais de 40 mil casos de tortura relatados.

“Acho que é uma lição que esquecemos e uma lição que, provavelmente, deveríamos voltar a examinar porque, em última instância, a dependência que criamos hoje, adquirindo cada vez mais serviços, como a inteligência artificial, computação em nuvem, computação quântica, de big techs dos EUA, representam um perigo e um risco que é tão ameaçador e significativo quanto a dependência telegráfica e telefônica dos anos 1960 e 1970”, explica Morozov.

Os trabalhos de Evgeny Morozov vão além do podcast Santiago Boys. Conhecido por seu trabalho de análise do poder das big techs, ele avisa que é necessária “uma luta dos movimentos sociais e ativistas” contra as grandes corporações de tecnologia, “que podem protestar contra o fato de o nosso governo vender ou convidar empresas para gerir nossa educação, nosso sistema de saúde e transporte, nossas cidades”.

“Quando falamos em “cidades inteligentes”, estamos falando de cidades digitais privatizadas, geridas pelo Vale do Silício. Há esforços que podem vir dos movimentos sociais, mas também é importante entender que há mais a ser feito por partidos políticos, governos. Tem que ser uma luta contra as big techs. E ela tem que estar vinculada a um projeto econômico alternativo”, afirma Morozov.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Quero começar falando sobre o projeto Cybersyn. Eu não conhecia essa iniciativa do governo [Salvador] Allende, no Chile. E você se aprofunda nesse assunto em um podcast, o Santiago Boys, certo?

Evgeny Morozov: Sim, foi uma iniciativa muito ousada e ambiciosa criada no início dos anos 1970, no Chile. Ela nasce de uma demanda muito específica. Allende estava nacionalizando muitas empresas estrangeiras e muitas grandes empresas chilenas. Ele não tinha profissionais o suficiente para gerenciá-las, em parte porque os EUA estavam fazendo tudo o que podiam para privá-lo de ter gerentes, encorajando-os a deixar o país.

Os jovens técnicos que ele tinha, os engenheiros radicais que o rodeavam, as pessoas que eu chamo de “Santiago Boys”, em uma clara alusão aos “Chicago Boys”, os economistas liberais que depois vieram para o Chile, essas pessoas, essencialmente… Ou o líder, o jovem e talentoso engenheiro Fernando Flores, que mais tarde teria uma carreira proeminente no governo de Allende, ele pediu ajuda a um ídolo intelectual dele.

Era um inglês bem excêntrico, da alta burguesia, uma espécie de consultor administrativo, chamado Stafford Beer, que criou uma disciplina, hoje esquecida, chamada cibernética, que era basicamente uma versão simplificada da inteligência artificial, mas um pouco mais excêntrica, obscura, com conceitos interessantes, como homeostase e retroalimentação. Usamos alguns deles agora, mas esquecemos a cibernética.

Stafford Beer foi levado ao Chile para ajudá-los a construir um sistema que compensasse essa falta de gerentes. Em vez de pessoas, usariam computadores para ajudar a indicar onde estavam surgindo problemas na economia chilena. Como parte desse processo, o Cybersyn evoluiu para um programa ambicioso, e uma grande parte da economia chilena passou a estar conectada através de uma rede telex, uma versão bem básica da internet, digamos, a um computador central que analisaria os dados que chegavam das empresas para, essencialmente, oferecer um modelo diferente de gestão da economia que fosse eficiente, eficaz e bom para a população.

Quando você decidiu fazer esse podcast?

Esse era um projeto bastante conhecido em alguns círculos, eu sabia dele havia uma década, já escrevi sobre ele, escrevi uma crítica de um livro sobre o projeto e é uma coisa que ficou na minha cabeça, em parte porque muitas forças progressistas, como governos e partidos políticos de esquerda, carecem de modelos, de inspiração, de exemplos construtivos sobre o que pode ser feito com a tecnologia, além de simplesmente se opor às big techs do Vale do Silício.

E também havia big techs na época do Allende, havia oposição a uma empresa chamada ITT, que analiso no podcast. Mas havia também um projeto construtivo e proativo de construir um software, um sistema de computação que os ajudasse a tornar a economia chilena mais racional, mas também mais democrática. E eu comecei a trabalhar nisso há dois anos e literalmente passei dois anos pesquisando os arquivos, entrevistando muitas pessoas, tentando descobrir o que realmente aconteceu com as pessoas envolvidas.

Leonel Brizola inclusive tentou nacionalizar a ITT, não é?

Ele não se envolveu no projeto, mas é mencionado no podcast, em parte por causa desse paralelo com a ITT. Brizola, no início dos anos 1960, era governador de um estado no Brasil [Rio Grande do Sul] e tentou se apropriar da propriedade local da ITT, porque achava que não estavam seguindo as regras acordadas em contrato, para instalar telefones no estado.

E é claro que a ITT não gostou daquilo porque, alguns anos antes, Fidel Castro tinha nacionalizado a propriedade da empresa em Cuba. E isso, é claro, irritou a ITT, que sabia que não poderia abrir mão da América Latina, apenas porque alguém iria se opor a eles. Eventualmente, Brizola teve que ser, basicamente, humilhado e o governo de João Goulart teve que pagar pela propriedade que foi nacionalizada.

Depois que isso aconteceu no Brasil, Allende, ainda assim, ameaçou nacionalizar a ITT no Chile, quando assumisse o poder. ITT sabia e fez tudo o que podia para evitar que Allende fosse eleito e, quando foi e tentou negociar com eles, eles fizeram de tudo para enfraquecê-lo e garantir que sua vida se tornasse um inferno. E realmente se tornou um inferno, aconteceu o golpe e ele teve que cometer suicídio.

A ideia de Allende era criar big data para controlar as empresas nacionalizadas. Essa ideia tem um potencial revolucionário…

Claro, porque, de certa maneira, foi um esforço para mostrar que é possível ter toda a eficiência, inovação, participação de uma economia que está nas mãos do povo. Porque, normalmente, a versão que ouvimos falar é que, quando o Estado começa a administrar empresas, elas se tornam ruins, sem graça, ineficientes, não inovam.

No caso do Allende, foi um esforço para aproveitar o potencial da tecnologia, o poder da democracia e o poder da comunicação em tempo real para construir um sistema que pudesse ser muito mais eficiente que a economia de mercado. E acredito que isso representava um grande medo e um grande risco aos EUA. É por isso que estavam tão irritados com o Allende.

Este ano o golpe no Chile completa 50 anos. O que as iniciativas tecnológicas e a luta pela democracia chilena representam para a nossa sociedade moderna?

Acho muito importante que nós examinemos uma e outra vez aqueles anos, tanto a década de 1970 como a de 1960, porque naqueles anos houve um esforço conjunto de muitos economistas, sociólogos e cientistas políticos da América Latina para entender a natureza da dependência tecnológica, para entender que, uma vez que países como o Brasil, Chile, Argentina comecem a depender de infraestrutura tecnológica oferecida pelos EUA, cria-se um obstáculo para o seu desenvolvimento econômico. E os países deveriam fazer de tudo para diminuir essa dependência.

Acho que é uma lição que esquecemos e que, provavelmente, deveríamos voltar a examinar porque, em última instância, a dependência que criamos hoje, adquirindo cada vez mais serviços, como a inteligência artificial, computação em nuvem, computação quântica, de big techs dos EUA representam um perigo e um risco que é tão ameaçador e significativo quanto a dependência telegráfica e telefônica dos anos 1960 e 1970.

O controle estadunidense sobre a big data acontece há muito tempo, certo? Como é possível combater isso?

Podemos combater em muitos níveis. Acho importante que haja uma luta dos movimentos sociais e ativistas, que contra nosso governo vender ou convidar empresas para gerir nossa educação, nosso sistema de saúde e transporte, nossas cidades. Quando falamos em “cidades inteligentes”, estamos falando de cidades digitais privatizadas, geridas pelo Vale do Silício.

Então, claramente há esforços que podem vir dos movimentos sociais, mas também é importante entender que há mais a ser feito por partidos políticos, governos. Tem que ser uma luta contra as big techs, e ela tem que estar vinculada a um projeto econômico alternativo. Um projeto econômico que seja capaz de articular, de algum modo, uma via alternativa de desenvolvimento que não abra mão da tecnologia, que não quisesse fazer tudo manualmente, mas que contasse con inteligência artifical, computação em nuvem, e que servisse a uma causa que não o neoliberalismo, a mercantilização ou a privatização.

É muito importante definir esse projeto econômico alternativo, e é aí que tem que estar a pressão dos movimentos sociais sobre os governos para politizar a questão da inovação e da tecnologia digital. Não deveriam rejeitar a tecnologia digital por si só, e sim aquela que é propriedade do capitalismo global neoliberal, que vem de cortesia com o Vale do Silício.

Você pretende fazer uma adaptação do podcast para um seriado?

Eu espero que aconteça. Não tenho nenhuma notícia para dar, mas tenho essa intenção em mente. Estamos muito carentes de mitos, mitos positivos e construtivos, na esquerda. Temos uma tendência a ser muito defensivos. E os mitos e a mitologia que temos são muito velhos: a Revolução Russa; a Revolução Chinesa; ou a Comuna de Paris. São mitologias interessantes, mas estão velhas.

E temos algo relativamente recente, de 50 anos atrás, da queda do governo Allende, que podemos recuperar, ainda tem pessoas vivas que estavam lá, e é importante pegar essa experiência, mostrar toda a sua tragédia e drama, mas também mostrar a coragem que aquelas pessoas tiveram. Elas tomaram as decisões certas, e pagaram caro por isso.

E é pra glorificar a tragédia e sacrifício delas que é preciso uma coisa mais visual, mais dramática, e não só um documentário, um livro, uma compilação de cartas históricas. É por isso que estou empenhado em experimentar um pouco com a forma dramática para transmitir essa mensagem.

Não temos muitas histórias sobre governos progressistas no cinema…

Temos histórias que são realmente trágicas, porque são sobre golpes e destituições. Mesmo no caso do Chile, tem diversos filmes feitos imediatamente depois do golpe, filmes políticos sobre pessoas desaparecidas, que foram torturadas e levadas ao Estádio Nacional. Tem filmes sobre o Pinochet e sobre como ele foi terrível. Tem filmes sobre a repressão, sobre a queda do Allende.

Todas são histórias importantes e não se deve minimizar a violência, as conspirações e todas as tentativas para derrubar governos eleitos democraticamente. Mas também temos que entender que nem tudo são golpes, destituições e repressão, há histórias positivas e inspiradoras, e temos que enaltecer isso.

Elas não focam nesses pequenos sucessos…

Não focam e não sabem que eles existiram. É muito difícil trazer à tona esse projeto porque a história está enterrada muito fundo em algum tipo de arquivo. Eu levei dois anos e 200 entrevistas para descobrir o que aconteceu. E é um trabalho bem árduo. É muito difícil desenterrar, mas uma vez que você consegue, provavelmente vai querer garantir que se torne um mito relevante, não o único, mas um dos mitos que são alicerce de um movimento alternativo promovendo uma sorte de socialismo digital relevante para a atualidade.

Recentemente, no Brasil, enfrentamos um grande desafio contra as big techs. Tivemos um projeto de lei contra as fake news. E o lobby das big techs, que não querem chegar a um acordo, interferiu muito no nosso Congresso. Como podemos enfrentar seu poder?

Acredito que, da mesma forma com que sempre enfrentamos o poder, com mobilização contra ele e mostrando que é um lobby econômico organizado. Nos primeiros 15 anos de existência das big techs, elas foram tratadas como uma não indústria. Pensamos que eram caras legais, com boas intenções, que davam conectividade gratuita para todo mundo. Você não tem que pagar pelo WhatsApp, tem todos esses lados positivos…

Satélites de internet em pequenos povoados…

Pois é, são lados positivos, assim como traficantes podem dar drogas de graça. É um lado positivo em muitos casos, né? Então temos que poder enxergar através dessa retórica disruptiva e identificar essas empresas como parte de um projeto muito mais feio ligado ao Pentágono, o deep state, Wall Street, capital global, exploração, privatização, tudo isso.

E acho que, sim, é importante questionar quanto dinheiro estão fazendo com informação, mas temos que ir além e olhar não só para a camada da informação, mas também para todos os serviços, que resultam na inteligência artificial, por exemplo, e que são criados a partir desses dados. Temos que questionar isso também. Porque, no fim, é lá que está o dinheiro. E é assim que essas empresas se tornam obstáculos para vias de desenvolvimento não neoliberal.

Estamos enfrentando agora quase o início de uma guerra entre China e EUA, e tudo começa na tecnologia. Taiwan está no centro dessa questão, porque desenvolveram um componente que é importante para todo tipo de tecnologia que temos hoje. Poderemos ter uma guerra por causa da tecnologia?

Eu não iria tão longe. A guerra que vai haver, se houver uma, será pelo choque entre as facções do capital. Então, nesse sentido, não deveríamos estar culpando a tecnologia por algo que, essencialmente, é produto das relações capitalistas e a geopolítica capitalista. Mas é claro que é importante enfatizar que a tecnologia de hoje, quando falamos em 5G, microchips, computação quântica, inteligência artificial tudo isso tem um componente político e o motivo por que ela tem esse componente político é que os EUA têm agora um rival, competindo por hegemonia. Hegemonia financeira, militar mas principalmente tecnológica.

E esse rival, claro, é a China. E por causa disso as questões que antes não eram um problema e nós meio que aceitávamos essa retórica global de que não deveria importar quem era o dono da indústria ou da estrutura tecnológica, agora essas questões começaram a ser politizadas por causa desse choque entre a hegemonia vigente e seu rival. E é muito importante que a gente entenda.

Voltando à questão das fake news, esse é um recurso que sustenta governos fascistas no mundo todo. E as big techs estão completamente envolvidas nisso, porque não querem perder o engajamento que as fake news geram para eles. Então, com big techs tão poderosas envolvidas nisso, elas poderiam sustentar por um longo período a ideia de governos fascistas ou de extrema direita pelo mundo? É uma parceria?

Olha, as big techs vão se alinhar com quem quer que lhes dê lucro. Se forem os fascistas, serão os fascistas. Se forem os vegetarianos, serão os vegetarianos. Então, nesse sentido são capitalistas que defendem oportunistas iguais, elas se alinharão a quem pagar as contas. É verdade que existem configurações bizarras. Nos EUA, por exemplo, muita gente de extrema direita pensa que as big techs são uma conspiração socialista, pensam que são comunistas. São acusados de censura e de promover causas socialistas.

Então não é tudo preto e branco. É claro que o Vale do Silício tem uma relação próxima com o Pentágono, com o deep state, Wall Street e todos esses atores. Mas não diria que essa aliança se reproduz em todos os países. A aliança entre o Vale do Silício e algum modelo neoliberal de acumulação capitalista é quase universal, mas a aliança entre a extrema direita e o Vale do Silício não é uma constante. Não tanto, em outros países, digo. Em alguns contextos, com certeza.

No contexto brasileiro, dá para ver como os apoiadores de Bolsonaro começaram a defender WhatsApp e Telegram porque acham que regular essas empresas pode prejudicá-los. Porque resultará na censura das comunicações desse grupo. Nos EUA, não é assim. Porque não há nenhuma lei que exija que o Facebook delete a conta ou os posts do Donald Trump. Fazem isso voluntariamente. E porque fazem voluntariamente por pressão social é que os grupos de extrema direita estadunidense pensam que é uma conspiração socialista e o Facebook é parte dela.

Outro assunto muito debatido é a evolução da inteligência artificial. Os donos de alguns projetos pediram uma pausa diante do medo de perder o controle sobre ela. Entrevistei um especialista do Brasil que me contou que esse pedido de trégua veio porque alguns estavam perdendo a corrida. Qual é o futuro da inteligência artificial?

O futuro da inteligência artificial depende de quanta resistência as grandes empresas tecnológicas irão enfrentar. Existe, claramente, um plano para aquecer os motores da privatização. Então todos os setores públicos, como educação, saúde, transporte, serão de alguma forma reconfigurados para integrar um componente de inteligência artificial. É isso que o Vale do Silício quer. É por isso que ficam falando de “inteligência artificial geral”. Não precisa ser assim.

Só precisamos conseguir ver além dessa retórica e fazer oposição. É aí que as lutas contra o neoliberalismo e a privatização também se tornam lutas contra as big techs. Elas devem convergir. E o problema é que muitas lutas contra as big techsfocam em outras questões. Focam na privacidade, da antivigilância, que são questões importantes, mas não são político-econômicas. E acho que é importante para nós podermos gerar um futuro onde a inteligência artificial sirva à causa da solidariedade. Essencialmente, significa repolitizar a luta contra as big techs. Mas acredito que não há um caminho predeterminado.

A inteligência artificial também pode servir a causas socialistas, mas seria um tipo bem diferente de inteligência artificial. Seria uma que reconheça que a inteligência é algo social. Não é propriedade de um gênio individual que tem ideias algorítmicas em sua mente. É o produto do crescimento em sociedade daquela pessoa, de seu diálogo com outros, de se beneficiar da educação institucional etc. Também significa que o modo de tornar a sociedade mais inteligente – mais inteligente artificialmente – também é pelo fomento e criação de instituições e não só pela geração de dados.

Corremos o risco de perder o controle sobre ela?

Corremos esse risco se for controlada pelo capitalismo, e ela é. Não acredito na ideia da inteligência artificial assumir uma lógica própria. Isso é uma fantasia inventada pelo Vale do Silício para nos distrair do fato de que são eles que têm o controle. A inteligência artificial não tem agência. Porque eles estão no comando, as big techs. Eles podem matar a inteligência artificial amanhã, se quiserem. É só puxar o cabo.

Qual o papel do Brasil na tecnologia? Onde estamos situados nessa questão hoje?

O Brasil é um ator importante na economia global. É um dos principais atores na América Latina. E vem historicamente questionando, desde o governo João Goulart, antes do golpe, e questionou as corporações internacionais. Então acredito que tem um grande poder simbólico. Também é o berço de abordagens intelectuais interessantes, como a teoria da dependência, que nos ajuda a entender a tecnologia como a principal frente de criação de novas dependências.

Então, eu diria que o Brasil é extremamente importante. É muito importante assegurar que o governo atual, do Lula, não fique nesse modo meio centrista para sempre, que se incline para a esquerda um pouco mais. Então é preciso pressioná-lo para se arriscar com projetos mais desafiadores politicamente que também desafiem de maneira frontal e direta o poder das big techs.

Você falou sobre os movimentos sociais e seu papel nessa luta pela tecnologia e pela democratização da tecnologia. Neste momento, eles estão na posição de lutar contra essas grandes instituições, governos, big techs para democratizar a tecnologia?

Alguns estão. Novamente, acho que os movimentos sociais historicamente encararam a tecnologia como um recurso para as suas próprias pautas. E é uma atitude comum para eles. Encaram a tecnologia como algo útil para mobilizar pessoas e muitas vezes isso os leva a decisões e táticas erradas, porque quando veem, por exemplo, o WhatsApp, enxergam seu potencial mobilizador e não o fato de que é a fronteira para um novo tipo de capitalismo.

É importante conscientizar os movimentos sociais dessa dimensão geopolítica da tecnologia, de que não se trata só de comunicação, são novas formas de exploração e acumulação. Mas quanto às questões de vigilância tecnológica, acredito que movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) provavelmente têm muito a ensinar a movimentos do resto do mundo.

Porque encaram essas questões diariamente e trabalham com elas em nível nacional e pensam no uso da tecnologia de uma forma mais sistêmica e geopolítica que a maioria dos movimentos do Norte Global.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Do Brasil de Fato

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