O APAGÃO: A obra do pastor que comanda o MEC

Milton Ribeiro estava abatido quando entrou no auditório. Fazia uma hora que se encerrara o primeiro dia de provas do Enem, o teste que avalia o nível de conhecimento de milhões de estudantes do ensino médio. Como é praxe para os ministros da Educação, ele estava no auditório do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para dar uma coletiva à imprensa sobre os resultados do exame, que fora aplicado naquele domingo, 17 de janeiro deste ano. Ao seu lado, estava o presidente do instituto, Alexandre Lopes. Ribeiro não tinha boas notícias. Dos 5,5 milhões de inscritos, mais da metade (51,5%) não compareceu ao exame, a maior abstenção da história do Enem. Para piorar, houve casos de alunos impedidos de fazer a prova porque se depararam com salas abarrotadas. A má repercussão na imprensa só não monopolizou o noticiário porque, desde cedo, o assunto do dia era o começo da vacinação contra a Covid-19, em São Paulo.

Diante dos jornalistas, o ministro tentou apresentar um cenário positivo. Reconheceu que houve “dificuldades e ruídos”, mas atribuiu tudo a “um trabalho de mídia contrário ao Enem”. De acordo com sua interpretação, a imprensa, ao questionar a realização da prova em meio à escalada da pandemia, teria desencorajado o comparecimento dos alunos. Ribeiro elogiou o trabalho do Inep e disse que valeu a pena o esforço para evitar um novo adiamento do exame. “A esperança que se adia adoece o coração”, concluiu, citando a Bíblia. Apesar de tudo, era impossível esconder que o Enem fora o seu primeiro fracasso público no MEC, cujo comando assumira havia seis meses.

O ministro é um homem afável de 63 anos, calvo e com um bigode espesso, traços que lhe dão a aparência do personagem Leôncio, do desenho Pica-Pau. Tem a voz mansa, e costuma cerrar os olhos quando deseja emprestar ênfase ao que está falando – um trejeito que adquiriu em suas quase quatro décadas como pastor evangélico. Naquele domingo, porém, Ribeiro não estava manso. O ministro chegara ao Inep depois de uma longa jornada. Pela manhã, viajou a Curitiba para acompanhar a abertura dos portões para o Enem. Depois voou para Goiânia, onde visitou um colégio da Polícia Militar. À noite, quando desembarcou em Brasília, já sabia que o evento não fora nenhum sucesso e se dirigiu para a cobertura do prédio do Inep, onde fica o gabinete do presidente da autarquia. Ali, reuniu-se com as cúpulas do MEC e do Inep, antes que todos descessem para a coletiva.

A portas fechadas, sem subir o tom de voz, Ribeiro reclamou que não fora alertado para os problemas do Enem e deixou claro quem era o alvo de sua irritação: o presidente do Inep, Alexandre Lopes. “O ministro não foi consultado sobre a aplicação da prova”, queixou-se, falando de si mesmo na terceira pessoa, como de hábito. “Se soubesse que haveria lotação, não teria aprovado o plano.” A declaração foi recebida com espanto pelos diretores do Inep, segundo a reconstituição da reunião feita à piauí por três servidores que pediram anonimato porque ainda trabalham no serviço público. Lopes retrucou, lembrando que comunicara o MEC sobre todos os passos da preparação do Enem. O clima azedou, e a relação entre os dois, que nunca fora boa, ficou ainda mais desgastada.

Alexandre Lopes é um servidor público de carreira formado em engenharia. Mesmo sem qualquer experiência na área de educação, foi nomeado pelo então ministro Abraham Weintraub para comandar o Inep, autarquia criada em 1937 e que, desde os anos 1990, passou a cumprir um papel altamente estratégico: é o órgão responsável por produzir os principais indicadores da educação brasileira. Em Brasília, diz-se que o Inep é o lugar que concentra o maior número de mestres e doutores por metro quadrado no país. O instituto funciona como termômetro e bússola para a educação. Produz uma massa impressionante de dados que, bem analisados, são um elemento central na elaboração de políticas públicas. Da redemocratização até o governo Bolsonaro, o Inep jamais fora presidido por um neófito em educação. Quando Weintraub deixou o MEC às pressas e fugiu para os Estados Unidos com medo de ser preso, Alexandre Lopes continuou no cargo – mais por inércia do que por ação.

Desde o início, Ribeiro tratou Lopes como se fosse um subalterno ocupando uma função secundária. Levou 36 dias para lhe conceder a primeira audiência, numa época em que os preparativos para o Enem já deviam estar de vento em popa. “Era uma angústia”, relembra um servidor do Inep, que pediu para não ser identificado a fim de evitar perseguição. “Quando se está organizando o Enem, uma semana é uma eternidade.” Enquanto ignorava o Inep, o novo ministro cumpria uma agenda banal. Numa ocasião, chegou a visitar as obras de uma ponte em sua cidade natal, a praiana São Vicente (SP). Em outra, posou para fotos com o presidente Jair Bolsonaro ao lado do desenho de uma caveira, na sede do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), no Rio de Janeiro.

Nos seis meses que antecederam a aplicação da prova do Enem, Ribeiro preferiu designar secretários para atender aos pedidos de audiência do Inep. Em geral, só se encontrava com Lopes nas reuniões quinzenais de toda a cúpula do MEC, nas quais poucas vezes falou sobre o planejamento do Enem, mas reclamou com frequência do custo “astronômico” da prova, segundo atestaram à piauí dois servidores que participavam dos encontros. (O Enem custou 682 milhões de reais. O custo adicional com a pandemia, em gastos com máscaras e álcool em gel, foi de 70 milhões.)

O ministro estava tão desinformado que, na mesma reunião em que se atritou com Lopes, chegou a perguntar se o próximo Enem já poderia ser 100% digital. A dúvida causou mal-estar entre os presentes por denotar um desconhecimento abissal dos desafios para introduzir a novidade. Em janeiro, apenas 100 mil estudantes, ou 2% do total de inscritos, fez o Enem Digital, ainda em fase de teste. Antes de universalizar a versão digital, meta prevista originalmente apenas para 2026, será preciso garantir que todas as escolas públicas estejam equipadas com computadores e acesso estável à internet – um cenário ainda distante da realidade brasileira.

No domingo seguinte, aplicou-se a segunda parte da prova do Enem. Dessa vez, o ministro sequer foi ao Inep para a tradicional coletiva à imprensa. À noite, enquanto Lopes fazia um balanço geral e respondia sozinho às perguntas dos jornalistas, Ribeiro estava em Santos (SP), participando de um culto na Igreja Presbiteriana Jardim de Oração, da qual é pastor. No púlpito, afirmou que seu trabalho à frente do MEC era “mais espiritual do que político”. O vídeo com sua declaração foi divulgado no canal de YouTube da igreja, mas, diante da má repercussão, acabou retirado.

Assim que o Enem foi encerrado no fim de fevereiro, depois da reaplicação da prova para quem não pôde comparecer, Alexandre Lopes e seu chefe de gabinete, Marcelo Pontes, foram demitidos. Ao perder a cúpula de uma hora para outra, o Inep ficou paralisado.

Até que as coisas começaram a piorar.

“Eu gostaria de dizer qual é meu sentimento e minha visão a respeito do Inep”, enunciou Milton Ribeiro, antes de começar seu discurso em uma reunião com servidores da autarquia, no dia 22 de abril. Era o primeiro encontro com os funcionários do Inep desde a demissão da cúpula no fim de fevereiro. Ao lado do ministro, estava o novo presidente do instituto, Danilo Dupas, que ocupou diferentes cargos na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, da qual Ribeiro foi vice-reitor. Com eles, estavam outros diretores do Inep, todos reunidos em torno de uma longa mesa de madeira. Uma centena de servidores participava da reunião por videoconferência.

O encontro fora anunciado como uma conversa entre os funcionários e a nova gestão, mas nenhum servidor teve autorização para falar. Ribeiro abriu os trabalhos com uma mensagem clara: “O Inep não tem política própria”, afirmou, categórico. “As políticas educacionais no Brasil são realizadas lá no gabinete do ministro e têm que vir em consonância com a visão educacional do senhor presidente da República.” Em seguida, passou a ler um texto. Embora já tivesse falado por alguns minutos, fez nova introdução, nova saudação. “Bom dia a todos os presentes nesta videoconferência…”

No texto, elogiou o Inep pelo trabalho de mostrar quais são os cursos de graduação mais disputados no país e, sobretudo, os menos disputados. “O governo brasileiro não pode responder a perguntas que a sociedade não está fazendo”, disse, insinuando que não faz sentido manter cursos menos concorridos. Por fim, buscou uma inspiração bíblica – “O homem que confia em Deus tem, não por ele, mas por essa confiança, uma grande benção”. Em seguida, dirigiu-se a Dupas. Sem dar exemplos concretos, disse que decisões tomadas em gestões anteriores do Inep “não estavam em concordância” com os ideais do governo e, por isso, quando o novo presidente tivesse uma escolha a fazer, deveria optar pelo “mais próximo possível da visão que nós temos”. Dupas é o quarto presidente da autarquia em apenas dois anos.

A reunião foi o ponto culminante de uma sequência de intervenções que gradualmente paralisaram o Inep. Logo depois da nomeação de Dupas, Ribeiro indicou o coronel Alexandre Gomes da Silva, conhecido como GD, seu nome de guerra na Aeronáutica, para ocupar a diretoria que cuida do Enem, uma das mais importantes do instituto. GD, especialista em investigar acidentes aéreos, nunca trabalhou com educação. Enquanto isso, quadros técnicos foram varridos para fora. Camilo Mussi, diretor de Tecnologia do Inep desde 2016 e um dos responsáveis pelo Enem Digital, foi exonerado. Sueli Macedo, servidora com dez anos de casa que trabalhava na avaliação do ensino superior, também foi demitida. Em protesto contra a saída dela, quatro servidores, todos técnicos de carreira, pediram demissão.

A intervenção levou sete ex-ministros da Educação dos governos Lula, Dilma e Temer a lançarem um manifesto alertando que o Inep vinha sendo “gravemente enfraquecido” e estava “em perigo”. Em toda a sua história, talvez o Inep só tenha enfrentado uma situação tão precária durante o governo de Fernando Collor (1990-92), que cortou verbas a ponto de quase asfixiar o instituto. De lá para cá, o Inep se fortaleceu, criou os exames que avaliam todos os níveis de educação – Saeb para a educação básica, Enem para o ensino médio, Enade para o ensino superior – e construiu um vasto banco de dados, capaz de informar a situação de cada escola, em cada cidade, em cada estado, produzindo uma radiografia nítida do ensino em todo o país.

“A gente trabalhou muito pelo Inep, e estamos vendo tudo isso ser posto de lado. É algo que nos entristece muito”, diz Alexandre Retamal Barbosa, que preside a associação dos servidores da autarquia. “Os outros governos sempre souberam jogar o jogo. A gente botava a bola na marca do pênalti, o ministro da Educação chutava para o gol. Hoje a gente faz isso, mas ninguém chuta”, resume Alexandre André dos Santos, pesquisador do Inep desde 2008 e ex-diretor do departamento que elabora o Enem.

Em meados de maio ainda não se sabia se o próximo Enem, cujo planejamento já devia estar em pleno vapor, seria aplicado neste ano ou em 2022. Nesse meio-tempo, vazou para a imprensa o conteúdo de uma reunião em que Dupas dera a entender que o Enem seria adiado. Instalou-se o caos. Servidores do MEC foram pegos de surpresa. Os secretários de Educação do país inteiro, alarmados com a notícia, tentavam contato com o MEC para esclarecer a questão. Um adiamento do Enem é coisa séria: com o atraso da prova, atrasa-se a divulgação dos resultados e, com isso, os alunos podem perder o prazo para se inscrever nos programas de financiamento estudantil, como Prouni e Fies, que são fundamentais para viabilizar o ingresso de alunos de baixa renda em faculdades particulares. Com efeito cascata, ainda atrasa o início do ano letivo nas universidades.

O Inep negou o adiamento da prova, e servidores do MEC foram escalados para apagar o incêndio, afirmando que a prova aconteceria, sim, neste ano. Pouco depois, no entanto, foram desmentidos. O jornal Folha de S.Paulo teve acesso a ofícios internos mostrando que o adiamento já estava decidido. O Enem seria realizado nos dias 16 e 23 de janeiro de 2022. “A vontade naquela hora foi de jogar a toalha”, desabafou um servidor que acompanhou o assunto de perto. Pressionado, o ministro acabou anunciando que a prova seria aplicada ainda neste ano, em 21 e 28 de novembro. As inscrições foram abertas em 30 de junho e encerradas em 14 de julho, mas os especialistas desconfiam que a aplicação da prova poderá ser um atropelo igual, ou maior, ao de janeiro. O número de inscritos – apenas 4 milhões – foi o menor desde que o Enem adotou o atual formato, em 2009.

Ao assumir a gestão no Inep, Danilo Dupas fez um conjunto de nomeações que os servidores apelidaram de “carreta furacão da educação”. Era uma referência à Carreta Furacão, um trem da alegria formado por animadores infantis fantasiados de personagens tão diversos quanto díspares – do Homem Aranha ao Fofão –, cuja lógica ninguém entende. Para o Conselho Consultivo do Inep, órgão que aprova as contas e o planejamento do instituto, Dupas nomeou o deputado estadual Tenente Coimbra (PSL-SP), defensor da militarização das escolas públicas, e o pastor Roque Albuquerque, da Igreja Batista do Calvário, a quem Bolsonaro nomeara reitor pro tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Em seguida, à “carreta furacão da educação” somou-se uma manobra inédita. O coordenador-geral do Enem, Eduardo Carvalho de Sousa, descobriu que Dupas e o coronel GD estavam montando uma “lista paralela” de pessoas para elaborar as provas do Enem.

piauí teve acesso à relação de 22 nomes. Entre eles, estava o pastor de uma igreja pentecostal que dá aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e nunca trabalhou na elaboração de exames do Inep. A lista incluía também três militantes do grupo bolsonarista Docentes pela Liberdade, que defende a atuação de professores de direita nas universidades e a elaboração de “materiais didáticos menos ideológicos” – ou seja, “menos ideológicos” significa “com ideologia de direita”. Os líderes do Docentes pela Liberdade têm sido bem acolhidos no governo. Já foram recebidos em audiência por Bolsonaro no Palácio do Planalto e, no começo do ano, reuniram-se com Milton Ribeiro no MEC. A lista paralela trazia ainda os nomes de duas professoras de uma franquia de escolas católicas e cinco professores do Mackenzie, a alma mater do ministro que se tornou a principal fornecedora de mão de obra para o MEC.

Desde que o Enem começou a ser aplicado há mais de duas décadas, nunca houve uma interferência dessa gravidade. Os servidores e docentes que elaboram as provas do Enem são escolhidos por meio de um processo rigoroso. O Inep faz uma chamada pública aberta a todos os professores e seleciona profissionais de várias disciplinas. Durante um mês, os selecionados estudam como são feitos os testes e seus critérios pedagógicos – e não ideológicos. Encerrada essa etapa, os selecionados fazem questões que são depositadas no Banco Nacional de Itens. Mas esse não é o fim do processo; é apenas o início.

A seleção das perguntas que vão efetivamente compor a prova também é rigorosa. Primeiro, as questões são revisadas por outros professores e testadas com alunos do ensino médio em suas escolas, sem que eles saibam do teste. Com base nesse pré-teste, os especialistas vão avaliando o grau de dificuldade de cada questão de modo a preparar uma prova com perguntas fáceis, médias e difíceis, com base na teoria da resposta ao item (TRI). É uma metodologia que sinaliza se o aluno chutou ou não a resposta para uma determinada questão. Por exemplo: se um estudante erra várias questões fáceis e acerta uma difícil, o sistema aponta a estranheza. Outro exemplo: se erra uma resposta e acerta a seguinte é sinal de que chutou, pois o conhecimento da pergunta que acertou é apenas um complemento da pergunta anterior.

Com esse sistema complexo, alguns elaboradores da prova do Enem podem ser chamados para a mesma tarefa no ano seguinte, ao lado de novos selecionados, de tal modo que, nos últimos dez anos, o Inep criou uma base de professores altamente especializados em montar o exame. É um amadorismo imaginar que é possível escalar qualquer professor, sem um treinamento prévio, para cumprir a tarefa. Também é um primarismo pensar que se pode incluir no teste uma pergunta aleatória, ou mesmo excluir uma pergunta qualquer, sem levar em conta toda a construção pedagógica da prova. Isso destrói o equilíbrio do teste – e afeta a avaliação do desempenho de cada aluno.

Ao tomar conhecimento da trama que se armava, Eduardo de Sousa, o coordenador do Enem, convocou uma videoconferência com sua equipe, cerca de vinte servidores, e denunciou a “lista paralela” que Dupas e o coronel GD estavam montando. O coordenador ameaçou se demitir, os servidores cruzaram os braços – e o MEC voltou atrás. Souza continua na função de coordenador, mas, sem qualquer explicação técnica, alguns nomes foram excluídos da lista oficial de elaboradores da prova do Enem. Procurado pela piauí para explicar a tentativa de intervenção na prova, o coronel GD não quis falar. Dupas, presidente do Inep, também preferiu ficar em silêncio.

Ainda assim, em entrevista à CNN em junho, o ministro Milton Ribeiro avisou que iria revisar “pessoalmente” a prova para barrar “questões ideológicas”. No dia seguinte, foi premiado com uma participação na live semanal de Bolsonaro. “Vai ter Enem esse ano ou não?”, perguntou Bolsonaro, sentado entre Ribeiro e um tradutor de libras. “Claro que vai, presidente!”, respondeu o ministro, um pouco deslumbrado. “Você falou que não tem nada de ideologia esse ano, acabou aquela historinha… não vou nem falar aqui, porque pega mal”, continuou o presidente. Ribeiro sorria.

Na semana seguinte, ao ser apertado em uma audiência na Câmara dos Deputados, Ribeiro recuou da intenção de “revisar” a prova. “Abri mão [de olhar a prova] para cessar toda e qualquer interpretação que alguém possa ter de uma censura prévia ou algo do tipo. De maneira alguma eu terei acesso às questões do Enem.” Dias depois, no entanto, veio a público que o Inep planejava montar uma “comissão permanente” para analisar a prova e barrar “questões subjetivas” e proteger “valores morais”. De novo, com a má repercussão, a ideia foi cancelada. A portaria que criava a tal comissão foi engavetada. Até segunda ordem.

“Nenhum ministro olha a prova. E se tem vazamento de questão depois? Pela segurança do próprio ministro, ele não pode olhar. Nem ele nem o presidente da República”, explica Rossieli Soares da Silva, que foi ministro da Educação no governo de Michel Temer e hoje é secretário de Educação do estado de São Paulo. “Imagina se o ministro da Educação da Inglaterra vai olhar o teor de cada questão dos A-Levels [equivalente inglês do Enem]?”, diz Maria Helena Guimarães de Castro, a ex-presidente do Inep que hoje lidera o Conselho Nacional de Educação, órgão que auxilia o governo federal, os estados e os municípios nas políticas educacionais. No meio do turbilhão, o coronel GD pediu demissão sem dar explicações públicas. Ficou três meses no cargo e deixou uma vacância bem-vinda. “Desde que esse governo assumiu, nossos momentos mais produtivos foram quando não tínhamos um diretor”, disse um ex-subordinado do coronel que pediu anonimato para evitar perseguição dentro do Inep.

Com o intuito de impedir o governo de fazer interferência política e ideológica no Inep, há um movimento no Congresso para aprovar um projeto que lhe dá autonomia em relação ao MEC. A proposta, de autoria da deputada Paula Belmonte (Cidadania-DF), estabelece a criação de uma lista tríplice para a escolha do presidente da autarquia. A lista seria votada pelos servidores. Em outro projeto, a senadora Leila do Vôlei (PSB-DF) propõe que o Inep, ao lado de outros institutos federais, como IBGE e o Ipea, torne-se instituição permanente de Estado. Seus presidentes teriam que ser aprovados pelo Senado e exerceriam um mandato fixo de quatro anos.

Aobsessão de Jair Bolsonaro pelo conteúdo da prova do Enem vem de longe. Na campanha, seu programa de governo – na verdade uma apresentação de PowerPoint repleta de exclamações e imagens de mãos dadas – fazia o seguinte diagnóstico: “Um dos maiores males atuais é a forte doutrinação.” Outro trecho, escrito em letras maiúsculas vermelhas, gritava: “Mais matemática, ciências e português, sem doutrinação e sexualização precoce.” Em novembro de 2018, no mês seguinte à sua eleição, Bolsonaro já dizia que acabaria com as “questões ideológicas” no Enem.

O primeiro escalado para cumprir a missão do presidente foi o professor Marcus Vinícius Rodrigues, 66 anos, um cearense desbocado de cabelos grisalhos. Rodrigues foi indicado pelos militares para presidir o Inep. Engenheiro especializado em administração de empresas e autor de uma série de livros sobre gestão, Rodrigues assumiu o instituto prometendo um “choque de gestão”. Como nunca trabalhara com educação antes, tratou de aprender sobre o Enem antes da primeira reunião com servidores do Inep. Durante um fim de semana de janeiro de 2019, fechou-se num quarto do hotel Mercure, em Brasília e, enquanto bebia uísque, fez a prova do Enem. “Em algumas áreas eu tirei nota boa, em outras não”, resume ele.

Dias depois, Rodrigues visitou o Inep e convocou a diretoria que cuida do Enem para uma reunião. Diante de umas oitenta pessoas que lotavam a sala, começou a malhar o exame. Contou que fizera a prova num fim de semana e se deparara com questões intoleráveis – entre elas, uma que mostrava uma garota, segundo ele, em trajes provocantes. “As urnas mostraram que a população brasileira é conservadora”, disse. “Não vamos mais tolerar itens desse tipo.” Dito e feito. Rodrigues criou uma comissão para analisar as perguntas do Enem – nos mesmos moldes da portaria que está na gaveta, na atual gestão – e excluiu 66 questões da prova.

Os membros da comissão – um procurador de Justiça, um diretor do Inep e um ex-aluno de Ricardo Vélez Rodríguez, então ministro da Educação – usaram carimbos de “sim” e “não” sobre as perguntas e preencheram uma planilha de Excel com as justificativas. As questões excluídas jamais foram reveladas. No entanto, como os técnicos do Inep fizeram um contraparecer pedindo que as questões fossem reabilitadas, é possível saber as justificativas para as exclusões. Uma questão que falava sobre camisinha na prevenção à Aids foi barrada com o seguinte comentário: “Gera polêmica desnecessária.” Numa outra pergunta, baseada em letra de música de Chico Buarque (não se sabe qual), a explicação foi: “Leitura direcionada da história / Sugere-se substituir ditadura por regime militar.” Outra questão foi barrada porque “gera polêmica desnecessária em relação à ideia de casal”. E outra porque “fere o sentimento religioso”. As justificativas têm incômoda semelhança com aquelas usadas pelos censores que, na ditadura militar, faziam plantão nas redações dos jornais para decidir quais reportagens podiam ser publicadas. O contraparecer dos técnicos foi ignorado. As exclusões foram mantidas.

O general da reserva Francisco Mamede de Brito Filho, que trabalhou como chefe de gabinete de Rodrigues, se lembra do clima de caça às bruxas que se instalou no Inep. Na época, um dos caçadores era o professor de economia Murilo Resende Ferreira, um jovem olavista, como são chamados os seguidores do ex-astrólogo Olavo de Carvalho. “Em algumas reuniões, ele mostrava interesse muito forte em descobrir quem tinha feito uma questão do Enem que falava do pajubá, o dialeto LGBTQIA+. Ele dizia que ia eliminar essa pessoa do Inep.” (Ferreira participou da transição de governo, mas teve vida curta no MEC. Depois de ser nomeado para a diretoria que cuidava do Enem, acabou ceifado do cargo, no dia seguinte, por acusações de plágio em um artigo de 2018 e pela pressão que sua nomeação criou sobre o governo.)

“O que a gente queria era que as questões medissem apenas conhecimento”, justifica-se Rodrigues, que, depois de três meses na presidência do Inep, voltou à carreira de professor e palestrante no Rio de Janeiro. “Pega uma garotinha dessas de Ipanema, com um shortinho lindo que a gente adora olhar, e leva para uma cidade pequena… tá me entendendo? É uma outra realidade, para pessoas do interior isso não é normal. Nós não podemos mexer com valores.” Com esse entendimento do mundo, Rodrigues, ele próprio, está alarmado com o desmonte do Inep conduzido pelo ministro Milton Ribeiro. “Veja, o pastor é um cara do bem. Mas é um teólogo que não sabe nada de educação. Ele está esvaziando o Inep, onde a cada quatro funcionários dois são doutores”, diz o professor. “O MEC hoje está cheio de gente que sabe rezar, mas não sabe nada do traçado. Uma coisa dessas não existe.”

O general Brito Filho, que ficou apenas quatro meses no Inep, também saiu atordoado com sua experiência no governo. “Vi muita coisa no Exército, mas nesses meses no Inep…”, diz ele, sem completar a frase. “Jamais imaginei algo assim.” Convidado a elaborar sobre suas impressões, o general diz: “Nessa guerra cultural dos olavistas, eles têm a consciência de que um pilar essencial é a educação. Então eles pensam: ‘A educação do Brasil está aparelhada por comunistas com ideias que devemos combater.’ O que fazer então? É política de terra arrasada. Essa é a visão do governo.”

No início do governo Bolsonaro, o MEC caiu nas mãos de duas turmas: os militares e os olavistas. Ricardo Vélez Rodríguez, o primeiro ministro da Educação, chegou ao cargo por indicação de Olavo de Carvalho, o mestre ideológico da família Bolsonaro. Ficou três meses no posto, derrubado pelos próprios olavistas, que começaram a desconfiar que o ministro fora cooptado pelos militares. Em seu lugar, entrou Abraham Weintraub, apoiado pelos radicais ideológicos do bolsonarismo, e reduziu o espaço dos militares. No auge da presença militar na cúpula do MEC, ocupavam 21 cargos comissionados. Caíram para nove.

Com a posse de Milton Ribeiro, militares e olavistas passaram a conviver cada vez mais com uma terceira força – a ala evangélica, que, do ponto de vista ideológico, se confunde com a olavista, mas não se mistura com ela. Hoje, os militares estão quase confinados à diretoria que se ocupa em militarizar as escolas públicas. Eles planejam financiar a implantação de 216 escolas desse tipo em todo o país até 2023. Dizem que o ensino é melhor e invocam os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb): em média, os colégios militares têm notas mais altas que os demais colégios. A comparação, no entanto, é enganadora.

As escolas militares – frequentemente confundidas com escolas cívico-militares, nas quais a contribuição da caserna se limita à gestão e à disciplina – formam um mundo à parte: são apenas 14 escolas e têm 15 mil alunos em todo o país, enquanto as escolas públicas – só as públicas – chegam a 138 mil e reúnem 38,5 milhões de estudantes. Comparar essas duas realidades é como traçar um paralelo entre a Floresta Amazônica e uma pracinha de bairro. Além disso, as escolas militares são financiadas pelas Forças Armadas e selecionam os alunos por meio de concursos – enquanto as escolas públicas são abertas a todos.

“O governo usa o exemplo dos colégios militares, que são um universo restrito, excepcional, para vender uma falsa solução”, afirma João Marcelo Borges, pesquisador em educação da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro. Os colégios cívico-militares, que imitam certos traços das escolas militares, também são uma realidade à parte e constituem uma minoria absoluta. Em geral, têm orçamento mais polpudo – e, quando se militarizam, o MEC ainda lhes premia com 1 milhão de reais já na largada. “Mesmo assim, como regra geral, os colégios cívico-militares não têm resultados acima da média. Isso varia muito”, diz Borges.

Com a ascensão dos evangélicos, os olavistas também perderam espaço. Ficaram quase inteiramente reduzidos à Secretaria de Alfabetização, criada no governo Bolsonaro especialmente para abrigá-los. Antes, as questões relativas à alfabetização eram tratadas pela Secretaria de Educação Básica, mas, desde o surgimento da secretaria dos olavistas, criou-se uma duplicidade – e, quando se trata do ensino de ler e escrever, ninguém mais sabe ao certo quem deve decidir o quê. O comando da Secretaria de Alfabetização foi entregue ao professor Carlos Nadalim, apadrinhado pelos filhos de Bolsonaro. Ele é católico, ex-aluno de Olavo de Carvalho, vive com discrição e raramente dá entrevistas. Antes de chegar ao MEC, Nadalim trabalhava como coordenador do Mundo do Balão Mágico, uma escola fundada por sua família, em Londrina (PR). Seu maior objetivo é acabar com o chamado “método construtivista” e implantar o “método fônico”.

O modelo fônico, mais antigo e tradicional, prioriza o som das letras e sílabas, enquanto o construtivista – também chamado de método global, e às vezes de método Paulo Freire – valoriza o significado das palavras e do texto, para depois decompô-lo em partes. Os adeptos do método fônico no governo acreditam que os construtivistas não querem apenas alfabetizar as crianças, mas doutriná-las e introduzi-las no mundo marxista do antagonismo de classes. Nadalim já deu a entender que o método construtivista é coisa de comunista e, em suas palavras, é “uma oportunidade para ensinar outras coisas”.

Há um debate fértil sobre as vantagens e desvantagens de cada modelo, mas no MEC de hoje a discussão tornou-se apenas uma guerra ideológica. “É uma pena”, lamenta Augusto Buchweitz, pesquisador na área da neurociência, membro do Conselho Nacional de Educação e grande defensor do método fônico. “É uma questão de evidências”, explica ele. “As pessoas me chamam de bolsonarista, olavista, mas nunca fui. É lamentável que isso tenha virado pauta da direita. Se a esquerda tivesse abordado essa questão antes, não seria assim.”

Como o sistema de alfabetização é uma escolha de cada escola, o MEC criou um programa que oferece recompensa financeira para quem optar pelo “método fônico”. Lançada no ano passado, a iniciativa já teve a adesão de 83% dos 5 mil municípios em vinte estados. Mas os especialistas em educação dizem que isso não alterou a realidade de modo substancial, mesmo porque há municípios que aderem ao programa, mas não mudam o método de alfabetizar. “Diante das expectativas que tentaram criar, a política de alfabetização do governo, até agora, foi um fracasso. Se eles quisessem mudar as coisas, deveriam dialogar e convencer as redes, em vez de ir à guerra”, diz João Marcelo Borges, da FGV. Luiz Antonio Tozi, secretário executivo na gestão de Vélez Rodríguez, concorda. “O Nadalim é uma bandeira fincada no MEC. Tem orçamento pequeno, pouca capacidade de fazer mudanças. Por isso, ninguém o tirou de lá até hoje.”

Consideradas todas as alas atuantes no MEC, a dos evangélicos é a força ideológica preponderante hoje em dia. Dos nove assessores especiais do ministro, ao menos três são evangélicos. Um deles é o policial militar aposentado Odimar Barreto dos Santos, também pastor da Igreja Presbiteriana Jardim de Oração, a mesma do ministro. Barreto não tem formação na área educacional, mas é mestre em “pregação do Novo Testamento”. Outro é Gustavo Brasileiro. Suplente de deputado estadual em Minas Gerais pelo Patriota, ele também não tem formação na área pedagógica. Seu maior trunfo é ser filho do pastor Roberto Brasileiro, presidente da Igreja Presbiteriana do Brasil e de uma fundação que financia instituições privadas de ensino em Patrocínio (MG). E, claro: tanto Gustavo Brasileiro quanto Odimar Barreto estudaram no Mackenzie.

A proteção aos evangélicos já produziu, inclusive, um escândalo, revelado pela Folha de S.Paulo. Em outubro de 2020, o então presidente do Inep, Alexandre Lopes, convocou seus diretores para uma videoconferência e fez uma denúncia grave, também reconstituída para a piauí por três servidores. Lopes disse que recebera um telefonema do secretário-executivo Victor Godoy, com uma ordem e uma ameaça do ministro. A ordem: o Inep deveria transferir imediatamente para o MEC a investigação de uma fraude no Enade, o exame do ensino superior. A apuração dizia respeito a uma denúncia anônima segundo a qual os estudantes do curso de biomedicina do Centro Universitário Filadélfia (UniFil), de Londrina (PR), tinham tido acesso às questões do Enade com antecedência. A ameaça: se alguém enviasse o caso para a Polícia Federal, seria demitido. Para se preservar, Lopes obedeceu à ordem e mandou a investigação para o ministério.

Os indícios de fraude eram contundentes. Primeiro: uma das pessoas que participou da comissão do Inep para avaliar o conteúdo da prova foi Karina Gualtieri, que vem a ser coordenadora de biomedicina da UniFil. Isso gerou a suspeita de que ela poderia ter vazado as perguntas do teste para beneficiar sua faculdade. Segundo: os alunos do curso tiraram notas excelentes na parte da prova que avaliou conhecimentos específicos de biomedicina – justamente o trecho a que Gualtieri teve acesso. Em média, cravaram 87,3 pontos, enquanto alunos dos cursos mais bem avaliados do país ficaram com média 53,8. Terceiro: nas questões de conhecimentos gerais – às quais Gualtieri não teve acesso – o pessoal da UniFil teve média de 48,5, abaixo dos 50,3 dos cursos mais bem avaliados. Quarto: os alunos da UniFil tiveram esse mesmo desempenho – excelente nas questões específicas, medíocre nas questões gerais – no Enade anterior, aplicado em 2016, justamente o ano em que Gualtieri passou a integrar a comissão da prova. Quinto: em 2013, quando ela ainda não fazia parte da análise da prova, o desempenho da Unifil ficou na média das demais faculdades.

Os dois principais dirigentes da UniFil são os irmãos Eleazar e Osni Ferreira, que é pastor presbiteriano. Eles já foram recebidos pelo ministro, com quem se dão bem. Dias depois da audiência, inclusive, o ministro visitou o campus da UniFil, deu uma aula magna e participou de um culto na igreja de Osni. Danilo Dupas, homem de confiança de Ribeiro que então trabalhava numa secretaria de supervisão do ensino superior, também visitou a UniFil – em seis meses naquele cargo, Dupas nunca visitou nenhum outro campus de nenhuma outra universidade. O resultado do caso: o MEC diz que apurou tudo e “os indícios de fraude não foram comprovados”, mas até hoje não divulgou os documentos da investigação. Diz que os enviou ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal. Procurados, Gualtieri, os irmãos Ferreira, o ex-presidente do Inep e o ministro não quiseram falar.

Quando Weintraub fugiu para os Estados Unidos, a bancada evangélica logo entrou em ação para indicar um dos seus ao cargo de ministro. A primeira opção era o engenheiro Anderson Correia, reitor do prestigiado Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e frequentador da Igreja Batista. Mas Milton Ribeiro começou a crescer quando seu nome foi sugerido pelo então ministro da Justiça, André Mendonça, o advogado “terrivelmente evangélico” que Bolsonaro acaba de indicar para o Supremo Tribunal Federal. Mendonça, ainda adolescente, frequentou a igreja na qual Ribeiro pregava, em Santos, e mais tarde tornou-se ele próprio um pastor presbiteriano. São amigos e parceiros de fé.

Depois da passagem extravagante de Weintraub pelo MEC, o governo procurava um nome que não atraísse os holofotes. Ribeiro, com sua voz mansa e atuação discreta, parecia a escolha ideal. Os evangélicos gostaram, os bolsonaristas aceitaram e até a oposição ficou aliviada com a escolha de um nome que, comparado a Weintraub, era um poço de moderação. Tinha doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP), onde estudou o calvinismo, sob orientação de Roseli Fischmann, uma das maiores especialistas do país em Estado laico e discriminação contra minorias. Na época, Ribeiro esteve algumas vezes com Sueli Carneiro, doutora em filosofia e ativista do movimento negro, que também era orientada por Fischmann. “Ele era muito acanhado. Como veio da igreja, aquilo era um mundo meio assustador para ele”, diz uma contemporânea do doutorado que pediu para não ser identificada para não se indispor com o ministro. Na cerimônia de posse, Ribeiro confirmou as expectativas. No discurso, elogiou Fischmann e prometeu uma gestão aberta ao diálogo.

Pouco tempo depois de assumir, recebeu deputados da Comissão de Educação da Câmara, um gesto amistoso que Weintraub jamais fizera. “Achei um cara supertranquilo, afável. Um senhorzinho gente boa”, diz o deputado capixaba Felipe Rigoni, que participou do encontro junto com sua colega paulista Tabata Amaral – ambos estão de saída de seus respectivos partidos, o PSB e o PDT. Ao final da reunião, posaram para uma foto, na qual o ministro aparece sorridente. Assim que a imagem foi para as redes sociais, os bolsonaristas começaram o bombardeio. No Twitter, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) postou uma mensagem crivada de letras maiúsculas censurando o encontro. O próprio presidente Bolsonaro ligou para o ministro querendo saber por que se reunira com deputados da oposição.

Desde então, Ribeiro começou sua transição de pastor aparentemente moderado para ministro abertamente bolsonarista. Deu entrevista dizendo que o MEC não tem nada a ver com a volta às aulas na pandemia nem com acesso à internet nas escolas. Disse que a homossexualidade é um resultado de “famílias desajustadas” e cumpriu o roteiro do bolsonarismo: criticou o educador Paulo Freire e elogiou Weintraub. Para não deixar dúvidas, em entrevista ao Brasil sem Medo, um portal de notícias apoiado por Olavo de Carvalho, instou a plateia a não confundir seu jeito afável com fraqueza. “Tenho um estilo diferente, mas sei exatamente aonde quero chegar.”

A guinada do ministro surpreendeu negativamente até alguns aliados. “Para nós, evangélicos, não é admissível abrir mão de seus valores para agradar um homem. Ele vem adotando posturas que eu, que o conheço, sei que ele não tomaria. Tudo para ficar no cargo”, diz uma liderança presbiteriana de destaque, que deu aulas no Mackenzie quando Ribeiro ainda era conselheiro da universidade. Para não criar atrito com o ministro, ele também pediu para não ser identificado.

Sob o comando de Milton Ribeiro, o MEC fechou-se em copas. Os servidores evitam contatos com a imprensa pelo temor de perseguições e, quando falam, pedem o anonimato para não se expor. Outros, por conseguirem pequenos avanços no trabalho cotidiano, têm receio de colocar tudo a perder caso sejam flagrados em contato com jornalistas. O ministério fechou-se, inclusive, para os parlamentares. “Nós estamos tendo dificuldade de ter reuniões até com secretários. Isso não acontecia nem com o Vélez, nem com o Weintraub”, diz a deputada Tabata Amaral. Em abril, o deputado Felipe Rigoni pediu para fazer uma visita técnica ao Inep. Seu pedido foi negado. Em maio, Rigoni solicitou uma visita à Capes, órgão que cuida da pós-graduação no país. Até hoje não recebeu resposta.

Em uma das primeiras disputas internas no MEC, Ribeiro arbitrou em favor dos olavistas. Ele havia nomeado Izabel Pessoa, doutora em política social, para chefiar a Secretaria de Educação Básica, órgão cujas políticas afetam 47 milhões de alunos e 2,2 milhões de professores. Profissional reconhecida no meio acadêmico, Pessoa, embora tivesse acabado de se aposentar, aceitou o convite e arregaçou as mangas. Começou a discutir estratégias para lidar com a pandemia, destravou um empréstimo de 221 milhões de dólares do Banco Mundial que estava adormecido no ministério havia três anos e retomou o diálogo com os governos estaduais. “Era uma ilha no MEC. Até o final do ano passado, foi um paraíso trabalhar ali”, diz um experiente servidor.

Na virada de 2020 para 2021, a Secretaria de Educação Básica fez um edital sobre a compra de livros didáticos para alunos do primeiro ao quinto ano. Os olavistas, encastelados na Secretaria de Alfabetização, acharam que o documento orientava as editoras para a produção de livros “ideológicos”. Onde se lia que o MEC não aceitaria livros que “promovam negativamente a imagem da mulher”, os olavistas queriam escrever que o MEC só aceitaria “livros que promovam positivamente a imagem dos brasileiros”. Em outro trecho, onde se falava da “cultura e história afro-brasileiras e dos povos indígenas”, os olavistas queriam cultura “indígena, europeia e africana”. A seção intitulada “princípios éticos e democráticos” tinha que cortar a palavra “democráticos”, deixando apenas “princípios éticos”.

A briga durou semanas e, como ninguém se entendia, o caso chegou ao gabinete do ministro, que decidiu em favor dos olavistas. Os cortes foram feitos. Numa aula magna na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Ribeiro gabou-se da decisão de alterar o edital dos livros didáticos e dramatizou: “Crianças com 9, 10 anos não sabem ler. Sabem tudo. Com todo respeito às senhoras aqui presentes, sabem até colocar uma camisinha, mas não sabem que B mais A é BA. Estava na hora de dar um basta nisso.”

Os editores de livros didáticos dizem que as mudanças promovidas pelo olavismo do MEC não são abrangentes. “São mais simbólicas do que práticas. Nós somos amparados pelo que diz a Base Nacional Comum Curricular. Há toda uma legislação sacramentada”, tranquiliza Silvia Panazzo, diretora da Associação Brasileira de Autores de Livros Educativos (Abrale). O que mais atrapalha é a piora na qualidade técnica dos editais, que têm trazido erros e contradições que levam meses para serem sanados e atrasam a elaboração dos livros – podendo, no pior dos cenários, causar um apagão de livros didáticos em algumas redes de ensino.

Depois de arbitrar aquela disputa em favor dos olavistas, Ribeiro tomou uma providência para evitar conflitos posteriores em relação aos livros escolares. Escolheu a professora Sandra Ramos para coordenar os “materiais didáticos”, mas não se deu ao trabalho de consultar Izabel Pessoa, a quem Ramos ficaria subordinada. Desgastada e em luto pela morte do marido por Covid-19, Pessoa pediu demissão e se aposentou de vez. Ramos continua no MEC. Ela é evangélica, militante do grupo Docentes pela Liberdade e costuma se apresentar como “uma lutadora contra o movimento de ideologia de gênero”.

Empenhado em angariar a simpatia dos bolsonaristas radicais e manter-se no cargo, o ministro Milton Ribeiro, depois dos primeiros embates, passou a cercar-se de aliados. Exonerou Benedito Aguiar, que presidia a Capes desde fevereiro de 2020. Chamado ao gabinete do ministro, Aguiar, dono de uma carreira acadêmica respeitada, foi informado apenas que sua demissão era uma “decisão política”. Em seu lugar, entrou Cláudia Mansani Queda de Toledo, reitora de uma escola obscura, a Instituição Toledo de Ensino (ITE), onde o ministro se graduou em direito. Toledo fez graduação e doutorado na faculdade de sua família, que esteve perto de ser descredenciada pela Capes em 2017. Numa escala que vai de 1 a 7, sendo 7 a nota mais alta, a faculdade tirou 2. Depois de recorrer duas vezes, conseguiu subir sua nota para 4 e escapar da guilhotina. Um dos professores do curso de direito da ITE é André Mendonça, o futuro ministro do STF, se o Senado aprovar seu nome.

A nomeação de Toledo foi recebida com indignação na comunidade acadêmica e um sinal eloquente do desmanche do ensino superior no país. Em carta pública, representantes de quinze entidades científicas se disseram “atônitos e constrangidos” com a indicação e pediram sua “substituição imediata”. “Eu, como tantos colegas, dediquei minha vida à ciência. Faz trinta anos que estou na universidade, orientei um número enorme de pessoas, e de repente vou ser avaliada por uma pessoa que não fez nada na carreira. Ter um presidente da Capes assim desqualifica todo o sistema”, reclama Débora Menezes, professora de física na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e atual presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF).

Criada em 1951, a Capes nunca deixou de ser um órgão técnico, comprometido com a qualidade do ensino superior, nem mesmo no período da ditadura militar. Agora, o receio é que o órgão, sob comando de Toledo, comece a flexibilizar os critérios para aprovação de cursos de pós-graduação para beneficiar os amigos ideológicos – e os amigos empresários, que faturam alto com a educação privada, a começar pela própria família Toledo. O ministro Ribeiro já sinalizou que pode caminhar nesse sentido mesmo. “Estamos trabalhando para simplificar a vida de vocês”, disse ele, num congresso com representantes de faculdades privadas. “Com o tempo, o MEC foi se transformando em um verdadeiro cartório.” Se os critérios da Capes perderem o rigor, Menezes teme que o sistema de pós-graduação entre em colapso. “O Brasil devia se orgulhar do que fez com relação à sua pós-graduação nos últimos trinta anos”, diz ela. “Só chegamos ao atual nível de qualidade graças aos mecanismos de controle da Capes, que sempre esteve nas mãos de pessoas sérias. É uma estrutura que levou décadas para ser construída. Mas, para destruir, como tudo, basta um pontapé.”

Neste ano, o orçamento da Capes é 29% menor do que em 2019. Em maio, o MEC mandou um ofício ao Ministério da Economia informando que, se não houvesse liberação de mais recursos, só conseguiria pagar as 92 mil bolsas de pesquisa até novembro. Dias depois, a Capes divulgou uma nota negando que fosse haver interrupção nas bolsas. (Junte-se a isso a penúria do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, comandado pelo ex-astronauta Marcos Pontes. Com o menor orçamento do século, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) fez um corte brutal nas bolsas de doutorado e pós-doutorado e tem enfrentado problemas nunca antes vistos: a plataforma Lattes, que reúne os currículos de milhões de pesquisadores brasileiros, saiu do ar em julho devido a uma falha no equipamento que armazena as informações. Foram paralisados todos os processos em curso no CNPq, inclusive a aprovação de novas pesquisas.)

Para completar, a situação das universidades federais é lamentável. O governo cortou 1 bilhão de reais do orçamento, reduzindo-o a 4,5 bilhões de reais – há dez anos, o orçamento era de 7,1 bilhões, em valores atualizados, sendo que, na época, o Brasil tinha nove universidades a menos. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a maior do país, só tem dinheiro para pagar seus contratos até outubro. “Hoje, nossa atividade de pesquisa continua, os laboratórios não pararam, até porque parte deles está dedicada a estudar o coronavírus. Mas, se a situação se agravar, vamos ter que fazer escolhas”, alerta Eduardo Raupp, pró-reitor da UFRJ. E deve se agravar com a volta às aulas, pois as despesas com luz e água tendem a subir. “O que o ministério fez de concreto para nos ajudar com isso? Um plano de biossegurança com recomendações genéricas, do tipo que vemos na tevê.”

Enquanto isso, Ribeiro só conversa com reitores alinhados ao governo. No dia 10 de junho, a Andifes, entidade que representa as instituições federais, fez uma reunião virtual com quarenta reitores para discutir as dificuldades de orçamento. Convidado, o MEC não se deu ao trabalho nem de mandar um representante. Na mesma hora, Ribeiro estava reunido com sete reitores biônicos, apelido dado aos que foram nomeados por Bolsonaro sem que seus nomes fossem os mais votados da lista tríplice. A reitora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Ludimilla Oliveira, por exemplo, é uma amiga e já foi recebida quatro vezes pelo ministro. (A reitora pendurou na parede de sua sala uma fotografia do general Arthur da Costa e Silva, o ditador que ocupou a Presidência do país entre 1967 e 1969. Foi forçada a tirar a foto por decisão do Conselho Universitário.)

Há um ano no cargo, Milton Ribeiro ainda está descobrindo o Ministério da Educação. “Quando cheguei aqui, não podia imaginar que o MEC era tão complexo”, disse, quando completou nove meses na cadeira. “Agora, estou começando a conhecer um pouquinho mais de perto.” É difícil achar um discurso em que o ministro não se mostre espantado com o tamanho da própria pasta. “Me assustei quando soube que tinha que administrar 38 institutos federais”, confessou, durante uma solenidade em Porto Alegre, quando já fazia dez meses no ministério. “Quando cheguei ao MEC, presidente, eu não sabia que ia administrar cinquenta hospitais universitários”, afirmou, durante uma live no Palácio do Planalto, em junho, às vésperas de completar um ano no posto.

Desorientado na imensidão do seu ministério, Ribeiro vem acumulando serviço por fazer. Desde novembro do ano passado, está parado um programa chamado Brasil de Aprendizagem, cujo objetivo é avaliar o impacto da pandemia na vida escolar dos alunos da educação básica, e também oferecer livros didáticos digitais para as redes de ensino nos estados e municípios. O orçamento é estimado em menos de 100 milhões de reais, custo baixo se comparado ao de outros programas. “Estamos na metade de 2021 e até agora o MEC não fez essa avaliação dos alunos. Eles prometem, mas não sei que horas virá. É uma agenda urgente”, diz o secretário de Educação do Espírito Santo, Vitor de Angelo, que, na condição de presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), participou das discussões sobre o Brasil de Aprendizagem.

A omissão tem custado caro. No final de 2019, mais de 4 milhões de estudantes não tinham acesso à internet no país e somente 64% dos alunos das escolas públicas tinham celular. Como a pandemia impôs o ensino remoto, há uma massa imensa de estudantes que está sendo prejudicada – e ninguém conhece a dimensão exata do prejuízo. Dados recentes do Inep mostram que, no ano passado, apenas 6,6% das escolas públicas forneceram internet para os alunos em ensino remoto. Mas, fora isso, existem apenas informações isoladas sobre alguns estados. Em São Paulo, sabe-se que quase 1 milhão de alunos não acessaram as aulas virtuais em março deste ano. “Isso está me tirando o sono”, diz o professor Mozart Ramos, membro do Conselho Nacional de Educação. “Se a situação é essa em São Paulo, imagina nos estados e nos municípios mais pobres. As crianças simplesmente não estão estudando.” Priscila Cruz, presidente da ONG Todos pela Educação, também está preocupada: “Não existe até agora um levantamento nacional sobre a situação dos alunos em ensino remoto, o efeito disso na aprendizagem, na evasão escolar, na nutrição das crianças. Estamos no escuro.”

Durante a pandemia, o governo Bolsonaro foi tão omisso na educação quanto o foi na saúde. Desde o início da crise sanitária, o MEC adotou o entendimento segundo o qual os estados e municípios são autônomos e soberanos para decidir o que fazer. Agiu como se não existisse a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, uma peça de mais de noventa artigos que atribui ao MEC a responsabilidade de coordenar os sistemas de educação – o que implica, nesse caso, a criação de normas para uma volta segura às aulas e o repasse de dinheiro para o ensino remoto. Somente em outubro, quando a pandemia já completara sete meses e matara 150 mil brasileiros, o MEC divulgou um guia com instruções sobre como reduzir os riscos no ensino presencial.

A inépcia estende-se ao campo das verbas. Com um orçamento de 145 bilhões de reais – praticamente igual ao do ano passado, que foi o menor desde 2011 –, o ministério pena inclusive para bancar as despesas mais urgentes. As bolsas do Prouni, concedidas para alunos de baixa renda, caíram quase 30% neste ano. O programa destinado a ampliar o acesso à internet nas escolas públicas sofreu corte de 45%. Alarmado, o Congresso aprovou um projeto obrigando o governo a comprar pacotes de internet para os estudantes, mas o presidente Bolsonaro vetou. “Despejar dinheiro na ponta não é política pública”, disse o ministro Ribeiro, na época. O veto presidencial foi derrubado pelo Congresso em junho. O governo, em seguida, entrou com uma ação no STF para tentar derrubar o programa.

Nas discussões orçamentárias no Congresso, os representantes do MEC nem aparecem. “Eles justificam dizendo que os cortes vêm do Ministério da Economia, e não da Educação. O ministro está sempre se esquivando”, diz a deputada Tabata Amaral. “Este ano o MEC não participou nem da Comissão de Orçamento da Câmara. Depois dizem que falta dinheiro. A gente precisava da presença deles, é natural em qualquer ministério, porque a pressão pelo orçamento é enorme”, diz uma deputada governista, que pede para não ser identificada para não criar atrito com o governo. “O Weintraub, mesmo tendo aquele jeito, tomava decisões. Isso com o Milton não existe”, completa ela.

A escassez de verbas, porém, não inibiu o bilionário Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão que executa programas da educação básica, de anunciar um leilão eletrônico de 3 bilhões de reais para compra de computadores, notebooks, projetores e lousas digitais destinados às escolas públicas dos estados e municípios. O pregão foi suspenso em setembro de 2019, depois que a Controladoria-Geral da União descobriu um desvio monumental. Só a Escola Municipal Laura Queiroz, em Itabirito (MG), receberia 30 mil laptops para seus 255 alunos (118 laptops por aluno). O relatório da CGU mostra que 355 escolas receberiam mais de um laptop por aluno. O leilão foi cancelado, mas até hoje ninguém foi responsabilizado pela tentativa de surrupiar os cofres públicos. É um dos grandes escândalos da República sem culpado. Procurado para explicar a razão do silêncio que já dura quase dois anos, o atual presidente do FNDE, Marcelo Lopes da Ponte, o quarto presidente do fundo no governo Bolsonaro, não respondeu aos contatos da reportagem.

Em fevereiro, o presidente Bolsonaro apresentou uma lista de 35 itens considerados prioritários para aprovação no Congresso em 2021. A relação fala de reforma tributária, privatização, posse de armas, mineração em terras indígenas – e tem apenas um item sobre a educação. É o homeschooling, a palavra em inglês que define o “ensino domiciliar”. Para os evangélicos e olavistas, não há nada mais importante no campo da educação do que oferecer ensino em casa aos brasileiros em idade escolar. Em maio, o MEC publicou uma cartilha no seu site e afirmou, em maiúsculas, que o ensino domiciliar é assunto para ontem: “o brasil não pode mais esperar.”

Apesar da prioridade e da urgência, a educação domiciliar afeta menos de 1% dos estudantes do ensino básico. Na estimativa mais generosa, feita pelo próprio MEC, são 35 mil alunos, num universo de 47 milhões. A prática, hoje, é ilegal. O Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente obrigam os pais a matricularem seus filhos na escola, razão pela qual muitas famílias que adotam o ensino domiciliar são processadas na Justiça. Em 2018, no entanto, o STF decidiu que o ensino em casa é ilegal, conforme prevê o Código Penal e o eca, mas não é inconstitucional. Para legalizá-lo, portanto, basta que o Congresso aprove uma lei nesse sentido.

O principal projeto que propõe a legalização do homeschooling está sendo relatado pela deputada Luisa Canziani (PTB-PR), que foi incumbida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de trabalhar para aprovar o texto. A proposta cria alguns requisitos para evitar um “liberou geral”: as crianças devem estar matriculadas numa escola, participando de avaliações anuais, e pelo menos um dos pais (ou tutor) precisa ter diploma universitário. O MEC, porém, defende o “liberou geral”. Quer que os pais só apresentem relatórios de atividades pedagógicas dos filhos a cada seis meses. Até agora, venceu a proposta que prevê relatórios bimestrais.

O ensino domiciliar é polêmico em todo o mundo. A Alemanha e a Suécia, por exemplo, permitem em casos excepcionais, geralmente ligados a necessidades médicas.  A França acaba de limitar a educação domiciliar num conjunto de medidas para combater o terrorismo islâmico, cujas ideias estão se espalhando por meio do ensino em casa, segundo acreditam os parlamentares franceses e o próprio governo. Os Estados Unidos talvez sejam o país em que o homeschooling é mais disseminado. Mesmo lá, estima-se que não envolve mais do que 2 milhões de famílias. Em geral, os norte-americanos optam por esse tipo de educação por razões religiosas, falta de segurança na escola, busca por maior qualidade acadêmica ou por terem filhos com dificuldades de aprendizagem.

No Brasil, a ideia de ensinar os filhos em casa é uma bandeira que reúne bolsonaristas, evangélicos e ultraconservadores em geral. Eles acreditam que a educação doméstica é um meio de proteger as crianças da doutrinação marxista e da pregação ateia na escola brasileira – onde, segundo definiu Olavo de Carvalho, mentor de todos eles, existem apenas “lixo, veneno e dejetos”. Em resposta às críticas de que as crianças precisam socializar e aprender a lidar com o diferente, o ministro Ribeiro divulgou uma cartilha na qual defende que a socialização das crianças pode ser feita em outros ambientes que não a escola, como clubes, condomínios, bibliotecas e – acrescentou ele, numa audiência na Câmara – “até mesmo na igreja, por que não?”

A teóloga Inez Borges, uma das assessoras com maior ascendência sobre o ministro, é uma palestrante cristã que milita pelo ensino em casa porque considera que as escolas brasileiras promovem “uma educação por princípios comunistas”. Em evento promovido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em abril passado, Borges afirmou que o ensino domiciliar é a única forma de enfrentar esses “tempos de destruição dos valores ocidentais, das narrativas ocidentais”.

“Não consigo enxergar nada de positivo em legalizar o homeschooling”, diz Maria Inês Fini, ex-presidente do Inep, que trabalha com educação há mais de quatro décadas. “Criança de qualquer classe social precisa da escola, da interação, precisa aceitar valores diferentes dos seus. Isso prepara para a cidadania. Não posso imaginar um país sem escola física.” Luciana Temer, filha do ex-presidente Michel Temer e diretora do Instituto Liberta, que faz campanhas de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, aponta para outro risco. “A criança pode saber tudo de matemática e português, mas estar sendo oprimida, violentada ou educada de forma intolerante contra negros e gays. Isso é difícil de ser monitorado.”

Para esta reportagem, a piauí fez inúmeras tentativas de falar com o ministro Milton Ribeiro. Na última, no dia 16 de julho, sua assessoria mandou dizer que o ministro estava de férias. Quatro dias depois, o MEC divulgou, em cadeia de rádio e televisão, um pronunciamento de mais de cinco minutos do ministro, gravado antes de sua folga. Na fala, Ribeiro fez um apelo aos estudantes e professores pela volta imediata às aulas presenciais. “É uma necessidade urgente”, disse. E recomendou tudo o que Bolsonaro tem desprezado: “O uso de álcool em gel, a utilização de máscaras e o distanciamento social são medidas que o mundo está utilizando com sucesso.”

No começo de julho, o Conselho Nacional de Educação aprovou um parecer com orientações específicas para um retorno seguro às salas de aula, e enviou o documento para o ministro homologar. Até o final do mês, os conselheiros não tinham recebido qualquer resposta. Pelo menos uma coisa aconteceu: o programa Brasil de Aprendizagem, aquele cujo objetivo é avaliar o impacto da pandemia na vida escolar, voltou a ser discutido. Não se sabe se vai adiante, mas pelo menos saiu da gaveta em que estava desde novembro do ano passado.

Antes de sair de férias, Milton Ribeiro se despediu com uma mensagem nas redes sociais celebrando o aniversário de um ano à frente do MEC. Postou uma foto de si mesmo, agradeceu em primeiro lugar a Deus, em segundo a Bolsonaro. Afirmou que busca a melhoria da educação “independentemente de bandeiras ideológicas”. E encerrou com um lema protestante em latim: Soli Deo gloria (Glória somente a Deus).

Revista Piauí

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