O legado da ditadura na educação

Patricia TropiaPor Patrícia Trópia**

Qual o legado deixado pela ditadura militar sobre a educação hoje, tanto em termos econômicos quando em relação ao modelo pedagógico?

Segundo W. Faulkner, “o passado nunca está morto, ele nem mesmo é passado”. Por isso, em boa hora, a revista da Contee se propõe a refletir sobre o legado da ditadura militar na educação brasileira contemporânea.

Antes de tratar do legado da ditadura na educação atual é necessário um esclarecimento prévio. Hoje se tem debatido o caráter civil-militar do regime político instituído em 1964, posto que não apenas os militares arquitetaram-no, deram o golpe e concentraram o poder decisório durante o regime, mas contaram, para o êxito deste projeto de dominação, com o apoio econômico e político de alguns setores da sociedade civil, entre os quais frações da burguesia nacional e internacional. Em “1964: a Conquista do Estado”, René Armand Dreifuss, apoiando-se em ampla documentação, demonstra que o golpe de 1964 começou a ser preparado, realmente, pelo menos desde 1961, refutando versões clamadas no calor dos acontecimentos, segundo as quais o golpe seria, na verdade, um contragolpe, ou seja, uma reação à eminência de um golpe da esquerda, liderado pelo então presidente João Goulart. Vale a pena retomar o livro de Dreifuss não apenas como contraprova à versão construída por militares golpistas e partidários do regime, mas, sobretudo, para se enfrentar “a guerra de narrativas” em torno da memória de 1964, posto que versões revisionistas resistem e ganham espaço nos dias atuais (TOLEDO, 2004), mesmo diante da falta de provas contra os supostos golpistas: Goulart, Brizola, setores nacionalistas de esquerda.

Por sua vez, a farta documentação apresentada por Dreifuss evidencia a participação direta de banqueiros, grandes industriais, comerciantes, associações e federações patronais, além de setores da burocracia civil na “mobilização reacionária que culminou com o golpe de 1964” (MORAES, 2006). Há também o filme “Cidadão Boilesen”, dirigido por Chaim Litewski, que retrata a participação direta, embora oculta, do empresariado, sobretudo paulista, nos anos de 1960 e 1970, no financiamento do regime por meio do aperfeiçoamento dos aparelhos repressivos de perseguição e tortura à resistência democrática. De formas distintas e com linguagens diferentes, o livro de Dreifuss e o filme de Litewski desmascaram que o Estado seja neutro e que os militares governassem em nome da democracia e da “nação”. Quando analisada criticamente e de uma perspectiva da totalidade, conclui-se que a ditadura respondia a interesses de classes bastante precisos, interesses sem o conhecimento dos quais pouco ou quase nada do período – e, notadamente, dos rumos tomados pela educação brasileira a partir de então – se pode compreender. Dando logo nome aos bois: os rumos da educação brasileira na ditadura muito se explicam, em grande medida, em função das pressões e interesses do capital nacional e internacional.

Os militares cedo perceberam a importância e o poder da educação tanto em termos econômicos ­– tal como apregoava a teoria do capital humano formulada por Gary Becker e Theodore Schultz – quanto político-ideológicos, pois se incumbiram de alterar todos os níveis de ensino, instrumentalizando-os em favor de uma concepção de educação tecnicista, utilitarista e instrumental; portanto, supostamente neutra. Para tanto foram reformuladas a estrutura e a organização do ensino, alteradas as funções da educação – o que provocou mudanças profundas na escolarização brasileira.

Na ótica da “teoria do capital humano”, a educação é tida como fator de desenvolvimento econômico, de mobilidade social e geração de renda. Gaudêncio Frigotto, em “A produtividade da escola improdutiva”, já havia assinalado que os teóricos do capital humano pressupõem a neutralidade de seu método de análise, pois acreditam que o capital, suas leis e suas relações de produção obedecem a uma lógica natural. A educação, ou melhor, o investimento na educação seria, para seus formuladores, o melhor que individualmente cada trabalhador pode fazer por si e socialmente, na medida em que se pressupõe que “num mercado em concorrência perfeita, o ótimo de cada um, racionalmente calculado em longo prazo, constitui o ótimo de longo prazo de todos” (SOUZA, 2006). O trabalhador é proprietário de capital humano, cujo investimento será tão mais potencializado pela educação.

É neste contexto histórico marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do capital humano, isto é, pela concepção da educação como pressuposto do desenvolvimento econômico, sobretudo industrial, que os acordos entre o Ministério da Educação e a Usaid (United States Agency for International Develpment) se inserem.

Como mostram vários pesquisadores, os acordos MEC-Usaid visavam estabelecer convênios de assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira, desde a educação primária ao ensino superior. Mas tal “ajuda técnica” aos governos militares tinha, na realidade, um objetivo mais sistêmico e político: o de fornecer as diretrizes políticas e técnicas para uma reorientação do sistema educacional brasileiro à luz das necessidades do desenvolvimento capitalista internacional. Preparar a tecnocracia brasileira para um modelo de planejamento racional, tecnocrático e produtivista era, pois, uma das funções precípuas dos técnicos norte-americanos que aqui desembarcaram. Muito mais do que preocupados com a educação brasileira como tal, os técnicos da Usaid “estavam ocupados em garantir a adequação de tal sistema de ensino aos desígnios da economia internacional, sobretudo aos interesses das grandes corporações norte-americanas” (MINTO, s/d).

O planejamento estatal visava à intervenção, controle, racionalização e adequação dos recursos às metas estabelecidas nos acordos internacionais. A educação deveria voltar-se para a formação de quadros técnicos para a indústria, pretensamente neutros e adequados ao modelo de desenvolvimento econômico proposto pelo Plano Nacional de Desenvolvimento.

Nessa direção, como evidencia Rodrigues (2007), foi fundamental o papel da burguesia, especialmente da burguesia industrial, por meio de sua principal organização: a Confederação Nacional da Indústria. A CNI criou em 1968 o Instituto Euvaldo Lodi com o objetivo de influir na definição das políticas estatais em consonância com seus interesses. A burguesia industrial pressionou os governos militares pela adequação das reformas educacionais aos interesses da indústria por meio de mudanças no ensino técnico, na formação profissional e do desenvolvimento de pesquisa científica e tecnológica.

Na prática, os Acordos MEC-Usaid

(…) tiveram influência decisiva nas formulações e orientações que, posteriormente, conduziram o processo de reforma da educação brasileira na Ditadura Militar. Destacam-se a Comissão Meira Mattos, criada em 1967, e o Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU), de 1968, ambos decisivos na reforma universitária (Lei nº 5.540/1968) e na reforma do ensino de 1º e 2º graus (Lei nº 5.692/1971) (MINTO, s/d).

Em síntese, a educação na ditadura levou ao aumento da dependência entre educação e mercado de trabalho, à racionalização do sistema educacional, ao avanço do ensino pago, à profissionalização do ensino médio e ao controle político-ideológico por meio tanto do rebaixamento da formação de professores quanto das reformas curriculares.

Coerente com as orientações externas, os governos militares alteraram, por meio das reformas acima citadas, a organização do ensino de 1o e 2o graus, expandindo a oferta educacional pública à custa, todavia, do rebaixamento de sua qualidade. Aumentou, por sua vez, o controle sobre as atividades acadêmicas no interior das universidades. A reforma Universitária, normatizada pela Lei 5.540/68, alterou a estrutura e o funcionamento do ensino superior ao instituir: a departamentalização da universidade, o ensino básico, a unificação do vestibular, o processo de matrícula por disciplina. Por sua vez, a reforma de 1º e 2º graus, instituída pela Lei 5.692/71, criou o ensino técnico profissionalizante, rebaixou a formação de professores de educação infantil e das séries iniciais do 1o grau, viabilizou um modelo de expansão da rede pública graças à contenção salarial, deixando, por sua vez, a educação livre não apenas ao ensino privado religioso, mas às “forças do mercado”.

As tendências daquelas reformas foram as seguintes:

1)      ênfase no ensino técnico, prático, em detrimento de uma concepção pedagógica generalista e republicana;

2)      esvaziamento dos currículos dos níveis de ensino do seu conteúdo potencialmente universal e crítico;

3)      expansão da iniciativa privada (foram criados o salário-educação, o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social e o Fundo de Investimento social).

Quais os efeitos das reformas educacionais implementadas na ditadura sobre a educação pública, gratuita e de qualidade?

A categoria dos professores da rede pública foi profundamente afetada pelas reformas de ensino. Segundo Ferreira e Bittar (2006), dois aspectos da política na ditadura ajudam a entender importantes inflexões na trajetória e composição dos professores da rede pública: a) o crescimento numérico derivado da própria expansão das redes de ensino, atraindo assim para o mercado de trabalho em educação um contingente de professores, sobretudo mulheres, oriundos de segmentos populares e b) o arrocho salarial a que foi submetida durante toda a vigência da ditadura. “Numa sociedade que se modernizava pela via autoritária, esses dois fatores, conjugados entre si, atuaram no sentido de torná-la a maior categoria profissional do país e de conferir-lhe uma identidade de oposição ao regime” (FERREIRA e BITTAR, 2006, p. 1161-1162).

A municipalização do ensino, já prevista naquela época, acabou por favorecer a rede de corrupção montada pelos poderes políticos locais (desvio de verbas, atrelamento dos cargos aos prefeitos, clientelismo político). O fracasso da profissionalização no ensino de 2º grau levou à diminuição da demanda sobre o ensino superior. As escolas profissionalizantes demandavam recursos que acabaram não sendo nelas investidos.

O descaso com a escola pública se concretizou com a diminuição das verbas para a educação a partir de 1967. No governo do general Médici, por exemplo, apenas 4,76% do total dos recursos da União foram destinados à educação, quando a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 4.024/61, definia que nunca menos de 12% das verbas deveriam ser aplicadas na educação pela União e nunca menos de 20% pelos estados e municípios.

Pois bem, nos anos de 1980, parecia que a educação brasileira mudaria de rumo, posto que os setores organizados saíram às ruas para lutar por uma “constituição cidadã” e por uma escola  gratuita, pública e de qualidade. Afinal, não foi pouca a pressão social de educadores, sindicatos e políticos – entre os quais o saudoso professor Florestan Fernandes – por verbas públicas exclusivas para a escola pública, pela melhoria na qualidade do ensino público, pela expansão da rede pública, por mais verbas constitucionais para a educação e pela melhoria das condições salariais e de trabalho. Mas essas pressões encontraram a resistência dos grupos dominantes e dos governos eleitos e se enfraqueceram diante da chegada ao poder dos neoliberais, os quais, em grande medida, aprofundaram a natureza tecnicista, utilitarista e mercadológica da educação com a nova LDBN 9.394/96.

O ensino superior privado expandiu-se enormemente a partir dos anos 1990. O financiamento da educação pública continua sendo um gargalo para a melhoria da escola pública, embora inúmeros programas tenham sido criados nos anos 2000. Os modelos pedagógicos baseados nos pressupostos da teoria do capital humano, no tecnicismo e no construtivismo continuam dominantes. As licenciaturas continuam sendo pouco atraentes para uma geração de estudantes.

De forma sintética, deve ser dito que “o passado não é passado” e o legado da ditadura ainda está vivo; assim, do ponto de vista dos valores democráticos, aquele legado ainda precisa ser enfrentado e profundamente transformado.

De que forma a abertura do ensino à iniciativa privada, intensificada durante o regime de militar, contribuiu para o sucateamento da educação pública e o impacto do neoliberalismo sobre o trabalho docente?

Com todo rigor, o ensino no Brasil sempre foi aberto à iniciativa privada. A educação brasileira, antes de ter um caráter de fato público – financiado pelo Estado, gratuito e aberto a todos –, era uma exclusividade da Igreja e das elites. A novidade da ditadura militar foi ter permitido a expansão do mercado educacional para além do ensino ofertado em instituições religiosas, e isso se deu, em grande medida, como resposta às pressões do capital comercial, ou seja, da fração da burguesia interessada em acumular capital com a educação.

Embora hoje as políticas educacionais, desde os anos 1990, constranjam as escolas públicas a adotar um modelo de gestão técnico-administrativo racional, enxuto, baseado na “qualidade total”, a lógica da escola particular difere da escola pública. Como qualquer outro investimento, a educação deve dar lucro aos seus proprietários, enquanto para seus usuários é a razão custo/benefício que impera.

A expansão da rede pública de ensino, iniciada na ditadura militar, não teve como contraponto necessário o aumento proporcional de verbas para a educação. Ademais houve um rebaixamento do padrão formativo dos professores e, posteriormente, do próprio nível de ensino – o que levou segmentos das classes médias a migrarem, nos anos 1970, das escolas públicas para as particulares. Como as classes médias são os setores interessados no modelo de educação dual da escola burguesa – como ensinam Bourdieu e Passeron –, o rebaixamento da escola pública e a fuga para o ensino privado limitam o potencial social e popular de luta pela melhoria da qualidade da educação pública e gratuita. Por isso, a luta histórica pela educação pública é um combate episódico e muitas vezes restrito aos educadores comprometidos com a educação pública e aos setores populares organizados.

Pois bem, soma-se a esse limite estrutural da luta pela melhoria da escola pública o bombardeio ideológico que o neoliberalismo impôs aos funcionários públicos em geral, aos professores públicos, em particular, e à escola pública, vista como lugar da ineficiência e desperdício. O neoliberalismo, pois, apenas radicaliza a escola dual e distancia a promessa de democratização do ensino gratuito, público e de qualidade da realidade social da maioria dos brasileiros.

Bibliografia

DREIFUSS, R. A. 1964: a conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Petrópolis, Vozes, 1981.

FERREIRA, A. e BITTAR, M. “A educação na ditadura e a proletarização dos professores”. Educação e Sociedade, vol. 27, n. 97, p. 1159-1179, setembro/dezembro de 2006.

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. Um (re) exame das relações entre educação e estrutura econômica-social capitalista. São Paulo, Cortez, 1984.

MINTO, L. W. “Verbete MEC-USAID”, Navegando história da educação brasileira. HISTEDBR, s/d. Disponível em :  http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_mec-usaid%20.htm. Acessado em 25/04/2014.

MORAES, J. Q. “O efeito desmistificador de A Conquista do Estado na análise das bases sociais da contra-revolução”. E-premissas – revista de estudos estratégicos, nº 1, junho/dezembro de 2006.

RODRIGUES, J. Os empresários e a educação superior, Campinas, Autores Associados, 2007.

TOLEDO, C. N. De. “As falácias do revisionismo. Sobre o golpe de 1964”. Crítica Marxista, nº 19, 2004.

*Artigo escrito a partir de perguntas enviadas por e-mail pela Revista Conteúdo

**Patrícia Trópia é pedagoga, professora da UFU, mestre em Ciências Políticas e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp

Artigo disponível na Revista Conteúdo – Número 26

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