‘Repugnante’ e ‘desatino’: as reações na política e na Justiça à fala de Eduardo Bolsonaro sobre AI-5

Congressistas, partidos políticos, pessoas e entidades da comunidade jurídica brasileira repudiaram a declaração do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), sobre a possibilidade de um “novo AI-5”.

Em entrevista ao canal da jornalista Leda Nagle no YouTube, o deputado afirmou que o governo poderá reagir com um “novo AI-5” caso haja “radicalização” por parte de militantes de esquerda. A declaração foi dado após uma pergunta sobre os protestos que estão ocorrendo no Chile.

“Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta, ela pode ser via um novo AI-5. Pode ser via uma legislação aprovada através de plebiscito, como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”, disse ele.

A fala foi recebida com notas de repúdio de partidos políticos e de pessoas do mundo jurídico. Eduardo é filho do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), e o atual líder da bancada do seu partido na Câmara.

O Ato Institucional nº 5 foi um decreto assinado pelo então presidente Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968. O ato dava ao presidente o direito de fechar o Congresso e resultou na cassação de mandatos de deputados que antagonizavam o regime militar. Também possibilitou intervenções do presidente no comando de Estados e municípios brasileiros, além de suspender garantias constitucionais dos cidadãos. Na Justiça, o AI-5 acabou com a possibilidade de concessão de habeas corpus a pessoas acusadas de cometer crimes com motivação política.

Esta é a segunda vez essa semana que Eduardo Bolsonaro faz alusões ao regime ditatorial iniciado em 1964 no Brasil.

Na terça-feira (29), Eduardo já havia usado a tribuna da Câmara para falar sobre a onda de protestos populares em andamento no Chile.

“Não vamos deixar isso daí (protestos) vir para cá. Se vier para cá, vai ter que se ver com a polícia, e se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a história se repetir. Aí é que eu quero ver como é que a banda vai tocar.”

Eduardo Bolsonaro: ‘Talvez tenha sido infeliz em falar do AI-5’

Mais tarde na quinta-feira, em entrevista ao vivo ao programa Brasil Urgente, da Band, Eduardo Bolsonaro afirmou que “talvez tenha sido infeliz em falar do AI-5” e pediu desculpas “a quem porventura tenha entendido” que ele ou o governo estejam estudando o retorno do AI-5.

Segundo o parlamentar, ele quis dizer que, no cenário hipotético de protestos violentos no Brasil, o governo deveria reagir – mas, ele garantiu na entrevista, democraticamente.

“Trazendo para o Brasil, se a esquerda radicalizasse aqui, alguma medida vai ter que ser tomada. Porque isso (protestos) não configura o exercício pleno na democracia, impede as pessoas do seu direito básico de ir e vir. Eles (manifestantes no Chile) travaram o setor de transporte, que teve que decretar o fim das aulas; fecharam as escolas; alteração dos voos nacionais e internacionais… ”

“Eu talvez tenha sido infeliz em falar do AI-5, porque não existe qualquer possibilidade de retorno. Mas nesse cenário, o governo tem que tomar as rédeas da situacao, não pode simplesmente ficar refém de grupos organizados para promover o terror”, falou na entrevista.

Eduardo Bolsonaro acrescentou que, como deputado, o que pode fazer é propor um projeto com penas mais duras para aqueles que perpetrarem protestos violentos, dando o exemplo de “uma criminalização no regime fechado” para quem incendiar ônibus.

“A gente vive sob a Constituição de 88. Eu fui democraticamente eleito, não convém a mim, não é interessante, a radicalização.”

“Mesmo uma manifestação que seja contra o presidente Jair Bolsonaro ou contra mim é válida”, disse. “A gente pode estar errando em alguma coisa e aquilo ali (protesto) servir como uma sinalização de que a gente tem que mudar nossa conduta. Eu cito até como exemplo minha indicação para a embaixada dos EUA. Pessoas vieram nas minhas redes sociais se dizer contrárias à minha indicação, pessoas de boa fé. Acabei escutando, (isso) me redirecionou e eu agradeço a elas hoje em dia.”

Antes da entrevista do filho no Brasil Urgente, o próprio Jair Bolsonaro lamentou a fala de Eduardo.

“Quem quer que seja que fale de AI-5 está sonhando (…). Ele é independente. Se ele falou isso, lamento, lamento muito”, disse Jair Bolsonaro.

Na política: esquerda e direita repudiam fala

No Congresso, a fala foi recebida com manifestações de repúdio de partidos de todo o espectro ideológico — desde o Democratas até o PSOL. Parlamentares do próprio PSL também se manifestaram contra Eduardo.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse em nota que manifestações como as de Eduardo eram “repugnantes”.

“O Brasil é uma democracia. Manifestações como a do senhor Eduardo Bolsonaro são repugnantes, do ponto de vista democrático, e têm de ser repelidas como toda a indignação possível pelas instituições brasileiras”, diz o texto.

“A apologia reiterada a instrumentos da ditadura é passível de punição pelas ferramentas que detêm as instituições democráticas brasileiras. Ninguém está imune a isso. O Brasil jamais regressará aos anos de chumbo”, concluiu Maia.

Direito de imagem Agência Brasil Image caption ‘É lamentável que um agente político, eleito com o voto popular, instrumento fundamental do Estado democrático de Direito, possa insinuar contra a ferramenta que lhe outorgou o próprio mandato’, disse Davi Alcolumbre

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, disse que a fala era “lamentável”.

“É lamentável que um agente político, eleito com o voto popular, instrumento fundamental do Estado democrático de Direito, possa insinuar contra a ferramenta que lhe outorgou o próprio mandato”, disse, em nota. “Mais do que isso: é um absurdo ver um agente político, fruto do sistema democrático, fazer qualquer tipo de incitação antidemocrática. E é inadmissível esse afronta à Constituição”, afirmou.

Na oposição, PT, PSOL, PSB e PCdoB disseram que levarão o caso ao Conselho de Ética da Câmara, pedindo a cassação do mandato de Eduardo. Também apresentarão uma notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal (STF).

O líder do PSOL na Câmara, Ivan Valente (SP), lembrou que Eduardo não era sequer nascido quando o AI-5 foi decretado, em 1968. O decreto marcou o início do pior período do regime militar, disse Valente.

“Ele quer um Bonaparte. Ele (Eduardo) não quer um estado democrático de direito, ele quer um ditador. Um Bonaparte, um homem forte. E esse homem forte se chama Jair Bolsonaro. A sociedade brasileira não vai ficar calada. Nós vamos reagir nas ruas e aqui no Parlamento”, disse.

O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) classificou a fala de “fato grave” e disse que Eduardo “ameaçou a sociedade brasileira” ao sugerir que protestos seriam enfrentados com violência.

“O AI-5 foi o recrudescimento da ditadura militar que mandou prender, exilou, torturou e matou muitos líderes da oposição”. Eduardo Bolsonaro “não merece frequentar uma instituição democrática (como a Câmara), porque a democracia não permite atentados contra a Constituição”, disse Teixeira à BBC News Brasil.

O líder da bancada do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio (SP), disse que a declaração é um “desatino”. “É um comentário que afronta a democracia, agride o bom senso e que não ajuda em nada o país neste momento em que estabilidade política é essencial para avançarmos nas discussões que são importantes para o país.”

O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), um dos coordenadores do Movimento Brasil Livre (MBL), disse que a fala é a “antítese do conservadorismo”.

“Vai no sentido da ruptura institucional, da quebra de tudo que foi construído a duras penas no país”, disse ele à BBC News Brasil. “É inaceitável um deputado defender o fechamento da instituição que ele representa”, disse Kataguiri. “Não precisa de novo AI-5 para combater radicalismo (em manifestações). Para os excessos, já basta a polícia”, disse.

Vários partidos políticos emitiram notas de repúdio. Manifestaram-se assim o PSDB, o PL (antigo PR), o Democratas, o Cidadania (antigo PPS), e o MDB, entre outros.

Críticas do PSL

O próprio PSL – partido de Eduardo e de seu pai, o presidente da República – também criticou a fala.

Em nota, a Executiva Nacional da sigla disse repudiar “com veemência” a manifestação.

“O Brasil demorou anos para voltar a respirar democracia e a eleger diretamente seus representantes, a um custo altíssimo, tanto para o Estado quanto para as vítimas do regime transitório”, diz o texto, que é assinado também pelo presidente da sigla, o deputado Luciano Bivar (PE) – o pernambucano e os demais integrantes do comando do PSL estão em uma disputa com o clã Bolsonaro.

“Não podemos permitir que sejam abalados pilares democráticos caros, como a tolerância, a prática de aceitar o contraditório, as críticas e o trabalho importante da imprensa, que deve ser livre, sem amarras de qualquer tipo. O PSL é contra qualquer iniciativa que resulte em retirada de direitos e garantias constitucionais. Em nosso partido, a democracia não é negociável”, continua a nota.

Políticos da legenda também falaram sobre o assunto. A deputada estadual paulista Janaina Paschoal disse que pensar em um novo AI-5 era algo “totalmente descabido”. “Não tem sentido, vivemos numa democracia, trabalhamos e lutamos muito, eu em especial, com tudo o que eu fiz, para a preservação da democracia, na sua concretude, não só no papel”, disse ela.

Ex-líder do governo no Congresso, a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) disse que o AI-5 “cassou mandatos, suspendeu direitos, e instituiu censura”.

Na Justiça: OAB, procuradores e juízes repudiam

A fala de Eduardo Bolsonaro foi repudiada por entidades que representam os juízes federais, os membros do Ministério Público Federal (MPF) e pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além de pessoas importantes do meio jurídico.

Não houve, por enquanto, manifestação do presidente do STF, Dias Toffoli.

O ministro Marco Aurélio Mello reagiu em uma mensagem ao jornal Folha de S.Paulo: “A toada não é democrática-republicana. Os ventos, pouco a pouco, estão levando embora os ares democráticos”, disse.

A reportagem da BBC apurou ainda que outros ministros do STF consideraram a declaração absurda, apesar de não falarem publicamente sobre o tema.

O Ministério Público se manifestou numa nota da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC). O texto lembra que o AI-5 de 1968 representou o “mais grave rompimento da ordem civilizatória no país” até hoje.

“Todos os parlamentares têm o dever primário de defender e respeitar a Constituição, o regime democrático e os direitos fundamentais” diz a nota da PFDC. A fala de Eduardo é “um atentado aos mais básicos valores democráticos da Constituição e da sociedade brasileira”.

“Infelizmente, esse tipo de intervenção em ameaça ao rompimento do Estado Democrático de Direito não é fato isolado, bastando recordar a oportunidade em que, eleito deputado, Eduardo Bolsonaro afirmou bastar “um cabo e um soldado” para se fechar o Supremo Tribunal Federal”, diz o texto, que é assinado pela titular da PFDC, Deborah Duprat, e pelos procuradores Marlon Weichert, Domingos da Silveira e Eugênia Gonzaga.

O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, cujo pai foi assassinado pela Ditadura Militar, disse que a fala foi “gravíssima”.

“É gravíssima a manifestação do deputado, que é líder do partido do presidente da República. É uma afronta à Constituição, ao Estado democrático de direito e um flerte inaceitável com exemplos fascistas e com um passado de arbítrio, censura à imprensa, tortura e falta de liberdade”, disse, em nota.

A Associação dos Juízes Federais (Ajufe) manifestou “preocupação” com a fala.

Um novo AI-5 representaria uma grave afronta à democracia e à Constituição Federal, por promover cassações de mandatos, suspensão de direitos políticos, demissões e perseguições, fechamento do Congresso Nacional e intervenção nos Estados e Municípios.

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), que representa os membros do MPF, repudiou a fala e chamou a ditadura militar de “passado tenebroso”.

“A democracia é conquista inegociável do povo brasileiro. Cogitar a edição de Atos Institucionais, em especial, com conteúdo idêntico ou similar ao do AI-5, é flertar com um passado tenebroso, responsável pela censura à imprensa e à classe artística, pelo fechamento do Congresso Nacional, por milhares de torturados e centenas de desaparecidos políticos.”

O jurista Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment que levou à queda da ex-presidente Dilma Rousseff, considera que a fala do Eduardo Bolsonaro justifica um processo contra ele no Conselho de Ética da Câmara.

“Sem dúvida nenhuma é caso de processo de cassação do deputado. Ele fala na tripla condição de deputado, líder do partido do presidente, e filho do presidente, ele está ameaçando (com uma ação antidemocrática)”, criticou.

Reale Jr. destacou que foi a segunda vez que o deputado insinuou uma intervenção autoritária nesta semana.

“E agora ele especifica que é ato Ato Institucional número 5, que foi o ato mais troglodita (da ditadura militar), que acabou com todos os direitos políticos, com o habeas corpus (recurso jurídico para cessar abusos), (permitia) o fechamento do Congresso, cassação de mandatos. A época que vicejou a tortura”, criticou.

“Eu tenho toda a desconfiança de que eles estejam buscando criar condições para uma solução antidemocrática. Aquele vídeo da hiena já era bem isso: ‘todos são contra, eu tenho que virar um leão e atacar todo mundo para me salvaguardar’. Esse é o recado do filme da hiena”, reforçou, destacando o vídeo compartilhado nesta semana por Bolsonaro, em que ele aparece como um leão ameaçado por hienas que representavam o STF, a OAB, imprensa e partidos políticos.

A subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen considerou a menção ao AI-5 como uma possível reação a protestos de rua completamente “descabida”.

“Manifestações são atos normais em democracias”, afirmou, lembrando que a lei brasileira pune atos de destruição do patrimônio público ou privado e agressões físicas.

“A menção ao AI-5 é descabida, até porque o referido ato também era voltado para parlamentares e contra a democracia, que permite a eleição de representantes de vários campos políticos. A sociedade e o parlamento não são de uma única tendência e nem devem ser”, disse ainda.

BBC

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