O voto e a construção da vida verdadeira

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Os estonteantes e alentadores versos da epígrafe compõem a primeira estrofe do magnífico poema “Os Estatutos do Homem — Ato Institucional Permanente”, do imortal poeta Thiago de Mello, escrito desde seu exílio no Chile, em 1964, e que serviu e serve de bússola atemporal para todos quantos cultuam(os) a democracia e repudiam(os) os regimes que a renegam, como o fora aquele que o exilou e que infelicitou o Brasil de 1964 a 1985.

Nos regimes democráticos, como o é o implantado pela Constituição Federal (CF) de 1988, o leito normal para construção da vida verdadeira, pugnada pelo poeta, é o voto secreto, universal e periódico, por meio do qual são escolhidos os ocupantes dos poderes executivo (federal, estadual e municipal) e do poder legislativo (senadores, deputados federais e estaduais e vereadores).

No próximo dia 6 de outubro, os/as eleitores/as de 5.569 das 5.571 cidades brasileiras (não haverá votação em Brasília e Fernando Noronha) somos chamados a comparecer às urnas, para elegermos 5.569 prefeitos/as e 58.114 vereadores/as. Nas 103 cidades com mais de 200 mil eleitores/as, caso nenhum dos candidatos a prefeito/a obtenha a maioria absoluta (metade mais um) dos votos válidos, haverá segundo turno, no dia 27 de outubro, entre os dois candidatos mais votados. A eleição para vereador só acontecerá dia 6 de outubro.

Assim sendo, pode-se cravar de plano, e sem margem de dúvida e/ou de erro, que o voto secreto, universal e periódico, longe de ser um dever formal imposto pela Constituição Federal (CF), é, isto sim, o mais sublime de todos os direitos consagrados pela ordem democrática. Não obstante as limitações que ainda permeiam a legislação eleitoral, é por meio do voto que escolhemos que programas políticos, gestores e legisladores queremos.

Quando as eleições são municipais, como as de agora, ao votarmos decidimos se queremos que sejam efetivamente cumpridas as competências municipais, determinadas pelo Art. 30 da CF, tais como: legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população.

Com o colossal desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, que permitem razoável grau de conhecimento dos/as candidatos/As, para dizer o mínimo, não se apresenta mais como razoável algum/a eleitor/a alegar que votou enganado, que não sabia que as promessas do candidato eram falsas e/ou que ele era avesso à ordem democrática. Corrobora essa assertiva a propaganda do candidato do PL à prefeitura de Goiânia, que diz, todos os dias, no horário político, com atestado de Bolsonaro, ser o único candidato de direita ao pleito eleitoral da capital de Goiás. Portanto, não há dúvida de que esse candidato, ao pedir voto, já declara solenemente ser contrário a todos os valores democráticos, consagrados pela CF de 1988.

Desse modo, quem votar nesse candidato o faz consciente de que ele, se eleito, fará de tudo para negar os princípios, os fundamentos e os pilares sobre os quais se assenta a República Federativa do Brasil. Ou seja, seu mandato estará de costas para a liberdade, para a educação formadora e emancipadora e para o bem-estar e a justiça social, tal como o fizera seu cabo eleitoral e atestador de sua aversão à ordem democrática: Bolsonaro.

Esse é apenas um exemplo em meio a milhares de outros de igual conteúdo, apenas com roupagem diferente, com destaque para políticos que, sob a ótica da democracia, desonraram todos os cargos que ocuparam, seja como gestores e/ou como parlamentares. Se o histórico desautorizador do candidato, que se consubstancia no oposto do que propaga, não se constituir em impedimento para que nele se despejem milhares e até milhões de votos, não há dúvidas de que os/as eleitores/as que o consagram nas urnas o fazem conscientemente, demonstrando, eles também, total descompromisso com os destinos democráticos do país, do estado ou do município, conforme o caso (o de agora é o município).

O exemplo mais contundente dessa assertiva é o de Bolsonaro. Se, em 2018, ainda era possível dar o benefício da dúvida a quem nele votou, em 2022, depois de quatro anos de trevas, essa dúvida já havia se dissipado, não mais restando qualquer sopro de vento nesse sentido. Ou seja, quem votou em Bolsonaro em 2022, deliberadamente o fez para que ele continuasse destruindo o Brasil, sua história e o Estado Democrático de Direito.

Como sabiamente pugnava o saudoso democrata Mário Covas, a quem o restabelecimento da ordem democrática muito deve, não se deve votar em alguém; deve-se, isto sim, votar por alguém, seja pelo/a próprio/a eleitor/a, pelo/a filho/a, pelo neto/a, pela comunidade. O que significa votar por projeto, por serviços públicos decentes, compatíveis com os anseios e necessidades dos munícipes, no caso concreto.

Se para alguém ainda há dúvida sobre o valor e a importância do voto, basta que se diga que nos 200 anos de constitucionalismo brasileiro, completados aos 25 de março de 2024, o voto só se fez universal com a Emenda Constitucional 25/1985, que instituiu no seu Art. 147:

São eleitores os brasileiros que, à data da eleição, contem dezoito anos ou mais, alistados na forma da Lei.

[…]

  • 4º A Lei disporá sobre a forma pela qual possam os analfabetos alistar-se eleitores e exercer o direito de voto.

Já o Art. 150 decretou:

São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”.

Faz-se necessário salientar que a CF de 1988, a CF cidadã, que completará 36 anos um dia antes do primeiro turno das eleições municipais, isto é, aos 5 de outubro, manteve o voto facultativo e a barreira da inelegibilidade aos analfabetos. Importa dizer: não corrigiu essas máculas, que trazem o símbolo maior da histórica desigualdade social.

De 1824 a 1889, o voto era aberto e reservado somente a homens brancos e com renda anual predeterminada, conforme os Arts. 92 e 94 da Constituição Política do Império do Brasil, de 1824:

“Art. 92 São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes :..V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos.

 […]

 Art. 94 Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se:  Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego e os Libertos”.

A Constituição de 1891, no seu Art. 70, excluiu do direito de voto as mulheres, os menores de 21 anos, os mendigos, os analfabetos. Somente em 1932, com o Código Eleitoral, instituído pelo Decreto 21.076, o voto tornou-se secreto e extensivo às mulheres.

Claro está, portanto, que os detentores do poder sabem muito sobre a quase incomensurável relevância do voto. No contexto histórico atual, como não podem suprimir o voto secreto e universal, tudo fazem para iludir o eleitor, por meio de candidatos que, despudoradamente, apresentam-se como portadores dos anseios populares, mas que, efetivamente, só têm compromisso com os interesses do capital. Candidatos que, como reforço aos seus vis interesses, contam com a criminosa prática de assédio eleitoral, que se propaga à larga no seio de incontável número de empresas pelas 5.571 cidades brasileiras.

A Agência Brasil, em matéria publicada ao dia 20 de setembro corrente, com base em dados colhidos do Ministério Público do Brasil (MPT), registra 319 denúncias de assédio moral no processo eleitoral em curso.

Isso dá a exata dimensão da relevância do voto!

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo