Os que profanam a Constituição Cidadã não passarão

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

“Senhoras e Senhores Constituintes.

A Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. Governabilidade é abjurar o quanto antes uma carta constitucional amaldiçoada pela democracia e jurar uma constituição fruto da democracia e da parceria social. A injustiça social é a negação e a condenação do governo. A boca dos constituintes de 1987-1988 soprou o hálito oxigenado da governabilidade pela transferência e distribuição de recursos viáveis para os municípios, os securitários, o ensino, os aposentados, os trabalhadores, as domésticas e as donas-de-casa. Repito: essa será a Constituição cidadã, porque recuperar como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria. Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, segregados nos guetos da perseguição social. Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la, não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo. Viva a Constituição de 1988!”

As belíssimas palavras da epígrafe são excertos do discurso pronunciado pelo presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o saudoso e inesquecível deputado federal Ulysses Guimarães, aos 27 de julho de 1988, em resposta às ofensivas do “Centrão” – bloco de direita na Constituinte, que tentava barrar todos os avanços da futura Constituição –, e do então presidente da República, José Sarney, que acusavam a o texto constitucional, em fase final de aprovação, de provocar a ingovernabilidade do país.

Pois bem. Passados 25 anos de sua promulgação, que teve lugar aos 5 de outubro de 1988, a Constituição cidadã, que implantou, de modo definitivo, o Estado democrático de direito, no Brasil, lamentavelmente, não só se acha inacabada, bem como mutilada e profanada, ironicamente, por quem tem o dever de ser o seu guardião: o Congresso Nacional.

Os congressistas que se sucederam  à promulgação da Constituição, em todas as legislaturas, em sua esmagadora maioria, mostraram-se e mostram-se avessos aos direitos fundamentais, individuais e sociais que a marcam, notadamente quanto aos últimos, nutrindo por eles total desprezo, ora recusando-se a regulamentá-los, ora mutilando-os, por meio de emendas constitucionais,  leis complementares e ordinárias.

Desde a promulgação da Constituição, o Congresso Nacional já a emendou 75 vezes; dentre essas emendas,  poucas foram promulgadas para ampliar direitos, merecendo destaques a 14/1996, que criou o Fundef; a 26/2000, que acrescenta a moradia como direito fundamental social; a 29/2000, que definiu os recursos mínimos destinados à saúde; a 31/2000, que criou o fundo de combate e erradicação da pobreza; a 45/2004, que estabelece, como direito individual fundamental, a duração razoável do processo (Art. 5°, inciso LXXVIII), e amplia a competência da Justiça do Trabalho (no entanto, esta mesma emenda traz como retrocesso a exigência da concordância patronal, para o ajuizamento de dissídio coletivo); a 53/2006, que transformou o Fundef em Fundeb; a 59/2009, que ampliou o ensino obrigatório, dos 4 aos 17 anos, deixando de fora as crianças de até 3 anos, um colossal retrocesso, neste particular; a 64/2010, que acrescentou a alimentação como direito fundamental social; a 66/2010, que regulamentou o divórcio direto; a 67/2010, que prorrogou, por tempo indeterminado, o prazo de vigência do fundo de combate à pobreza; e a 72/2013, que ampliou os direitos dos trabalhadores domésticos.

Algumas emendas foram promulgadas com o cristalino propósito de suprimir direitos, como a 20/98, que reduz substancialmente os direitos dos segurados da Previdência Social, substituindo o tempo de serviço por tempo de contribuição, revogando a aposentadoria com a redução de cinco anos para os professores de ensino superior, e desconstitucionalizando a forma de cálculo dos benefícios previdenciários, o que deu azo à aprovação do fator previdenciário; a 28/2000, que alterou o Art. 7°, inciso XXIX, da Constituição para reduzir o tempo de prescrição de créditos trabalhistas dos trabalhadores rurais; a 40/2003, que, de forma escandalosa e nefasta, revogou a limitação da taxa de juros anuais, estabelecida em 12% pelo Art. 192; a 41/2003 e a 47/2005, que reduziram substancialmente os direitos previdenciários dos servidores públicos.

Às emendas constitucionais mutiladoras de direitos somam-se leis ordinárias, que, escancaradamente, visam a beneficiar grupos econômicos, como, dentre outras, a Lei N. 11.101/2005 – lei de falência, que, por um lado, reduz a garantia dos créditos dos trabalhadores e dos tributos, em caso de falência e, por outro, amplia as garantias dos bancos; a Lei N. 12.688/2012, que concede carência, vantagens e prazos privilegiados para as empresas de ensino quitarem os tributos propositadamente sonegados.

Isto sem contar os inúmeros projetos de leis com o mesmo objetivo, caracterizando-se como o mais nocivo de todos, em todos os tempos, o de N. 4.330/2004, de autoria do deputado federal Sandro Mabel, que, a pretexto de regulamentar o flagelo da terceirização, visa, efetivamente, transformar os direitos fundamentais sociais, preconizados pelos Art.s 6° ao 11 da Constituição, em letra morta, transformando as relações de trabalho em terra arrasada.

Se, por um lado, o Congresso Nacional apresenta-se como diligente e determinado na hora de mutilar a Constituição para dela suprimir direitos, por outro, nem sequer cogita dar efetividade a alguns de seus dispositivos, que ainda dependem de regulamentação, como a proibição de dispensa arbitrária ou sem justa causa (Art. 7°, inciso I); piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho (Art. 7°, inciso V); proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa (Art. 7°, inciso X); proteção em face da automação (Art. 7°, inciso XXVII); valorização do profissional da educação escolar privada (Art. 206, inciso V); padrão de qualidade social da educação (Art. 206, inciso VII); regime de colaboração entre os sistemas de ensino (Art. 211).

Enquanto isto, em 25 anos de Constituição, o Brasil teve apenas um Plano Nacional de Educação (PNE), que vigeu de 2001 a 2010, e teve apenas um terço de suas metas realizado.

Desde o dia 15 de dezembro de 2010, o Congresso Nacional encontra-se às voltas do Projeto de Lei (PL) N. 8.035/2010 (número da Câmara), transformado em PL N. 103/2012, no Senado, tendo como maior entrave a destinação do percentual de 10% do Produto Interno Bruto (PIB), para a educação pública.

Para se ter a exata dimensão do desapreço do Congresso Nacional pelos direitos fundamentais sociais, basta que se traga, aqui, a regulamentação do aviso prévio proporcional, garantida pelo Art. 7°, inciso XXI. Durante mais de 21 anos, ficou sobrestado um projeto de lei, de autoria do então deputado federal Carlos Chiarelli, que regulamentava, de maneira restritiva; bastou o Supremo Tribunal Federal iniciar a discussão de um Mandado de Injunção, que visava a sua regulamentação provisória, até que o Legislativo a fizesse – tendo, à oportunidade da discussão, o ministro  Marco Aurélio proposto a garantia de dez dias por anos de trabalho –, para que a tramitação do referido projeto fosse retomada e aprovada, em menos de 30 dias, garantindo apenas três dias por ano, conforme a Lei N. 12.506/2011, uma lei sem eira nem beira, metaforicamente falando.

Certa vez, o presidente Lula, antes de se eleger para o cargo, disse, em um de seus costumeiros arroubos de então, que no Congresso Nacional havia pelo menos 300 picaretas; nunca se chegou a  apurar a veracidade desta afirmação. Todavia, pode-se afirmar, sem qualquer receio, que nele há, com certeza, mais de 300 algozes dos direitos fundamentais individuais e sociais. Os fatos falam por si mesmos.

Faz-se imperioso ressaltar que o Congresso Nacional não está sozinho na sua deliberada política de desprezo aos direitos fundamentais individuais e sociais, em todos os momentos, contou com o  cúmplice silêncio, ou com o estampado apoio e, não raras vezes, a iniciativa do Poder Executivo.

Em que pesem os entraves, a profanação do texto constitucional ao longo dos últimos 25 anos, nada será suficiente para empanar o brilho das lutas sociais que antecederam à promulgação da Constituição, nem a importância determinante desta para a história do Brasil, no passado recente, no presente e no futuro.

josegeraldoComo diziam os revolucionários espanhóis, na sua ferrenha luta contra o franquismo, “No pasaram”; ou seja, os detratores da Constituição e, por conseguinte, do Estado democrático de direito e da cidadania plena, o seu corolário primeiro e maior, não passarão. Isto é, não vão destruí-los. Mais uma vez, o povo brasileiro, com a sua sabedoria e inquebrantáveis determinação e disposição de luta, saberá, dia mais, dia menos, mandá-los para a lata de lixo da história, e retomar o caminho da construção do Estado de bem-estar social, preconizado pela Constituição cidadã.

Que assim seja, em breve.

*José Geraldo de Santana Oliveira
Consultor jurídico da Contee

(Com este artigo, o Portal da Contee encerra o especial de 25 dias de publicações sobre os 25 anos da Constituição de 1988.)

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