Vandalismo adia abertura de exposição dedicada a desaparecidos políticos

São Paulo – Estava tudo pronto para a abertura da exposição Penetrável Genet na manhã deste domingo (3), no Cemitério do Araçá, região central de São Paulo. A intervenção idealizada pelo artista Celso Sim e arquiteta Anna Ferrari é parte da 10ª Bienal de Arquitetura, que tem como tema Cidade – Modos de Fazer, Modos de Usar. As pessoas que começaram a chegar para o evento foram informadas que o Ossário-Geral do cemitério havia sido invadido por volta das 7h por pessoas ainda não identificadas.

Parte da instalação artística chegou a ser danificada e algumas gavetas do ossário foram violadas. O ato foi classificado pelo secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC), Rogério Sottili, como “vandalismo injustificável” e ocorreu um dia depois de uma cerimônia ecumênica destinada a homenagear as pessoas que sofreram violações aos direitos humanos durante o período de resistência à ditadura.

O ato inter-religioso reuniu centenas de pessoas e vem sendo realizado pelo Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça anualmente nos feriados de Finados. A abertura da exposição ficou para esta terça-feira (5). A ação tem apoio da SMDHC, da Assembleia Legislativa de São Paulo e da Secretaria Estadual de Cultura.

Ocorrências de vandalismo e furtos em cemitérios não são incomuns. Mas no ossário do Araçá, e desse porte, nunca havia sucedido. O local guarda 1.049 ossadas encontradas no início dos anos 1990 em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus, região noroeste da capital, entre as quais restos mortais de desaparecidos políticos e vítimas do Esquadrão da Morte. Portanto, de vítimas de crimes cometidos pelo Estado – ou com sua conivência de ocasião – que ainda aguardam investigação e elucidação.

“É de estarrecer. Num dia realizarmos um ato maravilhoso, com centenas de pessoas, de diversos grupos religiosos, em memória de pessoas que perderam a vida lutando por democracia, e reivindicando atenção da sociedade e das autoridades atenção a uma parte tenebrosa e não esclarecida de nossa história. No outro esse vandalismo injustificável”, lamenta Sottili. “A secretaria acionou perícia e pediu abertura de investigação e recebeu do prefeito Fernando Haddad pedido de que não se meçam esforços para que os responsáveis sejam identificados”, disse o secretário.

MOACYR LOPES JUNIOR/FOLHAPRESS

Os criadores Anna Ferrari e Celso Sim

Arte penetrável

A intervenção artística Penetrável Genet, de Celso Sim e Anna Ferrari, tem como ingredientes obras do escritor Jean Genet e de Hélio Oiticica. O francês Genet (1910-1986), escritor, poeta e autor de peças teatrais, tumultuou a cena cultural parisiense com a sagacidade de seus textos e sua postura social perturbadora dos “bons costumes”. Conquistou admiração de artistas e intelectuais, como Sartre, e tornou-se ativista incansável de causas humanitárias e por direitos civis no mundo todo. Seu texto Estranha Palavra – que identifica a arte e teatralidade de lugares como um cemitério – é um dos combustíveis da intervenção.

“Penetrável” foi uma expressão de arte contemporânea idealizada pelo brasileiro Oiticica (1937-1980) que ficaria conhecida como “instalação”, uma montagem inventiva não convencional com a proposta de fazer com que o público, mais que observar, interaja com a obra e a vivencie. Em 1974, Oiticica escreveu um texto chamado Oto Souza Mattos, sobre um personagem real, integrante das rodas de partido alto do Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, que viveu e morreu intensamente, resume Celso Sim, que musicou o texto há duas décadas e o tornou parte da intervenção.

A instalação no Cemitério do Araçá começa logo na entrada, na Avenida Dr. Arnaldo, e vai até o Ossário-Geral. No trajeto, o visitante (no limite de 15 pessoas por hora) é acompanhado de monitor e fone de ouvido, indispensável para participar da Penetrável Genet. Passará por um labirinto de monólitos de mármore espírito santo (só encontrado no Brasil e também “personagens” da instalação) com 2,4 metros de altura, 1,20 metro de largura e 40 centímetros de espessura.

“A obra estava pronta para ser aberta ao público hoje, até ser atravessada pelo indizível”, define Celso Sim. “Digo ‘indizível’ porque não posso ter certeza que foi um crime político; mas posso ter certeza que não foi um crime comum”, afirma. “Não se derruba um monólito de 700 quilos assim, como quem não quer nada. Além disso, derrubaram várias estátuas, violaram urnas do ossário, tocaram em restos mortais que fazem parte da história de vidas humanas. Só que tem o desprezo pela vida humana típico dos fascistas poderia ser capaz de um gesto como esse.”

O artista plástico assinala ainda o sentido da presença dos restos mortais localizados em Perus na inspiração da obra. “Fui invadido pela história da vala de Perus. Ali, entre 1971 e 1976, auge da repressão e da ação dos esquadrões da morte, foi jogada a história de mais de mil seres humanos, entre eles centenas de crianças com menos de 10 anos”, lembra, explicando o significado do mármore como pedra destinada a dar dignidade aos mortos.

“É como dar dignidade a essas história inacabadas. E as duas peças que foram derrubadas permanecerão como estão. O indizível passou a fazer parte da obra e está ali para dizer algo. Quem olhar vai poder ‘ouvir’ o barulho guardado naquele gesto, naquele estilhaço”, explica o Celso.

Exposição Penetrável Genet – Experiência Araçá
Onde: Av. Dr. Arnaldo, 666 (próximo ao Metrô Clínicas)
Quando: De 5 a 15/12, de terça-feira a domingo
Sessões às 12h, 13h, 14h, 15h, 16h.
Restrições: Limite de 15 pessoas por sessão. Caminhada de 30 minutos pelo cemitério
Inscrições: chegada no local 10 minutos antes de cada sessão
Quanto: Entrada livre e gratuita

Da Rede Brasil Atual

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