A desmetropolização regressiva do Brasil

Enquanto as cidades médias, sobretudo as ligadas ao agronegócio exportador, se expandem, grandes centros urbanos estão estagnados. Sem dinamismo produtivo, imperam o inchamento dos serviços, os trambiques, os bicos e a vida débito-crédito

Por Marcio Pochmann*

A transição do campo para a cidade e o avanço da metropolização foram produtos do intenso ciclo da industrialização nacional registrado entre as décadas de 1930 e 1980. Por força disso, a passagem da antiga e longeva sociedade agrária para a urbana e industrial foi acompanhada do crescimento do total da população brasileira vivendo nos grandes centros urbanos, que passou de 17% em 1920 para 30% no ano 2000.

Neste primeiro quarto do século XXI, contudo, nota-se uma nova dinâmica urbana em curso no país. De forma concomitante com o esvaziamento da sociedade industrial, ocorre o fenômeno da desmetropolização, que se expressa pela estagnação dos grandes centros urbanos, protagonizada pela perda do dinamismo econômico e populacional.

Ademais da continuidade do já conhecido declínio do número de residentes no meio rural no total da população do país, transcorre também o inédito estancamento relativo da presença dos habitantes nas grandes metrópoles brasileiras. A nova dinâmica urbana tem fortalecido a expansão das cidades médias, sobretudo daquelas vinculadas ao dinamismo agrícola, pecuário e extrativo mineral exportador.

Isso porque o ingresso passivo e subordinado do país na globalização levou à desarticulação interna do sistema produtivo gerada pela desindustrialização, reprimarização da pauta das exportações e inchamento dos serviços nas cidades. Com o fechamento do modelo de substituição de importação, emergiram enclaves econômicos que têm movido alguns espaços locais/regionais, cada vez mais relacionados com o exterior.

Em consequência, o aparecimento dos sinais da desintegração sistêmica desses espaços geográficos privilegiados pela exportação com o conjunto da nação indica o quanto alguns poucos municípios se beneficiam da mudança em vigor no capitalismo brasileiro. Ao se tomar como referência as atividades do agronegócio exportador, um dos principais expoentes da situação econômica nacional atual, constata-se, por exemplo, que ¼ do total do valor adicionado bruto se concentra em somente 149 municípios (2,7% do total), sendo quase 2/3 deles localizados nas grandes regiões do Sul e do Centro-Oeste, com destaque para a produção de soja, cana-de-açúcar, minérios e pecuária.

Com isso, evidencia-se o protagonismo de certas localidades crescentemente conectadas com o exterior, cuja melhora no desempenho econômico parece deslocá-las cada vez mais da realidade nacional. Diante do esvaziamento industrial, os principais centros urbanos de povoamento perderam atração e dinamismo, refletindo-se no fenômeno da desmetropolização, ou seja, a estagnação das metrópoles em relação ao crescimento dos municípios menores, sobretudo das cidades médias.

Assim, os grandes municípios populacionais brasileiros, por perderem capacidade produtiva provocada pela desindustrialização, esvaziam seus atrativos para a continuidade da recepção tanto de novos investimentos como de imigrantes, conforme registravam no passado recente. Em 2019, por exemplo, do total de municípios brasileiros, o seleto grupo de cidades formado pelo 1% mais rico concentrou 42,5% de todo o Produto Interno Bruto, ao passo que em 2000 representava 45,5% do PIB e, em 1920, 21% do PIB.

Ao que parece, a trajetória de concentração da riqueza nos grandes municípios populacionais brasileiros sofre importante força no século XXI, traduzindo a nova dinâmica urbana demarcada pelo fenômeno da desmetropolização no rastro da desindustrialização e da reprimarização da pauta de exportação.

Apesar de o declínio da sociedade industrial não ter impactado a continuidade da urbanização brasileira, tem alterado a sua natureza. Destaca-se, por exemplo, o processo acelerado de inchamento do setor terciário nas cidades. Em geral, resulta da difusão dos trabalhos gerais vinculados à prestação de serviços às famílias ricas, distanciando-se das atividades econômicas capitalistas propriamente ditas, apontando a dissolução da centralidade da relação salarial.

Em virtude disso, emerge a relação débito-crédito, que se estabelece simultaneamente ao modo de vida, traduzida pela nova dinâmica urbana. Em vez da centralidade da relação salarial que resulta do exercício do trabalho mediado pelo contrato do trabalho assalariado, sobretudo formal, assiste-se à propagação de trabalhos gerais que buscam conformar o crédito necessário para se equivaler ao débito contraído para o financiamento individual ou familiar do custo da vida nas cidades.

Enquanto a relação salarial parece perder importância forçada pelo decrescimento econômico e pelas reformas trabalhistas e previdenciárias de redução do custo do trabalho, expandem-se as atividades sem precisar mais as fronteiras entre o legal e ilegal. A centralidade negativa do trabalho que emerge na atualidade faz com que a busca por rendimento de sobrevivência seja constituída por diferentes formas, desde as tradicionais (salário e programas de transferência de renda) às mais recentes (escambo, endividamento e atividades ilegais).

*Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

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