O homeschooling às avessas

Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos*

A regulamentação do homeschooling foi uma das metas ainda não cumpridas por esse governo, que defende a educação domiciliar, mas sem uma direção definida. Fato é que no meio da pandemia mundial do Covid-19, esse mesmo (des)governo encontrou mais uma oportunidade de dialogar com os interesses do capital, na contramão de uma educação universalizada, de qualidade, gratuita, inclusiva e socialmente referenciada. Ao mesmo tempo que leva para dentro das casas a responsabilidade do ato de educar, devido à excepcionalidade provocada pela crise sanitária, cria um falso imaginário de que as aulas por meio de plataformas digitais, acompanhadas dos pais ou responsáveis, por si só darão conta da demanda pedagógica.

Em tese é isso que o homeschooling defende e o governo irá propor a regulamentação da educação domiciliar para vigorar também depois da pandemia do novo coronavírus. Proposta nesse sentido está sendo encaminhada pelo Palácio do Planalto ao Congresso por meio de medida provisória cujo texto conta com o auxílio da entusiasta da ideia, Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A discussão, contudo, é rechaçada por especialistas da área de educação, pedagogos, entidades de representação de estudantes e trabalhadores do ensino, bem como pelo Fórum Nacional Popular de Educação.

Atualmente, na experiência do cotidiano de menos de 40 dias de isolamento social, o homeschooling já sofre com os primeiros sinais de desgaste antes mesmo de ser regulamentado e, na verdade, tem se tornado impraticável em muitos lares do Brasil e do mundo. A globalização tecnológica nos coloca em contato com o mundo, mas a necessidade da presença física do professor para mediar a aprendizagem está a cada dia sendo mais comprovada.

Além da questão específica da educação domiciliar, o que temos visto como projeto na área de educação para o Brasil, para além das patacoadas do ministro da pasta, Abraham Weintraub? O ministro, que tem como característica principal os comentários polêmicos em redes sociais sobre vários assuntos — e não necessariamente educação —, há um ano à frente do MEC não apresentou nenhuma grande política educacional. Ao contrário, por trás define os rumos para fomentar cada vez mais uma educação elitista, excludente, conservadora, antidemocrática e privatista. Investe na desregulamentação da educação através do constante incentivo à iniciativa privada e em nenhum momento consolidou ações para o cumprimento do Plano Nacional de Educação 2014/2024.

No meio de uma turbulência de mudanças no calendário escolar e propostas pedagógicas como a Medida Provisória 934, de 1º de abril de 2020, queflexibilizou os 200 dias letivos previstos na LDB para os níveis, etapas e modalidades do ensino básico e superior das redes pública e privada, mantendo as 800 horas anuais para a educação básica, o secretário de Educação Básica do MEC, Jânio Macedo, pediu demissão no último dia 9 de abril por não concordar com muitas das posições adotadas pelo ministro. Em seu lugar assume Ilona Becskeházy, que defende fortemente a atual gestão do MEC e as políticas do governo Bolsonaro, incluindo o programa de escolas cívico-militares criticado pela maioria dos educadores por atender um grupo seleto de estudantes e ter o ensino baseado no rigor e na disciplina. Vale lembrar que, há alguns anos, Becskeházy foi diretora da Fundação Lemann, que a colocou à frente como especialista em educação. Quem é a Fundação Lemann nesse latifúndio senão a maior interessada em implementar o ensino a distancia na educação básica?

Afinal, o que justifica que o lugar de uma educação alicerçada nos princípios da igualdade se dê na escola e não em casa?

A educação que se dá nos bancos da escola não representa apenas o repasse de conteúdo formal, mas sim a possibilidade de uma formação ampla, que pode proteger crianças e adolescentes e eventualmente até inibir a exploração infantil e a violência doméstica, permitindo à comunidade escolar acompanhar, fiscalizar, influir e participar do processo do pleno desenvolvimento da criança e do adolescente como cidadão. É na escola que efetivamente se dá atenção e se permite a inclusão dos jovens com necessidades especiais; onde se respeita as diversidades de cada região do país , não permitindo que a estandardização dos materiais e métodos didáticos coíbam um real significado do ato de aprender.

O que parece cada vez mais certo é o amordaçamento do magistério, que quer o sucateamento e a privatização das escolas públicas. Pode parecer um contrassenso, mas não é. Bolsonaro e seu governo estão ao lado dos privatistas e não podem admitir que os estabelecimentos mercantis do setor privado de ensino percam a máxima do mercado: o lucro.

Sabemos que educação não é mercadoria. Mas essa tem sido a prática deste governo tratá-la como produto em balcão de negócios. Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro não fez nada para manter as escolas públicas em pleno funcionamento. Em vez disso, por exemplo, manteve a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um teto para os gastos públicos e que, em 2019, foi responsável pelo governo deixar de aplicar R$ 32 bilhões na educação.

O ataque constante à escola, principalmente a pública, se dá em razão do papel social, moral e de emancipação que ela promove, pois é nesse espaço plural que o povo tem oportunidade de passar por um processo de esclarecimento e de construção de uma sociedade livre, soberana e fraterna, que pressupõe dignidade aos cidadãos.

*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, mestranda do curso de Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região /SC (Sinpro), Coordenadora da secretaria de Assuntos Educacionais da (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional de Educação (FNPE). Autora da Coluna “Para onde caminha a educação” aqui no Tribuna Universitária.

Publicado originalmente no Tribuna Universitária

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