30 anos da Constituição Cidadã

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Há trinta anos, completados ao dia 5 de outubro corrente, o grande e saudoso estadista Ulisses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, a quem o Brasil verdadeiro deve muito e deverá sempre, declarou promulgada a Constituição Federal (CF), tecida a milhões de mãos, com cheiro de amanhã, não de mofo, nas suas felizes palavras, ditas, em discurso pronunciado aos 27 de julho de 1988, em resposta às vozes agoureiras que a taxavam como inviabilizadora da governabilidade, antes mesmo de ela ser promulgada.

Para que naquele inapagável momento mágico, de êxtase coletivo, emergisse o efetivo e invencível brado de sólida construção do Estado Democrático de Direito, a sua razão primeira e única, pelo o qual o povo brasileiro lutou e luta incansavelmente, desde tempos imemoriais, Ulisses — ou Odisseu, não o da mitologia grega, mas o real — encerrou-o com o desafio eterno: “Muda, Brasil!”.

Aquele dia fantástico e ímpar jamais será apagado da memória do Brasil e dos brasileiros que dele participaram, seja como constituintes, seja como cidadãos(ãs), ambos escultores da CF cidadã, que tem como esteios e farol a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Apesar das costumeiras aves agoureiras, velhas e novas, dizerem o contrário, o desafio final do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, “Muda, Brasil”, ecoou pelos anos afora, produzindo profundas e colossais transformações políticas, sociais e econômicas.

A título de ilustração, para corroborar essa assertiva, citam-se:

I. A realização de sete eleições presidenciais (1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014), sendo a oitava marcada para dois dias após o trigésimo aniversário da CF. Todas contando com o voto de analfabetos, que só adquiriram esse que é o primeiro direito da cidadania com a CF de 1988.

É bem verdade que nem sempre a escolha presidencial foi a melhor para a ordem democrática, o que se ameaça novamente; mas isso não pode ser levado à conta da CF.

Não é demais lembrar que, no ato da promulgação da CF, em 1988, havia 28 o anos que não se realizavam eleições presidenciais no Brasil; a última, até então, fora a de 1960. Por isso, quem nasceu a partir do ano de 1943, inclusive, somente pôde exercer o direito de voto para presidente da República em 1989. Com isso, muitos o fizeram com 46 anos de idade.

II. O Sistema Único de Saúde (SUS), o maior e mais inclusivo do mundo, garantindo saúde a mais de 70% da população de mais de 207 milhões de habitantes; hoje, em franco processo de sucateamento, pela Emenda Constitucional (EC) N. 95/2016, que congela os investimentos sociais por 20 anos.

III. A universalização da Previdência Social, que garante dignidade a nada menos do que 3.563 dos 5.570 municípios brasileiros, que têm como principal fonte de riqueza a aposentadoria de um salário mínimo.

IV. A universalização do direito à educação básica, dos 4 aos 17 anos, o Fies, o Prouni e as cotas sociais para estudantes de escolas públicas, incluindo centenas de milhares deles.

V. A liberdade de organização sindical, nela incluído o direito de os servidores públicos sindicalizarem-se, o que era proibido antes da CF de 1988.

Não obstante todas essas radicais transformações democráticas, a CF não teve um minuto de sossego e de trégua, sendo alvo de constantes e certeiros ataques dos detentores do capital e de seus agentes, concentrados no Congresso Nacional, na Presidência da República — no período de 1989 a 2002 e após o golpe institucional de 2016 —, e no Supremo Tribunal Federal (STF), desafortunadamente erigido por ela como o seu guardião.

Já foram perpetradas 99 emendas constitucionais, que alteraram 121 artigos dos 245 originais do seu corpo permanente (49%), aos quais foram incluídos 15 outros; bem assim, alteraram-se cinco dos 71 artigos originais do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), alguns, como o 60, várias vezes, acrescendo-se, ainda, 44 novos artigos.

Dentre as 99 emendas constitucionais, contam-se nos dedos das mãos as que tiveram como objetivo a ampliação de direitos fundamentais sociais, com destaque para as seguintes:

I. EC 45 e ECs 14 e 53, que, respectivamente, criaram e regulamentaram o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef).

II. EC 26 e 90, que acrescentaram ao Art. 6º, respectivamente, moradia e transporte como direitos sociais;

III. EC 45, parcialmente, acrescentando ao Art. 5º os §§ 3º e 4º, que dispõem: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” e “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

Paradoxalmente, a EC condiciona o dissídio coletivo de natureza econômica à concordância dos sindicatos profissionais e patronais, uma teratológica exigência.

IV. EC 59, que cria e regulamenta o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

V. EC 66, que autoriza o divórcio direto, independentemente do tempo de separação de fato e/ou judicial.

VI. EC 67, que prorroga, por tempo indeterminado, o fundo de erradicação da pobreza.

VII. EC 72, que estende os direitos sociais, elencados no Art. 7º, aos trabalhadores domésticos.

Dentre as emendas constitucionais restritivas e/ou supressivas de direitos, sobrelevam-se: a 3, que criou a famigerada ação declaratória de constitucionalidade (ADC) que permite ao STF declarar constitucionais leis com essa finalidade, como o fez ao julgar a ADC 55, ajuizada pela Abert, para dar foro de constitucionalidade à alteração promovida pela Lei N. 13.467 na contribuição sindical, transformando-a em facultativa; e a 95, a mais criminosa de todas, por congelar os investimentos sociais durante 20 longos anos.

Vale registrar que o inciso I do Art. 7º, pendente de regulamentação por lei complementar para proteger a relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa — sem dúvida, a maior garantia dentre as 34 elencadas neste Art. — é tratado com absoluto desprezo pelo Congresso Nacional, que nem sequer cogita regulamentá-lo.

Como se não bastasse tudo isso, o STF, nomeado pela CF como o seu o guardião, em reiteradas decisões, decidiu que vale a sua vontade e não o que ela preconiza, sendo a mais gritante e monstruosa a que afirma não ser válida a garantia inserta no Art. 5º, inciso LVII, que determina: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Em que pesem todos esses pesados morteiros disparados contra a CF, indiscutivelmente, ela continua a ser o único caminho capaz de assegurar o bem-estar e a justiça sociais, preconizados pelo seu Art. 193.

No seu já citado magistral discurso de promulgação da CF, Ulisses Guimarães afirmou, com toda a ênfase de que era capaz: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”.

Parafraseando-o, é imperioso dizer que a sociedade é: o povo laborioso, e não os detratores da ordem democrática; a CF cidadã, e não o Congresso Nacional e o STF, rendidos aos nefastos interesses do capital; Ulisses Guimarães, e não o nanico e usurpador Temer e o profeta do apocalipse, Jair Bolsonaro; a sociedade é o porvir e não o mergulho no passado tenebroso, ora em curso.

Como bradaram os espanhóis, ao longo do reinado de terror de Franco (1936 a 1974): esses inimigos da CF, portanto, do Brasil, não passarão.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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