Construção civil responde por maioria do trabalho escravo no país
Os bons números do mercado de trabalho na construção civil têm sido acompanhados pelo aumento de flagrantes envolvendo situação de trabalho análoga à escravidão. As construtoras estão em cinco das dez operações que resultaram no maior número de trabalhadores resgatados pelo Ministério do Trabalho (MTE) até 6 de dezembro. Respondem por 66% dos trabalhadores libertados nesse grupo. Fazendas aparecem em segundo lugar e confecções, que fornecem peças para varejistas, compõem o quadro das candidatas a entrar na lista suja do MTE. Entre as flagradas, há grandes como a OAS, que encabeça o grupo com 111 resgatados.
O trabalho escravo continua sendo identificado majoritariamente com o campo. Mas os resgates em centros urbanos têm crescido nos registros. São trabalhadores expostos a jornadas de mais de 12 horas, sujeitos a falta de condições de segurança e servidão por dívida. Em outro levantamento, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), pela primeira vez, 50% do total de trabalhadores resgatados este ano estão entre atividades não-agrícolas. A construção civil responde por 39% dos casos.
Para o chefe da fiscalização para erradicação do trabalho escravo, Alexandre Lyra, o aumento revela ações mais focadas. “Temos voltado nossas atenções ao meio urbano. Não significa que há 17 anos, quando a fiscalização começou, não houvesse esses casos”, afirma.
O procurador que coordena o combate ao trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), Jonas Ratier Moreno vê uma mudança de mentalidade. “O trabalho escravo ainda está no campo, na agropecuária, em desmatamento, carvão vegetal e silvicultura, mas há uma conscientização maior do trabalhador desses lugares”, garante.
Em setembro, a OAS, que toca as obras de ampliação do Aeroporto de Guarulhos e detém 25% da Invepar, consórcio que ganhou a concessão do aeroporto, foi flagrada. Os trabalhadores dizem ter sido aliciados por funcionários da própria construtora em Pernambuco. As principais irregularidades, segundo os auditores, foram encontradas nos alojamentos, onde conviviam com superlotação e falta de higiene.
Grifes de gente rica foram flagradas
Entre as construtoras flagradas neste ano, quatro estão no Programa Minha Casa, Minha Vida. A J. Soares Construtora teve 70 trabalhadores resgatados em Itaberaí (GO). Foram lavrados 51 autos de infração. A MRV, construtora que conseguiu este ano na Justiça sair da lista suja, teve novo flagrante em Belo Horizonte, quando foram resgatados seis trabalhadores. Segundo os auditores fiscais, alguns não tinham sequer colchão para dormir.
As empresas flagradas respondem a processo administrativo que dura em média dois anos e, caso entrem na lista suja de trabalho escravo do Ministério do Trabalho, poderão ter restrição a crédito por parte de instituições financeiras. Levantamento da ONG Contas Abertas constatou que três construtoras que tiveram flagrante de trabalho escravo receberam recursos do governo federal este ano. A Tratenge Engenharia é a que recebeu mais recursos, R$ 61,966 milhões, de diversas fontes. Para o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, foi responsável pela manutenção de rodovias em Minas Gerais.
“Nós estamos num momento de muitas e grandes obras, que vão demandar uma quantidade inédita de trabalhadores deslocados. O desafio é acompanhar essa mão de obra nos próximos três anos”, acentua o auditor fiscal de São Paulo Luis de Faria.
Para Lyra, do Ministério do Trabalho, a terceirização de empresas é uma das principais razões a levar ao aumento desse tipo de caso, não apenas na construção. No caso do flagrante da Restoque, dona das marcas Le Lis Blanc e Bo.Bô, o ministério sustenta que houve terceirização irregular. Fornecedores da empresa compravam de oficinas com costureiros bolivianos as roupas que custavam, em média, R$ 3 a peça. “A terceirização, como vem sendo praticada, tem levado à precarização, que dá margem a casos como esses” diz Lyra.
O frei Xavier Plassat, da CPT, alerta para as dificuldades de reinserção dos trabalhadores libertados. Ele não descarta casos de reincidência, embora não existam estatísticas a respeito. “É um ciclo perverso. No caso da construção, se restitui o trabalhador ao universo em que ele vivia. A probabilidade de que volte a se sujeitar a esse tipo de trabalho é grande”, avisa.
Por Clarice Spitz, do jornal O Globo