Entidades fazem repúdio ao golpe no ‘centro de extermínio’ da ditadura

São Paulo – Um dos mais emblemáticos centros de repressão no período da ditadura foi o palco escolhido para a “descomemoração” dos 50 anos do golpe civil-militar. Durante toda a manhã de ontem (31), mais de mil pessoas ocuparam o pátio externo do atual 36º Distrito Policial, entre os bairros da Vila Mariana e do Paraíso, zona sul de São Paulo, próximo da sede do II Exército. Ali funcionava o DOI-Codi, por onde passaram até 8 mil presos políticos e morreram mais de 50, segundo os cálculos de entidades de direitos humanos. Alguns voltaram ao local hoje, em ato também interpretado como uma revisão histórica no cinquentenário do golpe.

Uma lona foi erguida no pátio, um palco foi montado e um telão instalado na área símbolo da ditadura. Para a advogada Rosa Cardoso, integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a escolha do local ajuda a transmitir a “ideia de que sofremos, fomos desfigurados, fomos traumatizados, mas sobrevivemos”. Segundo ela, ali funcionava um “centro de referência de extermínio”, onde se desenvolveu a “tecnologia da repressão”.

Esteve lá, por exemplo, o ex-preso Anivaldo Padilha, antigo militante da Ação Popular, que contou estar retornando pela primeira vez ao local desde 1970. As cenas de tortura “voltaram”, mas ele destacou a importância do que chamou de retomada. Ao lado dele, seu filho Alexandre, ex-ministro e pré-candidato pelo PT ao governo estadual.

Também estava ali Audálio Dantas, ex-deputado e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, entidade que dirigia quando foi morto o então diretor de Jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, em 1975. Morto no mesmo local onde foi realizado o ato de hoje. “A partir desse episódio, a consciência nacional começou a despertar”, diz Audálio. “Conseguimos enormes avanços”, acrescenta, citando o movimento pelas eleições diretas, a Lei da Anistia (mesmo questionada) e a Constituição de 1988, que ele destaca como “a maior conquista do povo brasileiro”.

Censura

Não existe mais censura, afirma Audálio, com a ressalva que os grandes veículos de comunicação continuam a praticá-la por conta própria. Para ele, falta uma democracia “que seja de fato um instrumento ao alcance de todos”. A tortura segue sendo praticada em delegacias. “E temos uma polícia que é contra o povo, em vez de defender o povo, principalmente o mais humilde.”

Criado no período mais violento da ditadura, no final de 1970, o Coro Luther King se apresentou com músicas que, contam alguns militantes, eram cantadas na prisão: Suíte dos Pescadores (Dorival Caymmi), Viola Enluarada (dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle), Bella Ciao, canção da resistência italiana durante a 2ª Guerra Mundial, e o hino da Internacional Socialista.

Em seguida, é transmitido um áudio com o ex-deputado Rubens Paiva, gravado pela rádio Nacional na madrugada de 1º de abril de 1964. No depoimento, ele presta solidariedade ao ainda presidente João Goulart e às chamadas reformas de base, medidas que, segundo ele, “levarão à nossa emancipação político-econômica definitiva”. Era um “momento decisivo”, alertou o deputado trabalhista, que foi preso em 1971 e nunca mais foi visto. A audição emociona Maria Lúcia Paiva Mesquita, irmã de Rubens.

Muitos cobram providências para punir agentes do Estado envolvidos com torturas. A ex-presa política Amélia Telles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, diz, por exemplo, que o governo ainda tem “mãos sujas de sangue”.

Assassinato

O deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, que leva justamente o nome de Rubens Paiva, recorda o momento de sua prisão, naquele mesmo local, em 1973. “Cheguei aqui neste pátio. O major veio me pegar aqui, neste pedacinho… Estavam lavando a cela-forte, tinham acabado de matar o Alexandre (Vannuchi). Ele falou: ‘Acabei de matar aquele filho da puta, mandei ele para a Vanguarda Popular Celestial. Vou te mandar pra lá também'”, recorda.

A sigla era referência à VPR, Vanguarda Popular Revolucionária, onde militava o então estudante da USP. “Se eu disser que que estou aqui à vontade, que estou tranquilo, que perdi totalmente o medo, o trauma… Tem noites que eu passo mal, que estou agitado”, afirma o deputado, que passou 90 dias na solitária. “Fiquei quase louco.”

Segundo ele, em um relatório final de atividades da comissão bastaria escrever “revogue-se a Lei da Anistia”. Com isso, acredita, o Brasil iniciaria um novo patamar civilizatório. “A grande contribuição desse movimento (referindo-se às várias comissões da verdade) é a perda do medo.” Sobre o ato no antigo DOI-Codi, o deputado afirma que a manifestação não pode ser vista como apenas um pedido de transformação do local em um centro de memória. “Muito mais importante que fazer o memorial é devolver os arquivos do IML. Nunca ganhamos uma foto, um laudo dos legistas.”

O prédio onde funciona hoje o 36º DP foi tombado no Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Depois disso, a Assembleia Legislativa revogou o Decreto nº 13.757, de 1979, pelo qual o governador Paulo Maluf autorizou o uso do local pelo Exército, que na prática já era usado como local de torturas desde o final dos anos 1960. Entidades defendem que a atual delegacia se transforme em um centro de memória, assim como aconteceu com o antigo Dops, que hoje abriga o Memorial da Resistência. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), que passou rapidamente pelo local, se manifestou favoravelmente à reivindicação.

O advogado Airton Soares, ex-deputado, também critica a omissão dos militares atuais em relação à entrega de documentos. “Eles não têm nada a ver como o que foi feito e encobertam os assassinos”, afirmou. Para ele, o ato de hoje deveria ter sido feito há muitos anos, logo depois da anistia, em 1979, mas havia “uma necessidade de reestruturar a sociedade civil e democrática”, até para que ela se protegesse contra novas investidas autoritárias.

Contragolpe?

Soares também rebate uma versão de que 1964 teria representado um “contragolpe” contra uma “ditadura comunista” em formação. “Ainda há alguns historiadores que colocam a ação dos militares como um contragolpe. Mas foi um movimento do que havia de mais atrasado para evitar as reformas de base.” Soares lembra ainda que o ministro da Fazenda de Jango era Carvalho Pinto – um conservador que não podia ser chamado exatamente de comunista. E não vê riscos institucionais. “O que unia os militares era o anticomunismo.”

O procurador da República Marlon Weichert considera “ficção” a teoria de um golpe de esquerda, argumentação usada pelos defensores do golpe. “Basta estudar um pouco de história. Tudo bem que havia o contexto da Guerra Fria, mas me parece muito claro que era uma tentativa de desestabilizar”, observou. Ele inclui movimentos como o de hoje também como consequência de iniciativas de responsabilizar agentes do Estado, como tem feito o Ministério da Público Federal, ainda que os pedidos venham sendo rejeitados pelo Judiciário. “Isso interditou a pauta, apesar da insensibilidade da Justiça.” E considera “por si só impressionante” a realização de um ato no antigo DOI-Codi. “Estamos em um momento de rediscussão do papel do Estado. São sinais de que a democracia está conseguindo penetrar nesses últimos resíduos autoritários.”

Presidente da Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo, Antonio Funari Filho, ressaltou o caráter simbólico do evento, sem ver base de comparação com a reedição da Marcha da Família, como ocorreu recentemente. “A marcha de 64 foi patrocinada pelo governo estadual, pelo Ademar de Barros, com pessoas assustadas com a ‘onda vermelha’. Havia o contexto da Guerra Fria. Hoje, não faz mais sentido”, afirma.

Em uma visão histórica, Funari observa que alguns segmentos sociais apoiaram o golpe por considerá-lo temporário, de certa forma. “Os setores liberais, que se denominavam democráticos, por incrível que pareça, achavam que seria uma medida profilática.” Em 1965, ainda nessa linha de pensamento, seria realizada a eleição presidencial prevista, mas sem nomes como os dos governadores Leonel Brizola ou Miguel Arraes. Nem mesmo o ex-presidente Juscelino Kubitschek, diz Funari, na época secretário regional da União Nacional dos Estudantes (UNE) e também da estadual (UEE), preso dias após o golpe. “Meu crime foi fazer alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire”, lembra. A Comissão Justiça e Paz está à frente, agora, de uma campanha contra a criminalização dos movimentos sociais.

Adriano Diogo, Amelinha Teles e Ivan Seixas, da Comissão estadual da Verdade e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, leram um manifesto no qual pedem a identificação e punição “exemplar” de torturadores, mandantes e financiadores. “O terrorismo de Estado, executado pela ditadura, teve o comando do alto escalão das Forças Armadas e foi financiado diretamente por muitos empresários e suas entidades, que se beneficiaram com a ditadura militar e ainda hoje estão na elite econômica do país e na estrutura do Estado”, afirmam as entidades signatárias.

Elas também citam “as frequentes visitas” de representantes da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e do consulado dos Estados Unidos ao prédio do Dops, o que não deixaria dúvida sobre “os interesses e envolvimento do empresariado nacional e estrangeiro na continuidade da ditadura brasileira”.

Foram destacados nomes de 56 pessoas assassinadas no antigo DOI-Codi, aos gritos de “presente”. Às menções de oficiais seguia-se a acusação de “assassino”. Encenações teatrais recriaram cenas de tortura.

Estaria a esquerda reescrevendo a história, como criticam antigos militares? “É verdade. Eles estão certos”, responde Adriano Diogo. “Nós estamos reinventando a história da escravidão, do Paraguai, porque eles inventaram a mentira. Para a gente não contar a história deles. Se pelo menos isso a gente fizer, já está bom. A Justiça de Transição fala em memória, verdade e justiça. Nós só estamos preservando a memória, não chegamos nem na verdade.”

Da Rede Brasil Atual

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