Ataques no Ceará, a face visível do domínio das facções no Brasil

A onda de ataques urbanos ordenados das prisões no estado do Ceará é um reflexo do colapso do sistema carcerário em todo país – dominado por facções de traficantes de drogas -, um dos principais desafios em matéria de segurança pública para o governo Jair Bolsonaro.

Reagindo ao endurecimento das medidas de segurança dentro dos presídios anunciado pelo governo local, os principais grupos rivais do Ceará se aliaram atrás das grades para orquestrar explosões e incêndios em viadutos, bancos, torres de transmissão de energia elétrica, ônibus e automóveis em mais de 40 localidades diferentes, incluindo Fortaleza.

A frequência dos incidentes violentos, que começaram em 2 de janeiro, diminuiu nos últimos dias, após o envio de agentes federais e de outras medidas para reforçar a segurança.

Ainda não cessaram por completo e continuam a aterrorizar a população, que deixou de circular pelas ruas por medo de se tornarem alvo.

– Presos controlando as prisões –

A crise atual “é apenas a face visível de uma panela de pressão que é o sistema carcerário brasileiro, que, de vez em quando, vira o tapete”, disse a professora Camila Dias, da Universidade Federal do ABC, especialista nos grupos criminosos que disputam o tráfico de drogas no país.

“As prisões estão em condições sub-humanas, superpopulosas, sem a estrutura física e a administração adequada por parte do Estado, sem condições mínimas. Isso faz que, com cada vez mais frequência, surjam ondas de violência de dentro para fora dos presídios”, explica ela.

Com 720.000 pessoas atrás das grades, segundo números oficiais, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás de Estados Unidos e China.

Camila acrescenta que, em todo país, os presídios “estão nas mãos dos próprios presos”, diante da incapacidade do Estado de fornecer condições básicas, como alimentação, vestuário e vigilância.

No caso do Ceará, onde a superpopulação é superior a três detentos para cada lugar disponível, as ordens de atacar instalações públicas vieram depois que o novo secretário de Administração Penitenciária, Luís Mauro Albuquerque, anunciou que o Estado retomaria o controle dos presídios confiscando celulares, armas e drogas e pondo fim à separação de presos por facções, uma prática comum.

– ‘Quem manda é o Estado’ –

“Precisamos mostrar que quem manda é o Estado”, justificou o governador do Ceará, Camilo Santana, após se reunir na quinta-feira, em Brasília, com o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, a quem solicitou o envio de cerca de 400 homens da Força e 90 agentes penitenciários.

Além disso, as autoridades transferiram cerca de 40 membros de facções para presídios federais de segurança máxima e convocaram pelo menos 800 policiais militares da reserva para reforçar a patrulha.

Mesmo que a situação se normalize no Ceará, Moro terá de lidar com o problema estrutural representado pelo crime organizado em torno do tráfico de drogas, que comanda seus negócios de dentro dos presídios e, nos últimos anos, elevou de forma alarmante os índices de violência no Brasil.

O que há dez, ou 15, anos era um fenômeno restrito a grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, hoje se estendeu a todo território, colocando vários estados do Nordeste, como Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, entre os mais violentos do país.

– Atos ‘terroristas’? –

Uma das queixas do governo é que a legislação em vigor não é suficiente para reprimir ataques como os ocorridos no Ceará.

“Nunca aconteceu o que está acontecendo, que usem bombas para explodir viadutos, derrubar torres de transmissão de energia. Isso só pode ser classificado como terrorismo. Tem que rever a legislação”, defendeu Santana esta semana, que, apesar de ser do PT, concorda com o governo Bolsonaro nesse ponto.

Ele diverge, porém, nas demais propostas do governo de extrema direita, como a flexibilização da posse de armas e a pretensão de reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos.

Para Camila Dias, concentrar-se apenas na repressão poderá colocar mais pessoas atrás das grades, em um sistema já em colapso. A especialista defende, pelo contrário, uma redução da população carcerária.

“Não se trata de abrir as portas da prisão e soltar todos, mas de elaborar políticas públicas, que é o que está faltando no país, de curto, médio e longo prazo, que tenham como objetivo reduzir o número de pessoas presas”, argumentou.

Além de melhorar as condições de reclusão, dando aos internos o direito e a obrigação de estudar e trabalhar, é necessária uma política de egresso para evitar a reincidência, e trabalhar na prevenção, para “que crianças e adolescentes tenham outra perspectiva, uma vida digna fora do mundo do crime”, completou Camila.

AFP

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