“Sem ensino público, vamos cair em uma vala”, diz médica que diagnosticou HIV no país
Em entrevista exclusiva, Valéria Petri fala o que representa a descoberta da “cura” da Aids em estudo da Unifesp
Poucos dias antes do feriado de 7 de setembro de 1982, a dermatologista Valéria Petri atendeu um jovem paciente em seu consultório, em São Paulo. “Ele me disse que tinha um problema no pé que parecia a ‘bolha assassina’, que tirava e voltava”, relembra a médica, que é docente titular da Escola Paulista de Medicina (EPM), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A lesão que relatava o rapaz dava a dimensão do que estava acontecendo em todo o seu corpo. Após exame patológico foi identificado o Sarcoma de Káposi, tumor maligno e uma das manifestações da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) no corpo humano. Era o primeiro diagnóstico de infecção pelo vírus HIV no Brasil.
Quase quatro décadas após o primeiro diagnóstico da doença, um estudo coordenado por Ricardo Sobhie Diaz, diretor do Laboratório de Retrovirologia do Departamento de Medicina da instituição, da Unifesp, conseguiu eliminar o vírus HIV de um paciente brasileiro de 35 anos.
Para Petri, o resultado não foi por acaso. O avanço nos últimos 30 anos em relação às pesquisas sobre o HIV, segundo ela, já permite a “negativação” dos portadores para que não sejam transmissores – mesmo que não consigam ter o vírus completamente eliminado do organismo.
A dermatologista, no entanto, é enfática ao reconhecer a importância do caso para dar um outro significado à hegemonia da produção científica mundial. Na última semana, o estudo da Unifesp foi o carro-chefe da maior conferência mundial sobre o tema, a UNAIDS 2020 – que aconteceu de forma virtual pela primeira vez neste ano.
“Se ele conseguiu, você tem que apoiar. Qual é o problema? É ser brasileiro? Se for esse problema, a gente pode conversar. Eu posso dizer que o CDC dos Estados Unidos demorou dois anos para reconhecer que tuberculose era um sinal de Aids. Enquanto isso, quantas pessoas morreram porque eles diziam que não tinha nada a ver? Existe razão para a hegemonia, o que não pode acontecer é tirar do outro a possibilidade de ser [reconhecido], seja um indivíduo ou uma nação”, opina Petri, que define a tradição da Unifesp e da EPM como “muito cautelosa e aprofundada”.
Universidade pública
Até o momento, três pessoas no mundo tiveram a cura do HIV confirmada, duas a partir de um transplante de medula óssea. O estudo da federal de São Paulo, se confirmado, será o primeiro caso de eliminação do vírus a partir de um medicamento. O paciente, com diagnóstico de 2012, está há 14 meses sem o vírus no organismo.
O remédio testado no rapaz ataca os chamados “reservatórios do HIV”, locais onde a carga viral permanece indetectável no organismo apesar do tratamento com coquetéis retrovirais.
Petri analisa que a universidade pública, como é o caso da Unifesp, é a única que pode oferecer resultados como o de Diaz, que transcendem a “simples execução de um trabalho” e caminham para eliminar os grandes “agravos” da natureza. É necessário, portanto, que sejam subvencionadas e fortalecidas com políticas públicas, caminho contrário do que é observado na atual conjuntura.
“Se a gente não der apoio para isso, de alguma maneira, fazendo com que as políticas públicas sejam consistentes para manter as universidades públicas, o ensino público, nós vamos cair em um vala. E nessa vala nós vamos ter só a continuidade de um processo de destruição que resulta na não contenção das epidemias e na não contenção dos grandes agravos da humanidade”, avalia.
A especialista completa: “foram contratadas pessoas para destruir a universidade pública, porque isso é um contrato para destruição, para eliminar as coisas que possam interferir nas questões prioritárias do universo financeiro. Eu suspeito que nós não tenhamos o suficiente para manter as universidades públicas com os cérebros que vão identificar os grandes problemas e eliminá-los, como esse rapaz está tentando eliminar o HIV”, ressalta.
Até o fim de 2018, 37,9 milhões pessoas no planeta estavam vivendo com HIV, segundo a Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS). No Brasil, a média anual nos últimos cinco anos foi de 39 mil novos casos. Estima-se que até o ano passado, 866 mil pessoas conviviam com o vírus no país. Os dados são do Ministério da Saúde.