Desfigurado pela base de Bolsonaro na Câmara, Fundeb pode tirar R$ 15 bi da educação pública

São Paulo – Aprovada pela base governista na Câmara, transferência de recursos do novo Fundeb para a rede particular pode retirar R$ 15,9 bilhões da educação pública. É o que estima a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), em nota técnica divulgada nesta segunda-feira (14). De acordo com as entidades, caso o desvio de recursos públicos para o Sistema S (Senai e Senac), e até escolas ligadas a igrejas, seja mantido no Projeto de Lei (PL) 4.372/2020 pelo Senado, os municípios brasileiros, principalmente os mais pobres, “terão enormes perdas”.

Na sessão plenária da Câmara que aprovou o PL da regulamentação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação o PL, o texto sofreu “retrocessos” e foi “desconfigurado” na avaliação da CNDE, da Fineduca e da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE).

A proposta seguiu para votação do Senado, onde deve ser pautada ainda nesta semana. A expectativa das entidades, contudo, é que os legisladores “salvem o Fundeb”.

Desmobilização da rede pública

Do contrário, a inclusão de instituições da rede particular pode custar R$ 6,4 bilhões para as redes públicas do Sudeste. E até R$ 4 bilhões para as escolas do Nordeste e R$ 2,5 bilhões no Sul do país. Norte e Centro-Oeste podem também perder R$ 1,8 bilhão e R$ 1,3 bilhão, respectivamente.

De acordo com a Campanha Nacional e a Fineduca, isso significa menos R$ 3,7 bilhões para as escolas públicas de São Paulo. E a retirada de R$ 1,5 bilhão da educação de Minas Gerais. Estados como Bahia e Rio Grande do Sul podem perdem cerca de R$ 1 bilhão cada. Enquanto que o setor privado, com a reserva de 10% das vagas do ensino fundamental e médio, passará a receber R$ 10,2 bilhões.

Ao atribuir para a iniciativa privada também as atividades extracurriculares oferecidas no contraturno escolar, o setor também ganhará mais R$ 4,4 bilhões. O PL também repassará mais R$ 546 milhões ao Sistema S que, hoje, já recebe ao menos R$ 21 bilhões por ano de recursos públicos. O equivalente a 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB). As entidades também apontam que outros R$ 764 milhões serão enviados ao setor privado por meio do artigo 7º do texto que permitiu convênios irrestritos com creches, pré-escolas e instituições privadas que oferecem educação especial.

Farra com dinheiro público

Para o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e dirigente da CNDE, Daniel Cara, “foi feita uma farra com dinheiro público na Câmara dos Deputados”. Em entrevista a Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual, o educador diz “que o aconteceu foi uma das páginas mais tristes da educação pública”. “Agora cabe ao Senado resolver esse problema”, cobra.

O PL original previa os respasses às instituições privadas no caso de creches, pré-escolas e educação do campo, que segundo as entidades, “há, sabidamente, falta de vagas”. Ao ampliar a oferta, explica Daniel Cara, os deputados “cometeram um erro inconstitucional”. “O artigo 213 da Constituição Federal proíbe que estabelecimentos privados recebam recursos no ensino fundamental e médio quando esses estabelecimentos estão em municípios que já não precisam criar novas matrículas”, contesta.

Controversas do setor privado

A nota técnica da CNDE e da Fineduca também observa que “não há falta de vagas na rede pública dessas modalidades de ensino”. As matrículas dos estados e municípios no ensino caíram de 36,2 milhões, em 2007, para 28,1 milhões, em 2019, segundo o documento. Essa redução, de 8,1 milhões “indica que o próprio sistema público tem como incorporar eventuais aumentos de atendimento com maior rapidez e eficiência (economia de escala) que o setor privado não lucrativo”.

Com base no Censo Escolar de 2019, o documento também acrescenta que o Sistema S, apesar de já receber recursos públicos, é responsável por 1.365 escolas distribuídas em apenas 10% dos municípios. A maior parte deles (72%) em cidades com 50 mil habitantes ou mais.

“Tem pouca capilaridade no país, além de cobrar mensalidades em muitos estados”, critica as entidades. O educador da USP acrescenta que o repasse não é auditado. “E agora eles vão receber mais recursos. Existe uma previsão de que em três anos, eles podem ganhar mais R$ 7 bilhões”, afirma.

Derrota para a educação pública

Daniel Cara também critica a atuação da oposição, que vinha tentando barrar os retrocessos previstos no PL junto ao seu autor, o deputado federal Felipe Rigoni (PSB-ES). Para ele, o campo progressista agiu de maneira “atabalhoada” ao não garantir que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e os líderes dos partidos aliados ao governo Bolsonaro, cumprissem o acordo feito pela oposição com Rigoni.

“E o resultado foi esse. O partido Novo, PSL, PSDB, parte do PSD, os partidos que compõem o centro e a direita acabaram destruindo o texto do Fundeb. Entregaram R$ 15,9 bilhões das escolas públicas que precisam e já não têm muito dinheiro mesmo com a aprovação do novo Fundeb”, diz ele, em referência ao aumento da complementação da União, que passará dos atuais 10% para 23% até 2026.

“A Emenda Constitucional (108/2020) foi uma grande vitória, mas eles desfiguraram essa vitória e transferiram para o setor privado. É um impacto avassalador, algo vergonhoso. Concretamente a educação pública saiu derrotada”, avalia. “Vitoriosos mesmo é o setor privado da educação, Rodrigo Maia e Jair Bolsonaro”.

#FundebÉPúblico

Há ainda, contudo, a expectativa para que os senadores barrem os retrocessos incluídos no PL. De acordo com Daniel Cara, a Campanha Nacional vem exigindo que o Senado altere o texto, corrigindo essas previsões de repasse do dinheiro público. “O Senado tem todas as condições de resolver. Resta saber se os senadores vão querer ou não fazer parte dessa farra com recurso público cometida pela Câmara”, adverte.

A CNTE, por outro lado, considera que a opção estratégica para melhor regulamentar o Fundeb é que os senadores abdiquem de votar o projeto de lei. O governo federal já anunciou que se a regulamentação não for votada, até o final do ano, o Fundeb entrará em vigência por meio de Medida Provisória. A Confederação considera em nota que a regulamentação via MP seria mais prudente porque exigiria posterior avaliação do Congresso em até 120 dias. Um prazo “mais dilatado e participativo”, na avaliação da CNTE, que daria para as entidades debaterem e retirarem os retrocessos.

Diante dessas duas possibilidades, nas redes sociais, entidades, parlamentares, representantes e apoiadores da educação pública emplacam também tuitaços com a hashtag #FundebÉPúblico #FarraNoFundebNÃO!. A Campanha Nacional também organiza audiência com os senadores e vem divulgando um kit de mobilização que ilustra os riscos previstos. O dirigente da CNDE defende que é preciso “pressionar os senadores para tomar as decisões coerentes com o direito à educação”.

Rede Brasil Atual

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