Empresas transacionais violam direitos humanos e tomam terras para instalar eólicas
Série de reportagens com depoimentos de trabalhadores e movimentos sociais e sindicais mostram como empresas transnacionais violam os direitos humanos e se apropriam de terras de agricultores e comunidades
A energia renovável, necessária para que a humanidade não fique apenas na dependência dos combustíveis fósseis que poluem e têm acelerado a destruição do meio ambiente, tem sido uma alternativa para desenvolvimento em todo o mundo. O uso das energias solar e eólica, a princípio, foi aclamado como uma solução para diminuir a poluição e estabelecer um meio ambiente mais saudável para todos. No entanto, no Brasil, por falta de leis e regulamentação, o que se vê é um flagrante desrespeito aos direitos humanos, a “expulsão legalizada” de proprietários de terras produtivas, danos à saúde, o aumento da violência contra as mulheres e da exploração infantil e a degradação ambiental com prejuízos incalculáveis à fauna e à flora, nas localidades, principalmente no Nordeste, em que os parques eólicos estão sendo instalados por empresas transnacionais da França, Alemanha, Noruega, Espanha, entre outras.
Diante desse flagrante desrespeito à soberania nacional, aos diretos dos trabalhadores e trabalhadoras da agricultura familiar e à população das comunidades que a CUT Nacional, por meio da Secretaria de Políticas Sociais e Direitos Humanos, seus sindicatos e seu corpo jurídico, está à frente, junto com diversas entidades na defesa da população dessas comunidades.
Para falar sobre essa situação catastrófica o Portal CUT publicará uma série de reportagens sobre a instalação dos parques eólicos no Brasil. A nossa primeira entrevista é com a Secretária Nacional de Políticas Sociais e Direitos Humanos, Jandyra Uehara, que tem acompanhado de perto toda esta situação.
Por que a CUT está envolvida nas ações que denunciam a instalação de parques eólicos no Brasil?
Jandyra Uehara – Primeiro é preciso relembrar que a CUT desde 2016, após os crimes ambientais que devastaram a cidade de Mariana, em Minas Gerais, provocados pela mineradora Samarco, subsidiária da Vale, passou a trabalhar diretamente com o tema Direitos Humanos e Empresas, que diz respeito a como as multinacionais atuam no Brasil e no mundo.
Embora tenha ocorrido há alguns anos, a situação em Mariana trouxe à tona essa discussão muito fortemente. Na ocasião, através da nossa atuação no Conselho Nacional dos Direitos Humanos, começamos com o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), o Instituto Homa, a Fundação Friederich Hebert (FES) e outras entidades a trabalhar uma resolução sobre direitos humanos e empresas, que foi aprovada em 2020.
A partir daí construímos e articulamos o projeto de lei 572/2022 – Lei Marco dos Direitos Humanos e Empresas, bastante avançado e abrangente em relação a essa questão, subscrito pelos deputados Carlos Veras, Helder Salomão, Ana Aurea e Fernanda Melchionna, mas que encontra dificuldades em avançar diante de um Congresso conservador.
Então, decidimos articular junto aos sindicatos, confederações da indústria e de outros ramos, principalmente os que negociam com grandes empresas multinacionais, além de parceiros, para propor que estes temas façam parte das negociações coletivas. E no ano passado, a partir do Congresso Estadual da CUT-RN, tomamos conhecimento através da Federação dos Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte (FETARN) de toda essa situação em relação às eólicas, que tem tudo a ver com a questão dos Direitos Humanos e Empresas.
Quais as violações aos direitos humanos que estão ocorrendo nas instalações das torres eólicas?
Jandyra Uehara – As denúncias são graves e diversas, vão desde a quantidade grande de trabalhadores precarizados e terceirizados contratados desde a fase de construção, que gera muito emprego, mas de baixa qualidade, e ainda por cima com impacto imenso nos territórios, principalmente com violência contra as mulheres, exploração sexual de crianças e adolescentes, inclusive, sem que as empresas tomem qualquer medida de responsabilização, de conscientização, para evitar que esse tipo de coisa, que infelizmente é muito comum nas grandes obras no nosso país, acontecesse.
Qual o impacto na vida dos agricultores familiares com a instalação dos parques eólicos?
Jandyra Uehara – Os trabalhadores e as trabalhadoras rurais, os que vivem da agricultura familiar, são induzidos a assinar contratos abusivos de arrendamento da terra para a instalação de eólicas, com promessas que não são cumpridas pelas empresas, e elas também não explicam o que pode acontecer com essas terras. Elas se utilizam da falta de conhecimento jurídico desses agricultores para que assinem contratos que chegam a impedir que eles continuem a produção de alimentos.
Além da produção na terra, há outro agravante na questão alimentar?
Jandyra Uehara – Sim. Existe a perspectiva de instalação de torres eólicas em mar raso, o que vai inviabilizar o trabalho dos pescadores artesanais.
Uma das maiores críticas em relação às empresas eólicas é que os contratados de arrendamento praticamente tomam a posse da terra dos proprietários. De que forma pode-se impedir esse crime?
Jandyra Uehara – Visitei três territórios no início de agosto e em Serra do Mel, no Rio Grande do Norte, descobrimos contratos antigos totalmente prejudiciais à comunidade. Então, o escritório de advogados LBS, que representa a CUT, e a FETARN entraram com uma ação coletiva contra essas empresas e estamos orientando outras comunidades que sofrem assédios das eólicas para que não assinem esses contratos abusivos, genéricos. Essa é uma ação concreta. Depois da assinatura do contrato é mais complicado desfazer.
Existe também a possibilidade de o agricultor perder benefícios do governo federal com o arrendamento?
Jandyra Uehara – Essa é uma questão muito séria e muitos agricultores familiares não tem atentado para o problema do arrendamento de terras para outros objetivos que não seja a produção de alimentos. Se arrendar mais de 50% do terreno, pode perder a seguridade social. Perde direito à aposentadoria, a todos os benefícios da seguridade social. As pessoas não são informadas disso, nem de nada, e assinam contratos que vão pra além de suas vidas, atingindo outras gerações. Muitos contratos têm cláusulas de sigilo que se o produtor denunciar ele pode sofrer multas impagáveis, de milhões, dinheiro que nunca ganharão a vida inteira.
Diante desses fatos de que forma a CUT e as entidades parceiras vêm atuando?
Jandyra Uehara – Frente a essa situação nós decidimos, no âmbito do nosso trabalho de direitos humanos e empresas, articular um trabalho no Rio Grande do Norte, onde há mais instalações de parques eólicos, embora esse problema não seja apenas do estado, é do Nordeste todo, mas começando por ali, onde apareceu esta demanda muito forte de articulação com todos os sindicatos envolvidos e também com as organizações do movimento popular.
Foi então que nós passamos neste primeiro semestre do ano, com várias visitas ao Rio Grande do Norte, realizando reuniões de preparação e seminários. Fizemos todo um processo de discussão que envolveu os sindicatos dos trabalhadores rurais ligados a FETARN a Federação dos Pescadores Artesanais, metalúrgicos e eletricitários. É importante ressaltar que envolvemos essas duas últimas categorias porque os metalúrgicos e os eletricitários são os que fazem a manutenção das torres eólicas depois das usinas implantadas, e eles também têm muitas dificuldades e problemas nas negociações das condições de trabalho, além de atitudes antissindicais por parte de algumas dessas empresas.
Como está o andamento dessas negociações?
Jandyra Uehara – Diante disso resolvemos construir um seminário, que aconteceu de 10 a 13 de julho deste ano em Natal [capital do RN]. Primeiro nós tivemos audiência pública, articulada por duas deputadas e um deputado do PT para trazer os movimentos, as comunidades atingidas, para ouvi-los e também para falar sobre a necessidade de o Brasil ter um marco sobre as operações das empresas multinacionais. Depois da audiência fizemos um seminário sobre os impactos no emprego e renda. A IndustriALL Brasil também participou na perspectiva da industrialização do Nordeste.
De que forma o fato de o Brasil não ter leis que regulamentem a instalação de eólicas está sendo utilizado em favor das empresas?
Jandyra Uehara – Enquanto o Brasil não tem uma lei e regulamentação sobre as atividades das multinacionais no país, nos próximos dois anos nossa prioridade é fazer com que os nossos sindicatos se instrumentalizem para fazer valer o respeito aos trabalhadores e das comunidades. Desde a utilização das leis de devida diligência em Direitos Humanos em vigor na Alemanha e na França e também nos prepararmos para utilizar a Diretriz Europeia sobre Direitos Humanos e Empresas, que começará a valer em 2027, que obrigará as empresas transacionais, do continente, a respeitar direitos humanos em outros países onde operam.
A energia renovável será utilizada para a industrialização do Nordeste?
Jandyra Uehara- Essa é uma das nossas lutas que a produção de energia sirva, em primeiro lugar para o desenvolvimento local. O ônus dessa produção de energia renovável, porém não limpa, porque traz impactos tanto ambientais como sociais, não pode ficar nas costas do povo nordestino. Essa energia não pode ser produzida no Nordeste e depois beneficiar apenas o Sudeste do país ou para fora, com a perspectiva do hidrogênio verde. Ela precisa em primeiro lugar servir ao processo de industrialização da região. Então, é um processo de uma discussão que fazemos juntamente com o macrossetor da indústria da CUT.
Como estão as articulações com as demais entidades envolvidas na defesa dos atingidos pelas eólicas?
Jandyra Uehara – O seminário teve essas abordagens, mas o principal foi construir uma articulação e juntar esse povo que estava lutando disperso, para fazer as conversas e movimentações, construir um movimento juntos. E nós constituímos um Grupo de Trabalho [GT], operativo com várias tarefas que estão sendo cumpridas, desde mobilização do Grito da Terra unificado, com todas as entidades e o tema do impacto das eólicas.
O movimento foi recebido pela primeira vez pela governadora do RN, Fátima Bezerra (PT), com resultado político importante, embora falte muito para conseguir manter o diálogo da forma como queremos. Também construímos uma plataforma para as eleições municipais, no que diz respeito aos candidatos a prefeitos, o que queremos nos territórios atingidos. Também estamos construindo para este ano uma cartilha popular para trabalhar nos territórios atingidos e tudo isso com a participação ativa e ação deles. O protagonismo é das mais de 15 entidades parceiras. Conseguimos ter plano de trabalho comum e está avançando.
Diante de todos esses malefícios, a energia renovável ainda é uma necessidade?
Jandyra Uehara – Obviamente somos favoráveis à energia renovável, ao processo de substituição dos combustíveis fósseis, mas isso além ser feito de uma forma planejada e, observando os impactos sociais e ambientais e a mitigação desses territórios, tem que servir para o desenvolvimento do país, à industrialização. A energia renovável não pode ser mais uma commoditie para ser exportada.
No capitalismo tudo vira negócio, ar e sol se tornaram mercadorias rentáveis, o lucro vem primeiro. Se for essa terra de ninguém, nós vamos perder novamente uma grande fonte de riqueza para o desenvolvimento do Brasil e do povo brasileiro.
Então, toda essa discussão vai além dos impactos socioambientais, é uma questão de soberania nacional?
Jandyra Uehara – A energia renovável não pode ser mais uma commodities, sem regras, sem lei. As empresas violam tudo, levam a energia produzida para os seus interesses e ficamos com o ônus, sem bônus nenhum. A gente quer fazer uma discussão global e, obviamente não somente uma discussão da secretaria de Direitos Humanos, é uma discussão da CUT, que envolve nossos ramos, secretarias, relações de trabalho, ambiente e outras.
O que as empresas fazem aqui, elas não fazem em seus países de origem. O que acontece? Em nome de um pseudo desenvolvimento, não pode haver uma atuação predatória, como sempre aconteceu no Brasil. Por isso, a gente quer fazer uma discussão global.
Neste debate tem muitos setores que ainda precisam ser envolvidos?
Jandyra Uehara – Nós trabalhamos para que essa questão, que é de soberania nacional, da operação dessas empresas aqui; a questão do desenvolvimento e da reindustrialização seja um debate de fundo e prioritário na CUT. Agora vai ter a Cúpula Social, a Cúpula dos Povos e precisamos nos preparar, também na perspectiva dos direitos humanos, para participação na COP 30.
Os sindicatos, os trabalhadores e trabalhadoras e comunidades têm muito a dizer, de como por exemplo, a caatinga, um bioma único e que retém muito carbono está sendo prejudicada em nome da descarbonização. Em nome de descarbonizar você destrói o bioma que mais retém carbono. Tem muita coisa contraditória, e queremos desvendar essas coisas e conscientizar os trabalhadores na luta. Não podemos admitir um processo de perda de soberania e ataque ambiental e aos direitos humanos.
Quais os próximos passos?
Jandyra Uehara – Ainda na perspectiva de direitos humanos e empresas estamos organizando, com nossos diferentes ramos envolvidos nessa questão, nos dias 4, 5 e 6 do novembro deste ano, um encontro das CUTs do Nordeste, dos sindicatos e federações dos setores metalúrgico, rural, elétrico e mineração. Envolver os sindicatos e trabalhadores da mineração neste debate é fundamental, a questão da transição energética envolve a mineração e a energia renovável. Tudo isso está dentro da perspectiva dessas empresas, cujo único interesse é fazer grandes negócios à custa de violações de direitos dos trabalhadores e comunidades.
Tem um abuso de todas as formas que se possa imaginar. Nosso objetivo é um trabalho muito concreto, na base, com os sindicatos se apropriando deste debate, colocando em suas pautas de reivindicações e se articulando com outros sindicatos de outros ramos porque estão todos sofrendo com as ações das transnacionais.