O coro desafinado das empresas: rituais motivacionais e engenharia da humilhação do trabalhador

Empresários convertem local de trabalho em gincana e pessoas são obrigadas a orar, rebolar e atuar em gritos de guerra

Igor Carvalho

“Esse final de semana, temos uma convenção. Eu confesso que já estou bastante incomodada, sabendo que passarei meu final de semana em uma convenção de cunho bastante comercial e eu terei que fazer esses gritos e terei que fazer essas simulações muitas vezes”.

É sexta-feira, 1 de outubro, e a professora Ana Maria está preocupada. Com mais de 20 anos de profissão e quase 15 destes trabalhando na Unicesumar, Universidade de Maringá (PR), ela cansou dos ritos motivacionais exigidos pela empresa, que forçam trabalhadores, de acordo com relatos dos funcionários, a participarem de dinâmicas longas e humilhantes, sempre em grupo.

Já a empresa, em resposta à reportagem, afirma que não força ninguém a tomar parte das atividades: “A ações são facultativas e tem como objetivo dar visibilidade a marca e nunca, constrangimento aos colaboradores”, diz, em nota, a universidade (leia a resposta completa ao fim desta reportagem).

Em algumas dessas atividades, os trabalhadores da Unicesumar devem se fantasiar de acordo com a temática da festa, seminário ou congresso.

Em grupo, entoam gritos de guerra que exaltam a empresa, formam corredores de aplausos para motivar supervisores que recebem novas metas e devem sorrir sempre, a fim de provar que a equipe está comprometida com o projeto da universidade.

Recentemente, um encontro promovido pela empresa teve motivos medievais e homenageava o escocês William Wallace, que lutou contra o domínio inglês no século XIII.

Os trabalhadores deviam se vestir a caráter. A escolha do cavaleiro da Escócia não foi aleatória, fazia alusão a William Matos, o pró-reitor da Unicesumar, que carrega o mesmo nome, e se vestiu como o próprio.

Matos é o responsável por levar a cultura de ritos motivacionais à Unicesumar. Nas redes sociais, seu perfil flutua entre o canastrão e o coach, com chavões plastificados e glorificação da empresa que herdou do pai, Wilson Matos, que entre 2007 e 2014 foi suplente do senador Álvaro Dias pelo PSDB no Paraná, mas chegou a assumir o mandato em duas oportunidades.

Em 9 de julho de 2020, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) o nomeou conselheiro da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Em um dos gritos de guerra elaborados pela Unicesumar, que os trabalhadores repetem em voz alta e saltando, William é lembrado:

 Olhos de águia / Punho de aço / Unicesumar é quem manda no pedaço / É uma marca de tradição / O nosso foco é no poder de execução / Força e coragem para vender / E qualidade no ensino para vencer / Ei, William, pode anotar/ A força azul é que vai dominar.

Fantasiado, William Matos está entre quatro trabalhadores da Unicesumar, que também usam adornos / Foto: Reprodução/Instagram

Ana Maria conta que passou a ter contato maior com as dinâmicas motivacionais quando foi trabalhar no setor de Educação a Distância, modalidade em que a Unicesumar atende 314 mil alunos.

“Eu comecei a perceber que outros colegas também se sentiam bastante incomodados. A gente acaba fazendo, temos que fazer. Entre a gente, é um misto, em alguns momentos tratamos como uma piada, mas em outros como incômodo.”

Na Unicesumar, parte dos rituais são gravados. Mas, quando as câmeras não estão vigiando os trabalhadores, os supervisores ficam alerta.

“Eles conduzem de uma maneira que não temos opções de não aderir. Até hoje, não vi alguém que não tenha aderido, acabamos seguindo”, relata.

Nas campanhas, os trabalhadores são coagidos a postarem as imagens em suas redes sociais. “São redes pessoais, onde somos obrigados a assumir essa questão profissional. Se não postamos, recebemos uma indireta, uma mensagem, dizendo que esquecemos de postar”, explica Maria.

“Eu já tive colegas que passaram por lá e não conseguiram se manter na instituição por incômodo com essa situação”, encerra.

Cultura estrangeira

O Brasil observa, na última década, o crescimento no número de empresas que investem em ritos motivacionais, sob o pretexto de integrar os trabalhadores e garantir maior envolvimento com a marca.

O método ganhou maior adesão após empresários famosos nas redes sociais o divulgarem. É o caso de Luciano Hang, dono da Havan, que exibe vídeos de seus funcionários cantando músicas juntos, saltando, fazendo coreografias e gritando o nome do empresário.

Mônica Gurjão, psicóloga do trabalho, explica que a constante exposição à situações de humilhação ou a participação forçada de dinâmicas em grupo “pode adoecer as pessoas.”

“Parece algo novo, mas a gente encontra manifestações como essa. É entendido como ‘você fazer parte dessa equipe’. Mas são rituais que podem ser adoecedores, porque podem suprimir a individualidade e a personalidade da pessoa. Não é porque eu trabalho numa determinada empresa, que eu deva participar de rituais que suprimem meus valores, crenças e subjetividades”, alerta Gurjão.

O juiz do Trabalho Luciano Frota, ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conta que essa prática foi importada por empresários brasileiros da cultura empreendedora estadunidense.

“Isso não é um tema tão incomum assim. Os empregados são forçados a participar dessas reuniões motivacionais, a entoar hinos, por vezes cantar sozinho, rebolar, enfim, situações que expõem o trabalhador à humilhação e constrangimento”, ressalta Frota.

“Nem todos têm essa expansividade, no sentido de querer se mostrar nessas situações. Geralmente, são empregados que dependem do trabalho e as empresas se utilizam desse poder hierárquico para impelir o trabalhador a participar. Inclusive, sob pena de punição.”

Foi o que aconteceu com Manoel Barbosa, garçom contratado por uma das unidades do hotel Novotel no Rio de Janeiro. Antes de iniciar o período de trabalho, ele foi informado que deveria participar de um treinamento. Mas quando chegou ao local, se deparou com um cenário distinto do que esperava para praticar a rotina de seu ofício.

“Passamos por uma série de gincanas, cantando hino da empresa, tivemos que fazer palavra cruzada com o nome dos fundadores da rede, coisas dessa natureza. Eu achei isso bastante constrangedor, não foi para isso que me inscrevi, para ser plateia de programa de auditório”, lembra Barbosa, que se demitiu após o período de treinamento.

“Tínhamos que cantar. Eram músicas famosas, mas mudavam um pouco a letra para fazer referência ao hotel. Éramos cobrados. Se não participasse, vinha alguém perguntar se não tínhamos espírito de equipe. Você acaba não tendo o que fazer”, encerra Barbosa.

Cris Pessoa afirma que foi humilhada em uma unidade da Poupafarma, rede de farmácias com sede em 32 municípios de São Paulo.

A farmacêutica recorda que era obrigada a cantar os gritos de guerra da empresa.

“A gente tinha que orar, sempre no final da reunião. Fazia toda essa palhaçada e no final da reunião tínhamos que orar. Tinha pessoas que você não conhecia e tinha que abraçar, fazia um círculo e dava a mão. Tinha gente da cidade vizinha que eu não me dava bem, mas tinha que abraçar. Era muito constrangedor”

Após o dia de trabalho, Pessoa conta que se arrependia. “Não precisava nem chegar em casa. Eu saía da reunião, entrava no carro e já me dava uma sensação de que aquilo não era necessário. Por que ficar gritando ali, interferiria no resultado profissional? É ruim, nos sentimos muito oprimidos. Ou você faz, ou eles colocam outra pessoa em seu lugar. Mas a gente precisa trabalhar, né? É humilhante”, desabafa.

Gritaria e amém

No dia 30 de agosto deste ano, um vídeo da inauguração de uma unidade do restaurante Coco Bambu em Sorocaba, interior de São Paulo, ganhou repercussão e críticas nas redes sociais. Nas imagens, Ronan Aguiar, sócio da marca, berra frases que são respondidas pelos trabalhadores do espaço.

A cena, constrangedora, ganhou o noticiário. No entanto, outro vídeo, de um mês antes, 26 de julho, mostra Ronan Aguiar inaugurando outra sede do restaurante, dessa vez em São José do Rio Preto, também no interior paulista. Antes da abertura da loja, o empresário conduz uma oração, que é repetida pelos trabalhadores. “Amém! Show”, grita o sócio do Coco Bambu, no final da prece.

As imagens chocaram até mesmo quem está acostumada a lidar com as mazelas do trabalho.

“Eu achei a cena do Coco Bambu extremamente humilhante. Qual é a visão que se teria de um trabalhador se ele disse que não queria participar desse ritual? Como esse trabalhador seria visto? Ainda como membro de uma equipe? A empresa acaba impondo isso e o trabalhador se vê obrigado a participar”, opinou a psicóloga Mônica Gurjão.

Cleonice Caetano, diretora de Assistência Social e Previdência do Sindicato dos Trabalhadores em Comércio de São Paulo (SECSP), lamentou as imagens nos restaurantes do Coco Bambu.

“É totalmente abusiva e não tem nada de motivacional. Nem todas as pessoas têm essa vontade de fazer esses ritos que eles obrigam, é um assédio moral. Algumas pessoas acham que é normal e não percebem que vão adoecendo com isso. Não é nada normal você ficar na frente de uma porta pulando ou cantando um hino que a empresa criou, usando roupinhas constrangedoras. É uma violência no local de trabalho.”

“Rechaçado pelo judiciário”

Em 2015, a juíza Ana Paula Alvarenga Martins, da 1ª Vara do Trabalho de Americana, condenou o supermercado Walmart a pagar R$ 30 mil em indenização a um trabalhador que reclamou na Justiça a humilhação que sofria dentro da empresa, onde era obrigado a cantar o hino motivacional, mesmo na presença dos clientes, e rebolar no interior de um círculo.

“A forma como isso vem sendo adotado é, em minha opinião, ofensiva à dignidade desses trabalhadores, porque eles são submetidos a uma série de constrangimentos. Apesar da maioria das empresas informarem que não é obrigatória a participação nesses cantos, ou nessas danças, o que verificamos nos processos judiciais é que há, sim, uma obrigatoriedade na participação”, explica Alvarenga Martins.

Não há, na lei brasileira, determinação de que a produção de ritos motivacionais ou dinâmicas em grupo sejam crimes. No entanto, a Justiça tem punido, na forma de assédio moral, os empresários que coagem os trabalhadores a participarem dessas atividades.

“Esse constrangimento é o que a Justiça tem entendido como irregularidade no exercício do poder do empregador, em relação aos empregados, ocasionando uma ofensa a direitos da personalidade. Há uma ofensa moral, um dano moral”,  explica Alvarenga Martins.

“Várias sentenças têm sido proferidas nesse sentido, reconhecendo esse dano moral, condenando a empresa a indenizar esses trabalhadores”, ressalta.

“O impedimento legal é você ofender a intimidade do trabalhador, é a esfera da dignidade do trabalhador ser aviltada. O problema todo é aferir se de fato há liberdade. Se você não participar dos ritos, mas sofrer pressão de seus gestores, não há liberdade. Quase a totalidade dos casos que julguei, não há liberdade”, sentencia Frota.

Outro lado

Brasil de Fato procurou a Unicesumar e a Poupafarma. Esta última não respondeu até publicação desta reportagem. A assessoria de imprensa do Novotel não retornou as chamadas da reportagem. A assessoria de imprensa do Coco Bambu não foi localizada. Caso haja algum posicionamento das empresas envolvidas, será publicado nesta página.

Leia, abaixo, a resposta da Unicesumar enviada ao Brasil de Fato.

A Unicesumar tem mais de 30 anos de história na educação superior e, desde o início, preza por um ensino de qualidade, mas além disso, por um ambiente de trabalho seguro e humanizado. Afinal, um dos objetivos da instituição é garantir a experiência dos estudantes e isso está diretamente relacionado a essas pessoas.

William Matos, que está a frente da educação a distância a (sic) 15 anos, é um líder preocupado com pessoas e propósito, por isso, está sempre à frente de ações de engajamento e motivação, como vídeos, palestras e até experiências imersivas – não apenas dentro da Unicesumar, mas também em suas redes sociais, focadas no público externo.

No que diz respeito às ações dentro da instituição, algumas campanhas motivacionais são lideradas por William Matos, que criou uma equipe interna para pensar e propor soluções para garantir o bem-estar dos colaboradores. Exemplo disso é o “Viva+”, executado em 2019, e que promovia atividades físicas, palestras e até rodas de conversa focadas em três pilares: corpo, mente e espírito, e que tinha como objetivo promover a saúde completa do colaborador. Atualmente, está em vigor a campanha “Processo 55”, que segue os mesmos moldes da anterior, dessa vez, com pilares como: Empatia, Gratidão, Confiança, Colaboração e Talentos Múltiplos. Em todos os casos, os colaboradores são convidados a participar das ações e assistir aos conteúdos, mas nunca obrigados.

Além disso, a instituição promove ações comerciais em seus mais de 900 polos espalhados pelo país, entre elas, ativações em redes sociais, mas também ações de rua, por exemplo, panfletagens, visitas a empresas e até ações em escolas. Todas essas ações são facultativas e tem como objetivo dar visibilidade a marca e nunca, constrangimento aos colaboradores.

Vale ressaltar que os colaboradores não são obrigados a participarem de nenhuma ação, assim como os polos de apoio presencial têm autonomia para seguir ou criar novas ações em cada cidade, afinal, funcionam como franquias, por isso, têm gestores e equipes locais.

*O nome dos trabalhadores da Unicesumar, Poupafarma e Novotel foram alterados para a matéria.

Brasil de Fato

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