O que é a cartilha Caminho Suave, que alfabetizou milhões e caiu em desuso, mas mantém fãs como Bolsonaro

Entre a década de 50 e os anos 90, estima-se que mais de 48 milhões de brasileiros tenham aprendido a ler seguindo as frases simples da cartilha Caminho Suave, que usava a técnica denominada “alfabetização por imagem”, e que ainda desperta memórias afetivas de muitos adultos como a lembrança de um método eficiente para ensinar a ler.

A cartilha foi recentemente lembrada pelo presidente Jair Bolsonaro que, em entrevista concedida em frente ao Palácio da Alvorada criticou os livros didáticos atuais — na visão dele, têm palavras demais, diferente dos que ele usou para ser alfabetizado na infância.

“Os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo. Em falar em suavizar, estudei na cartilha ‘Caminho Suave’, você nunca esquece”, afirmou o presidente, na ocasião.

Direito de imagem Divulgação Image caption Entre a década de 50 e os anos 90, estima-se que mais de 48 milhões de brasileiros tenham aprendido a ler seguindo as frases simples da cartilha

Caminho Suave

Nas redes sociais de Bolsonaro, muitos apoiadores também manifestaram nostalgia em relação ao método — especialmente os que têm mais de 35 anos de idade. Na internet, vídeos e blogs elogiam a cartilha, tratada como relíquia e lembrada como uma forma mais tradicional e conservadora de aprendizagem da leitura que as atuais.

A ideia é simples: associa-se imagens e letras com o objetivo de facilitar o aprendizado. A letra A é escrita no corpo de uma abelha, a B na barriga de um bebê, a V compõe os chifres de uma vaca. Em razão dessa estratégia, criada pela professora Branca Alves de Lima em 1948, a publicação tornou-se conhecida como um método de “alfabetização pela imagem”.

O livro foi um sucesso por décadas, até cair em desuso e perder o prestígio em meados dos anos 1990, quando novas pesquisas da psicolinguística e sociolinguística passaram a tratar a alfabetização como um processo que deveria ensinar mais do que apenas a decifrar letras e sílabas.

Em 1996, o Ministério da Educação (MEC) excluiu a Caminho Suave do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Mas a Caminho Suave ainda existe: já teve 133 edições e, segundo a Edipro, que detém atualmente os direitos de publicação, tem tiragem que varia entre 30 mil e 50 mil a cada dois anos.

“As vendas só aumentam”, garante a editora Maíra Lot Micales, da editora Edipro, que conta que também aprendeu a ler com a cartilha, na infância. “As vendas só aumentam. Muitos avós e pais nos procuram, pois seus filhos e netos não tem tido êxito com a alfabetização atual, então buscam a cartilha como uma solução.”

Mais códigos que leitura

“Caminho Suave fez enorme sucesso nos anos 1940, e continua sendo publicada, portanto, usada. Muitas gerações se alfabetizaram por ela”, explica Magda Soares, professora titular emérita aposentada da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e uma das principais especialistas em alfabetização do país.

Ela diz que as cartilhas funcionaram para alfabetizar muitas crianças na época, mas com o tempo tornaram-se obsoletas por focar apenas nos códigos, e não em iniciar nas crianças uma relação com a leitura que será fundamental na vida adulta.

“O problema é que as crianças aprendiam a codificar e decodificar, e não a descobrir o mundo da literatura, dos jornais. Era como aprender uma tecnologia e não saber que uso fazer dela”, explica Soares, que em 2017 venceu o Prêmio Jabuti com o livro com o livro ‘Alfabetização — A Questão dos Métodos”.

A principal crítica é que a cartilha foca em ensinar a criança a decifrar códigos a partir da repetição de frases sem muita relação com o cotidiano, o que é apenas uma das etapas da alfabetização. Falta treinar a criança para se familiarizar, reconhecer e gostar de ler todos os tipos de texto usados socialmente, criando uma relação com a leitura.

“Os textos que não cumpriam uma outra função da alfabetização, que é introduzir a criança na cultura do escrito, textos como esses [a laranja é de Lili] não fazem parte da cultura do escrito, nem mesmo de livros de literatura infantil”, diz Soares.

Poucas mudanças desde 1948

“Quando compramos os direitos da cartilha da autora, dona Branca Alves de Lima, nossa ideia era a de manter o método, tal qual foi idealizado, e é isto que fizemos. Nós acreditamos muito na eficiência deste método, portanto mantemos assim”, diz a editora da Edipro, Maíra Lot Micales.

“Fazendo é claro, pequenas alterações, quando necessário. Por exemplo, fizemos a revisão de acordo com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e consequentemente, incluímos as letras K, Y e W”,

Micales diz que, depois que o MEC baniu a cartilha do programa de livros didáticos, houve uma espécie de “caça às bruxas”, que considerava o método muito ultrapassado.

“O ponto é que depois de uns dez anos o pessoal começou a pedir a cartilha de volta”, diz a editora. “No começo havia professores que pediam a cartilha escondido, diziam que não podiam nem saber na escola que eles estavam usando”, conta. “Ainda hoje, muitos usam como método de reforço.”

Na versão atual, além de cartilha, a Caminho Suave tem baralho, livro de tabuada e literatura infantil de bolso.

‘Guerra’ de métodos

Os métodos de leitura dividem-se em dois grandes grupos: os sintéticos, que começam ensinando a decifrar das estruturas pequenas para as grandes (primeiro as letras, depois as sílabas, e a partir daí juntá-las em palavras); e os analíticos, que partem da leitura da palavra e das frases, para depois dividi-las em sílabas e letras.

Na Caminho Suave, a autora Branca Alves de Lima juntou princípios do método sintético com o analítico que estava surgindo na época em que escreveu a sua cartilha.

“Havia sempre uma frase que introduzia a palavra e a família silábica. A formação das palavras partia sempre da família estudada, apresentando vocabulário pobre e muito controlado, pois trabalhava as famílias simples (consoante e vogal) e depois as famílias complexas (ch, nh, tr etc.)”, afirma a pesquisadora Marlene Coelho Alexandroff, em artigo.

A partir da década de 1980, essas ideias e metodologias passaram a ser questionadas, em função da crescente demanda de crianças com problemas na alfabetização.

Anna Helena Altenfelder, doutora em psicologia da educação e presidente do Conselho de Administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), explica que estudos que surgiram no final da década de 80, a partir das pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita, da psicóloga argentina Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, causaram uma “revolução” no que se sabia sobre ensinar a ler.

Surge o construtivismo e, a partir dali, a ciência passou a encarar o aluno como centro do processo de aprendizagem e o professor como mediador entre o aluno e o objeto de conhecimento.

“Antigamente se acreditava que, uma vez que a criança dominava do código, ela automaticamente lia e escrevia todos os gêneros de texto que circulam na sociedade: contos de fada, poemas, regras de jogo, receitas de bolo, textos científicos.”

Hoje, diz ela, os estudos mostram que também é necessário um aprendizado mais complexo. “Dependendo da quantidade e da qualidade das experiências que ela (a criança) tem antes de chegar à escola, tudo isso vai dando conhecimento dos usos e das funções sociais da escrita. A mãe fazendo a lista da compras. O pai comentando com a mãe a notícia do jornal, a mãe lendo um livro…”

Restrição prejudicial aos mais pobres
Nessa nova visão, diminuiu o “poder” atribuído aos livros didáticos, aumentando o protagonismo e responsabilidade do professor. “Não se trata mais de se pensar num novo método, mas de uma ‘revolução conceitual’, relacionada ao desenvolvimento cognitivo da criança, que redimensionou a graduação das dificuldades, ‘desmetodizou’ o processo de alfabetização e questionou o uso de cartilhas”, afirma Alexandroff.

“O presidente Bolsonaro foi alfabetizado pela Caminho Suave e deu certo. Eu fui alfabetizada pelo método Montessori e deu certo. Não é questão de método. Um bom professor que se apropria do método que domina melhor consegue alfabetizar as crianças”, diz Altenfelder, que defende que o caminho para melhorar a alfabetização — os dados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) de 2016 apontam que mais da metade dos alunos do 3º ano do ensino fundamental alcançam nível insuficiente em provas de leitura — é fortalecer, qualificar e valorizar o professor.

“O que os casos bem sucedidos de alfabetização no Brasil têm em comum, como o da cidade de Sobral (CE), é uma política de muito apoio aos professores e monitoramento. Olhar e acompanhar os objetivos de aprendizagem, para que o professor tenha claro onde quer chegar a cada semana e dar apoio a quem não chegar”, diz.

“Tem muito a ver com a formação dos professores, tanto a inicial quanto a continuada; os professores não aprendem a alfabetizar nos cursos de pedagogia.”

A exposição restrita da criança ao mundo da leitura apresentado pela Caminho Suave, na visão dos especialistas, é ainda mais prejudicial para as famílias mais vulneráveis, para quem a escola é o único momento do dia de contato com a cultura da linguagem escrita. Nas famílias de renda e escolaridades mais altas, a restrição pode ser compensada pelo contato com jornais, livros, internet, receitas e outros tipos de material escrito.

Para o Brasil dos anos 50

A alfabetização no modelo da Caminho Suave era voltada a resolver um problema de um Brasil majoritariamente rural e analfabeto: a dificuldade de ensinar as crianças a unirem letras em sílabas, as sílabas em palavras e, assim, aprenderem a ler.

De acordo com dados do Censo de 1950, 57,2% da população brasileira era analfabeta naquele ano. No Brasil, em 2018, havia 11,3 milhões de pessoas com 15 anos ou mais de idade analfabetas, o equivalente a uma taxa de analfabetismo de 6,8%.

Durante boa parte do século XIX, o Brasil, assim como outros países latino-americanos, esteve entre aqueles com os piores indicadores educacionais do mundo.

Para se ter ideia do enorme atraso educacional, foi somente na década de 1990 que a média de anos de estudo do Brasil chegou ao nível observado nos Estados Unidos no início do século XX; e somente em 2010 a proporção de indivíduos com ensino médio no Brasil se igualou à que já era observada nos Estados Unidos na década de 1940, afirma artigo assinado pelo economista Naercio Menezes Filho, do Insper, sobre a história da educação e as origens da desigualdade regional no Brasil.

Além disso, o Brasil ainda era um país de população predominantemente rural até 1960; a população urbana era de 31,2 %, em 1940, tornando-se maioria, 67,6%, somente em 1980. Não existia a internet, e as exigências do mercado de trabalho eram bem diferentes das atuais.

“Era uma época em que a escola era para muito poucos. E como era um país muito analfabeto, a pessoa que escrevia uma palavra e lia textos muito simples era considerada alfabetizada”, diz Anna Helena Altenfelder. Hoje, em um mundo em que terão que participar de um mercado de trabalho tecnológico, que exige cada vez mais criatividade e habilidades emocionais, a cartilha parece insuficiente.

“Fazia sentido para o Brasil da época, para a psicologia da educação da época, em que a escolaridade média do brasileiro era de dois anos de estudo. Para a sociedade da época que pensava na formação de um cidadão sem as exigências do mundo atual, de criatividade, autonomia, resolução de problemas.”

BBC

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Um Comentário

  1. Eu fui alfabetizado no início dos anos 60, em escola pública (aliás, só estudei em escolas públicas, até o meu doutorado), e usei a referida cartilha. Saudosista? Apenas em um aspecto: sinto saudade do tempo em que um aluno do então ginasial (hoje seria da 6ª série à 9ª) sabia escrever uma redação respeitando as regras gramaticais, fazer análise sintática, ler e bem interpretar o que leu. Hoje o aluno conclui o ensino médio sabendo afrontar seu professor, mal sabendo, porém, escrever o que estava pensando.

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