Peirce explica as falhas das pesquisas eleitorais de 2022

Por Clotilde Perez, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

Desde domingo passado, dia 2 de outubro de 2022, todos nós, pesquisadores vinculados às Universidades ou aqueles milhares de pesquisadores dedicados às pesquisas de mercado e eleitorais, ficamos inconformados, para não dizer perplexos, com as falhas nas previsões de intenção de votos nos candidatos à presidência do país, principalmente o percentual de votos destinados a Bolsonaro, e aos candidatos aos governos de vários estados brasileiros. Desde então, muitas razões foram levantadas e colocadas em debate, a partir dos próprios institutos, dos veículos, pelos cientistas políticos e pesquisadores. Podemos elencar algumas delas:

1) o chamamento do PT para o voto útil, na esperança de conseguir a vitória no primeiro turno, impactou em uma avalanche de votos em Bolsonaro;

2) os eleitores de Bolsonaro não respondem pesquisas ou dissimulam o voto;

3) as amostras utilizadas pelos diferentes institutos superestimaram os públicos mais pobres, concentrando os respondentes em eleitores com renda de até dois salários-mínimos, o que favoreceria Lula.

Certamente, são “boas razões” e, provavelmente, todas elas são uma parte da explicação, mas não toda.

As pesquisas eleitorais são pesquisas quantitativas, planejadas estatisticamente, com amostra probabilística e previsão de erro (os percentuais para mais e para menos). Implementadas por meio de abordagens pessoais nas ruas das cidades ou por telefone, vêm sendo a base para debates, programas de governo, comunicação e escolha de candidatos, desde os inícios da nossa redemocratização. Há alguns anos, as previsões têm mostrado desvios importantes, e não apenas no Brasil, ainda que não tão expressivas como a deste primeiro turno eleitoral.

Não há qualquer dúvida sobre a seriedade de quase todos os institutos de pesquisa, principalmente aqueles com profissionais competentes e experientes, muitos deles, com uma vida dedicada à investigação social e política. Também não há qualquer suspeita sobre a integridade das intenções dos contratantes de tais pesquisas, via de regra, veículos de comunicação e imprensa que demandam conteúdo qualificado para sua função primeira de dar visibilidade aos fatos e aos movimentos de toda a sociedade. Precisamos dos institutos de pesquisa e precisamos ainda mais que as pesquisas sejam divulgadas, debatidas, melhoradas. A questão é por que o erro foi tão grande?

A resposta está nas reflexões teóricas de Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo e semioticista americano que há mais de 150 anos estabeleceu as bases de uma teoria completamente inovadora e potente, o Falibilismo. Por Falibilismo, do latim fallibillis, falhar, errar, entenda-se, de maneira bem simplificada, a certeza de que a realidade está em constante crescimento, portanto, mudando. Aceitar o falibilismo é estar aberto às novas evidências e reconhecer que qualquer afirmação justificada cientificamente hoje pode precisar ser revista ou iluminada pelas novas evidências, pelos argumentos inovadores e pelas novas experiências. Em outra perspectiva, o falibilismo, refere-se à consciência do grau em que as nossas análises, interpretações e tradições (hábitos) estão “temporalmente indexadas”, portanto, sujeitas ao arbitrário fluxo histórico de mudanças.

Segundo O´Hear (1997, p. 251), “O falibilismo paira entre o modesto pensamento de que qualquer teoria pode estar errada e a proposição de que toda teoria mostrará, em algum momento, estar errada”.

Uma nova pergunta surge, a realidade está diferente hoje quando comparamos com quatro ou cinco décadas atrás? Sim, está dramaticamente diferente, guiada por conexões em rede, que estabelecem novas bases e fontes de informação, formação de opinião e fixação de crenças, além das identidades fragmentadas e o desamparo, sintoma do esfacelamento das instituições e afetos. As dinâmicas instauradas pelas redes sociais, principalmente aquelas de comunicação instantânea como WhatsApp, telegram e outros, associadas aos tensionamentos das instituições tradicionais, criaram o terreno fértil para a disseminação de princípios e crenças edificantes, por isso, rapidamente cristalizados, mesmo, em muitas situações, frágeis em seus vínculos com a realidade ou com a história.

O que constatamos é que nenhum instituto de pesquisa tem metodologias adequadas para esta nova realidade. Aqueles que estiveram mais próximos dos fatos (intenção e voto na urna), empregaram métodos de captação das informações, a partir das redes; estes obtiveram métricas melhores, mas ainda assim, falhas. É provável que uma mistura de metodologias quantitativas, que mostram um recorte da realidade momentânea, mas não explicam o fenômeno, com robustas e multidisciplinares pesquisas qualitativas, sejam o caminho para a constituição de novos métodos de investigação, dentro das lógicas e dinâmicas do phygital. A pesquisa precisa estar onde estão as pessoas.

Aceitar o falibilismo implica compreender que a realidade está em crescimento, o que impõe que os métodos para captá-la, compreendê-la e divulgá-la também precisam estar. Peirce sempre soube disso.

Jornal da USP

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